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Meninas que Jogam Bola
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E-book416 páginas5 horas

Meninas que Jogam Bola

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Sobre este e-book

Meninas que jogam bola apresenta histórias de vida de praticantes de esportes coletivos de confronto no lazer, e as redes de sociabilidade que se cruzam na trajetória dessas mulheres para compreender os significados do esporte para elas. O texto apresenta uma linguagem simples e descritiva sem abrir mão do rigor nas argumentações. Assim, é de interesse tanto de pesquisadores e profissionais das áreas relacionadas ao tema esporte como fenômeno sociocultural e pedagógico, quanto de um público mais amplo, praticantes e seus familiares, ou curiosos, interessados em compreender e refletir sobre o esporte na formação, nas relações sociais e na vida cotidiana das pessoas. O livro propõe contribuir no aprofundamento do conhecimento do fenômeno esporte na contemporaneidade. Analisa trajetórias de mulheres inseridas em esportes da tradição e predomínio masculinos, em especial as praticantes de futebol. O desafio é lançar o olhar nesse mapa de orientação que chamamos de cultura, com suas tradições e transgressões, para observar por onde e como se movimentam essas mulheres, como constroem seus projetos de vida e como negociam suas identidades de mulheres e jogadoras de futebol em um ambiente em que esses dois papéis não se equalizam facilmente. Partindo de um local público de lazer esportivo, comum na atual configuração do espaço urbano das metrópoles, são reveladas as interações sociais em jogo na construção das narrativas e dos estilos de vida de jovens adultas que, por conta própria e deliberadamente, por meio de uma prática lúdica, parecem tencionar algumas das fronteiras simbólicas mais rígidas estabelecidas em nossa sociedade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de jul. de 2021
ISBN9786525006031
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    Meninas que Jogam Bola - Alexandre Jackson Chan Vianna

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO FÍSICA

    Os imorais

    Falam de nós

    Do nosso gosto

    Nosso encontro

    Da nossa voz

    Os imorais

    se chocam por nós

    Por nosso brilho

    Nosso estilo

    Nossos lençóis

    Os imorais

    sorriram pra nós

    Fingiram trégua

    Fizeram média

    Venderam paz

    Mas um dia, eu sei

    A casa cai

    E então

    A moral da história

    Vai estar sempre na glória

    De fazermos o que nos satisfaz

    (C. Oyens e Z. Duncan)¹*

    Às meninas que jogam bola, que me ensinaram como lidar com várias realidades, resistir a conformidade e insistir na realização pessoal.

    APRESENTAÇÃO

    O que leva uma jovem a escolher jogar futebol em um ambiente em que essa escolha tem como consequência passar o tempo todo justificando porque não o voleibol, a natação ou o balé? Escolher o que não é a expectativa que os outros tem do que se deveria fazer, traz consigo duas consequências para a vida. Por um lado, perseguir seus gostos, desejos e necessidades apesar dos outros. Por outro, sair da situação confortável do que é mais comum, aceitável e ter a todo tempo que explicar seus gostos, desejos e necessidades diferentes do que se considera o normal.

    Pode parecer estranho aos dias atuais essa situação para mulheres que desejam jogar esportes como futebol, basquetebol, rúgbi, entre outros, associados no Brasil a agressividade e, consequentemente, dados como esportes para homens. No entanto, se já existe uma grande divulgação dessas práticas no chamado esporte profissional de espetáculo e se nos grandes centros cosmopolitas escolas e clubes promovem essas modalidades recebendo muitas pretendentes, não se pode dizer que a escolha dessas mulheres seja confortável, ou que passe despercebida como uma prática ordinária.

    O conflito é mais sentido conforme o local da prática apresenta costumes mais tradicionais e, também, conforme nos aproximamos das relações pessoais mais familiares dessas praticantes. O presente trabalho tenta aproximar o leitor desse universo mais conflitivo para compreender como são feitas essas escolhas, como elas são justificadas ou negociadas e que significados terão na construção dessas mulheres na vida adulta.

    Investiguei o cotidiano de praticantes de esportes de confronto em um subúrbio do Rio de Janeiro por dois caminhos. Por um lado, estudei desde uma análise cultural de gênero e esporte até o cotidiano das interações sociais mais diretas de mulheres praticantes de esportes coletivos de confronto. Por outro, descrevi a trajetória de algumas delas que se reconheciam como um grupo, desde a memória que tinham da infância e da escola básica, até os projetos de futuro que nutriam na vida, acompanhando-as na prática esportiva e nas suas relações mais intimas no lazer. O resultado foi compreender como elas construíram suas identidades de mulheres e jogadoras de futebol.

    O tema das relações homoafetivas foi incorporado ao trabalho, como que por imposição das praticantes. Como professor e esportista não poderia ver a priori uma relação direta entre esportes de predomínio masculino e a sexualidade de praticantes femininas como é no senso comum em parte de nossa cultura. No entanto, as praticantes apresentaram a relevância que a rede de sociabilidade das jogadoras de futebol se conecta com a das "entendidas" e como isso tem significado, independentemente da orientação sexual de cada praticante.

    Os relatos deste estudo mostram que essa dupla condição de desviantes da norma e a necessidade de cada uma das praticantes ter que construir seu lugar, sua narrativa, de acordo com seus gostos e desejos singulares faz com que a prática ganhe contornos de um lugar privilegiado de transgressões da norma de feminilidade e de formação humana de forma geral.

    Passaram-se dez anos desde que os resultados encontrados nessa pesquisa foram defendidos como o relatório final de minha tese de doutoramento. De lá até aqui, foram desenvolvidos produtos acadêmicos e técnicos baseados nos achados iniciais e nas reflexões derivadas dos debates sobre o tema. Por diversas vezes durante esse tempo me foi pedido cópia do relatório para construção de novos projetos de pesquisa. Esses fatos foram definitivos para publicar o livro.

    No entanto, desde a concepção das questões que geraram o trabalho, sempre tive em mente tornar acessíveis os resultados ao maior número de pessoas, e o livro havia sido a escolha num tempo nem tão distante, mas que as redes sociais e outras tecnologias da informação ainda eram seminais.

    O cuidado com a organização e a linguagem utilizadas na versão original já tinham em mente que meus leitores principais não seriam apenas a banca examinadora ou mesmo meus colegas de área de conhecimento, mas o público mais amplo interessado no tema sem, necessariamente, serem iniciados em qualquer teoria acadêmica. Na decisão pela publicação ainda considerei o livro como a melhor escolha, visto que as novas tecnologias são vocacionadas para a velocidade e síntese de informações e ideias, muitas vezes sem fundamentos, enquanto meu objetivo era compartilhar com as pessoas interessadas em um grau de reflexividade e aprofundamento maior do tema. A versão que se segue, pois, não se modifica do original além de pequenos ajustes de forma e algumas revisões que não foram possíveis na época.

    O percurso que escolhi para chegar até o relatório final teve sempre essa motivação. Antes mesmo desse tempo, é importante citar minha trajetória acadêmica. Já era um momento em que a academia se organizava na formação de pesquisadores com os estudantes de graduação interessados participando do mundo da pesquisa, ininterruptamente, desde a iniciação ao doutoramento vinculados a um mesmo laboratório e seus projetos específicos. Do meu lado, eu abri mão dessa opção quando decidi pela prática social e intervenção pedagógica da Educação Física. Foram 20 anos em que atuei como professor, treinador e gestor do esporte nos mais diversos campos de atuação possíveis, sempre próximo dos jogos esportivos coletivos, refletindo sobre a formação humana e os conflitos oriundos de uma prática em que cada um depende de cada outro envolvido. Quando eu retornei ao mundo acadêmico para completar meus estudos de pós-graduação, estava com mais de 35 anos, tempo em que os jovens que percorrem a carreira acadêmica já estão estabelecidos na pesquisa, mas sem a vasta experiência na prática social que eu havia adquirido. Decorre desse contexto que minha inquietude reflexiva não estava ligada aos debates e teorias estabelecidos na academia, ou mais restrito, em um determinado laboratório, mas o que eu vivia no campo como professor de Educação Física, com meus colegas e os praticantes.

    A escolha pelo programa de pós-graduação da Universidade Gama Filho foi óbvia. Meus anos de graduação na mesma instituição foram ricos de conhecimento e reflexão. A oportunidade de estudar com os doutorandos tornava as aulas altamente estimulantes para um jovem que trocara a Brasília ainda provinciana pelo Rio de Janeiro cosmopolita, naqueles anos de 1980/1990, efervescentes em especial na área da Educação Física, mas em todas as dimensões da vida imersas no processo de redemocratização do país. Alguns desses mesmos professores anos depois se tornariam orientadores do programa. Ludmila Mourão, que escreve o prefácio, estimular-me-ia desde a graduação para ingressar na carreira de pesquisador, como citei, e foi natural que no retorno acadêmico, anos depois, ela viesse a ser escolhida como orientadora.

    O laboratório em que me inseri, portanto, a partir da orientação da professora Ludmila Mourão, estava centrado na questão de gênero, esporte e atividade física. A temática naquele momento estava se consolidando como uma das mais problematizadas nos estudos socioculturais e pedagógicos da área, devido, claro, a sua pertinência cultural e pedagógica e as polêmicas sociais que suscitava. A escolha do meu projeto centrado nas praticantes de esportes coletivos era quase inevitável para conciliar interesses pessoais com a linha de pesquisa. No entanto, o contexto, a literatura adotada, os debates e a sequência de publicações acadêmicas da área levavam inevitavelmente para resultados que apresentavam a falta de equidade da mulher no mundo do esporte, apontado como espaço de domínio masculino. Inquietava-me que parecia determinado o percurso que a pesquisa me levaria, antes mesmo que eu começasse a investigar. Além do resultado a priori, a maior perplexidade era que, mesmo em Portugal onde fiz estágio e produzi parte do trabalho, os colegas e professores ao saber do meu tema e questões a investigar, me sugeriam ler as mesmas fontes teóricas, sempre ligadas aos estudos de gênero mais engajados ou em voga no mundo acadêmico. Não se tratava de simplesmente não querer fazer igual. Incomodava-me principalmente que, apesar de reconhecer a importância dos argumentos na luta por uma sociedade mais igualitária em todos os sentidos e, em especial nas injustas relações de gênero que ainda vivemos, as teorias não correspondiam completamente aos fatos que vivenciava no cotidiano do trabalho com jovens mulheres. Já ao final da graduação, enquanto Ludmila ainda era doutoranda, minha intenção de pesquisa apontava esse descompasso, que naquele momento não foi bem recebido e colaborou com minha decisão de seguir outro percurso até retornar mais maduro ao mundo acadêmico.

    Tenho imensa gratidão e reconhecimento pela professora Ludmila Mourão em todas as atitudes assertivas com minha formação desde a graduação. Da sua vez como orientadora e líder do laboratório permitiu que eu, não só propusesse o tema sem me retornar arroubamentos, mas também procurasse caminhos próprios que respondessem as minhas indagações. Em que pese a maturidade que a temática já havia alcançado nos anos de 2000/2010, ela foi diligente ao acompanhar e deixar que eu, e outros estudantes, revisássemos e refletíssemos sobre os fundamentos que alicerçavam, até então, esse campo temático da ciência em que ela já era um dos ícones nacionais. O que hoje prece ser a ênfase dos estudos de gênero e esporte – dar voz e iluminar as mulheres que rompem com as barreiras da desigualdade de gênero –, naquele momento, ainda era de apontar para o sexismo e a condição de vítimas em que as mulheres estariam confinadas no mundo do esporte. A prática pedagógica me levava a compreender a diversidade de significados que as jovens davam ao fato de serem mulheres e praticantes de esportes coletivos de confronto.

    Incontestável que os professores Hugo Lovisolo e Antonio Jorge Gonçalves Soares também foram imprescindíveis. O ambiente de possibilidades, aliás, que tínhamos no programa naquele momento era rico de debates ácidos, que nas palavras jocosas de um dos professores eram até de atitudes subversivas dos estudantes, pois iniciávamos nossas revisões criticando os próprios trabalhos da casa, mas sem causar conflitos pessoais, pelo contrário, instigando um retorno das críticas que alimentava a todos. Em retrospecto é possível verificar isso. O ambiente era lúdico, pelo menos para quem tinha em mente refletir e aprender sem dogmas e construir conhecimentos que respondessem as inquietudes da área. Considerando o mundo acadêmico que conhecemos, ainda será necessário estudar mais a fundo essa Escola Carioca de Educação Física.

    Outro momento importante no percurso da obra foi o encontro com o antropólogo Gilberto Velho, que com sua reconhecida generosidade se dispôs a dialogar e avaliar minhas ideias, a quem sou muito grato por ter tido em minha defesa da tese. Instigado a procurar pelos conceitos da etnografia urbana, cursei junto de Diego Luz Moura, parceiro de estudo, ideias e produção, a disciplina do eminente professor no Museu Nacional. São óbvios no meu texto os referenciais teóricos do próprio Gilberto Velho e da linhagem de autores com os quais ele sempre trabalhou. Os conceitos e campos de pesquisa utilizados nessa corrente de tradição acadêmica e meu foco de observação se assemelhavam por analisarem as interações sociais mais imediatas que os indivíduos vivenciam no cotidiano, e como eles criam soluções contingenciais no contexto cultural que estão imersos, em especial, com o olhar para as minorias e as pessoas desviantes da norma.

    Todos esses professores foram fundamentais para o resultado desta obra, pessoas a quem guardo imensa consideração e, por sorte, fraternidade. Faz parte ainda desse grupo Diego, já citado, com quem mantive diálogos fundamentais durante todo esse tempo. De todo apoio que poderia ter em Portugal, duas mulheres foram fundamentais: Paula Botelho Gomes, que orientou os trabalhos na Universidade do Porto, e Ximene Rêgo, outro presente de Gilberto Velho, que foi minha interlocutora e abriu os caminhos pelas ruas à procura das praticantes de futebol e de compreender o que por lá acontecia. Evidentemente, todas as praticantes de futebol e demais pessoas no Rio de Janeiro e no Porto que se dispuseram a colaborar de forma tão amável.

    Por fim, dedico este livro à Ramona Teixeira. O projeto que construímos, nesse mesmo período que relato, fez tudo fazer sentido e tornou o percurso muito mais seguro e agradável. Ao final dos agradecimentos da tese, eu escrevia aos que vão chegar, de quem tenho saudades, mas me dão força e certeza de continuar caminhando. Pedro, Paula e Flávia chegaram e seguem junto conosco, agora, nesse projeto de vida. Sempre em Frente!

    O autor

    PREFÁCIO

    Prefaciar a obra Meninas que jogam bola, escrita por Alexandre Jackson, é muito especial pelo afeto e amizade que nos unem desde a graduação em Educação Física na Universidade Gama Filho, na cidade do Rio de Janeiro. A curiosidade e o espírito crítico que pautaram sua trajetória acadêmica se confirmaram na escolha do tema de sua pesquisa de doutoramento, em que elegeu um estudo de temática contemporânea, intercultural, sobre experiências e rituais esportivos de mulheres praticantes de futebol no lazer realizado no Brasil e em Portugal, nas cidades do Rio de Janeiro e do Porto. Nesse esporte, elas vêm demonstrando seu potencial de subversão ao romperem barreiras impostas à sua inserção nos campos.

    A pesquisa destaca que as representações de feminilidade rígidas sustentadas no conceito heteronormativo e os discursos sobre o que é ou não "papel de mulher" na sociedade brasileira e portuguesa estão imbricados nas oportunidades de acesso das mulheres no futebol. Logo, a atualidade da temática eleita é conferida pelo debate subjacente às fronteiras simbólicas mais rígidas estabelecidas na sociedade, contestando – entre outras premissas – a máxima segundo a qual futebol, um esporte da tradição masculina, não é coisa de mulher. O livro aborda uma pesquisa etnográfica que relaciona interpretações acerca de futebol, gênero e identidade.

    Com muita sensibilidade para ouvir, o autor acompanhou mulheres praticantes de futebol na cidade do Rio de Janeiro em um equipamento público urbano de lazer multiesportivo, situado na zona oeste, no bairro de Campo Grande, e na cidade do Porto, em ringues, como são chamadas as quadras polivalentes, na região da Foz do D´Ouro, bairro nobre com localização próxima ao mar. Foi com um pouco mais de dificuldade que encontrou mulheres que se organizavam, com autonomia e coletivamente, para constituir seu espaço/tempo de lazer esportivo na cidade do Porto.

    Empreender tudo isso no campo de pesquisa foi possível pelo espírito colaborativo e carinhoso dessas mulheres, assim como pelo encurtamento de alguns acessos feitos por pessoas conhecidas que estreitaram os laços de confiança entre o pesquisador e as jovens. A descrição densa apresentada no livro corrobora na desconstrução das representações estereotipadas ancoradas nas sociedades brasileira e portuguesa, as quais, mesmo no século XXI, impõem às mulheres praticantes de futebol o rótulo de agressivas, grosseiras e rudes – portanto, estranhas, reafirmando que essa identidade se contrapõe ao modelo normativo de feminilidade e se desvincula do padrão heterossexual, estabelecido como norma em ambas as sociedades.

    A experiência absorvente entre o eu e o outro vivida pelo pesquisador trouxe a percepção de que a experiência de campo, com seus insights e imponderáveis, foi significativa para a interpretação de que a permanência das mulheres brasileiras e portuguesas nas "peladas de futebol" é subjetivada a partir de uma infância e juventude ativas, em que existe uma frequente relação com a bola, o corpo ativo e as práticas esportivas coletivas, construindo atitudes e comportamentos vigorosos e desafiadores. A escola também aparece nas narrativas delas como o espaço/tempo da iniciação esportiva, em que jogaram com meninos a maior parte do tempo, sem que se apresentassem histórias de acusações por essa escolha. Desse período escolar, traz na memória o reconhecimento de serem as meninas/raparigas que sabem jogar. E, em ambas as culturas, a aproximação delas e os primeiros contatos com o futebol são frequentemente creditados, na família, ao pai ou ao irmão. As praticantes de futebol produziram um espaço de vivência de expressões alternativas, afirmando diferenças e avançando sobre a ordem normativa constituída no Brasil e em Portugal. Elas mantêm o time de futebol de modo autônomo, organizando-se como uma equipe, disputando com outras equipes semelhantes e consolidando o futebol como parte de seus estilos de vida.

    Ludmila Mourão

    Rio de Janeiro, 20 agosto 2020

    Sumário

    I

    ENTRANDO NO CAMPO 19

    II

    CAMPO DE POSSIBILIDADES 39

    III

    AS BRUTAS E AS FRESCAS: O PROJETO SOCIAL ESPORTIVO E O JOGO DAS IDENTIDADES 65

    IV

    O RITUAL DE PERMANÊNCIA DAS NOVATAS 89

    V

    O CÍRCULO DAS LÍDERES 111

    VI

    O ESPORTE DAS SETE MULHERES 153

    VII

    REDES DE RELACIONAMENTOS 195

    VIII

    TRAJETÓRIA, CARREIRA E PROJETOS DAS MENINAS QUE

    JOGAM BOLA 233

    IX

    O MUNDO DO FUTEBOL DE MULHERES NO PORTO 245

    REFERÊNCIAS 267

    ÍNDICE REMISSIVO 273

    I

    ENTRANDO NO CAMPO

    As mulheres e os esportes de homem

    Anteriormente, ao início da incursão que levou a este livro, atuando como professor de Educação Física, eu coordenava uma equipe de trabalho em um projeto socioesportivo, com objetivos de transformar a condição de exclusão esportiva dos(as) menos favorecidos(as) daquela comunidade. Essa equipe era constituída por dedicados(as) professores(as) empenhados(as) em desenvolver ações socioeducacionais de lazer esportivo para comunidades do subúrbio do Rio de Janeiro. Na condição de líder, responsável pelo desenvolvimento de três modalidades esportivas, questionava a baixa participação feminina em handebol e basquetebol e cobrava resultado dos(as) professores(as) nesse sentido. Na terceira modalidade, o voleibol, o número de mulheres apresentava uma relação quantitativa com o dos homens mais equitativa. Esse fato era meu argumento principal para transferir aos/às colegas das duas primeiras modalidades a responsabilidade pela ausência de resultados semelhantes. Devido à minha formação e aos meus valores, o fato causava-me inquietação. Entretanto sem outros argumentos plausíveis, eu me aproximava da sugestão de que haveria uma prática discriminatória e preconceituosa por parte deles(as). Os(as) professores(as), por sua vez, contra argumentavam dizendo que, apesar de estarem abertos à entrada de mulheres, essas pouco apareciam, pois tinham dificuldades de se adaptar a um esporte com características masculinas. Isso era, segundo eles(as), um fato cultural e, portanto, uma situação insuperável para as intervenções pedagógicas.

    O que os(as) professores(as) queriam dizer com fato cultural? Elas(as) usavam – e muitas outras pessoas usam – a explicação da cultura como preexistente ao local onde o encontro entre as pessoas acontece. Eles(as) não estavam completamente errados(as). Na organização da vida cotidiana não estamos dispostos a negociar mudanças com as pessoas o tempo todo. Para a vida não ser um caos, consideramos que a cultura está dada no local antes de nossas ações.

    Becker², no entanto, considera cultura – e eu estarei me apropriando desse conceito de cultura no trabalho – como o entendimento compartilhado que ajuda as pessoas a atuar coletivamente. Se temos as mesmas ideias gerais em mente, dadas a princípio, e convergimos as ações por essas imagens, o que as pessoas fazem se adequará em conjunto.

    O processo cultural, então, consiste em pessoas agindo de acordo com seu entendimento do que os outros devem fazer sob as circunstâncias dadas. Assim, as pessoas fazem coisas juntas. Entretanto, segue o sociólogo, considerando que duas situações nunca são iguais, as soluções culturais que podem emergir são apenas aproximações. Com isso, continuamente, as pessoas precisam ajustar as situações de entendimento com os outros, elas, então, além de ter um mapa de orientação, também criam cultura continuamente ao resolver as situações de contingência.

    Considerando esse conjunto de regras de interações sociais como constituinte das estruturas mais amplas, podemos entender a cultura ou a sociedade, pela própria natureza dinâmica que as constitui. Sendo assim, em constante mudança.

    No mesmo local, onde o propósito coletivo era perseguir a democratização das práticas de iniciação e lazer físico-esportivos, observava a distância mulheres que jogavam futebol. Ao contrário das turmas de handebol e basquetebol, a turma de futebol era numerosa e com frequência mais constante das praticantes nas aulas do que nas outras modalidades de esportes coletivos.

    O que pude verificar de diferente na situação, à primeira vista, era que nossas turmas de handebol e basquetebol eram mistas, enquanto a turma de futebol era só de mulheres; nossos professores estavam mais presentes e intervindo pedagogicamente de forma diretiva, enquanto na outra turma o professor, embora presente, parecia apenas assistir aos jogos desenvolvidos por elas; além disso, nas reuniões administrativas e pedagógicas que eu participava com meus pares do local, ao contrário de nossas turmas sempre elogiadas, frequentemente existiam reclamações sobre condutas indevidas daquelas mulheres e de negligência de seus professores. Essa situação era para mim um paradoxo, pois entendia que a turma acusada de insucesso, com os métodos e resultados questionados, era mais inclusiva que as minhas no que se refere à participação de mulheres, historicamente menos favorecida no universo do lazer esportivo.

    Parte dos(as) professores(as) que atuavam em minha equipe explicava a maior frequência e as atitudes das mulheres da turma de futebol como mais uma evidência do argumento utilizado por eles(as) para a ausência feminina em suas modalidades. Eles(as) afirmavam que ali quem praticava esporte não era exatamente mulheres. Outros(as), menos incisivos(as) na argumentação, atribuíam as diferenças daquele grupo às características típicas de mulheres que jogavam futebol, e que por isso, aquele seria o lugar certo delas. Confessavam ainda, que não saberiam como lidar, se elas estivessem em suas respectivas modalidades.

    Na definição de Goffman³, o que estava acontecendo entre as pessoas naquele projeto esportivo, dando explicações sobre nós mesmos e sobre as praticantes de esportes, é a imputação de identidades sociais. Nós estávamos tentando estabelecer para o outro a expectativa que existia sobre os atributos que cada um dos envolvidos deveria apresentar, de acordo com a posição em que cada um se encontrava. Goffman explica que, quando em interação, a sociedade nos oferece esse mecanismo de expectativas normativas em cada situação, para que por meio delas, possamos tranquilamente iniciar e manter relacionamentos com outras pessoas não familiares. Assim, por exemplo, eu esperava que os meus colegas preenchessem a minha expectativa do que deveriam fazer educadores. Eles, para minha angústia, identificando-me no papel de líder e chefe, esperavam que eu solucionasse a própria polêmica que consideravam eu estar inventando.

    Todos ali, na busca por solucionar os problemas, entre os quais a participação de mulheres em esportes coletivos de confronto, partimos de um retrospecto em potencial, uma identidade social virtual⁴ que reconhecíamos com o nome mulher. Entretanto, para os(as) professores(as), as atitudes pessoais e o local onde essas mulheres estavam não era o que eles(as) tinham como a previsão inicial de normalidade para tal categoria. Eles passaram então a classificar subdivisões em que elas pudessem ser incluídas. Para restabelecer a ordem, eles classificaram todas elas, de acordo com seus referenciais originais do que seria a categoria mulher e como deveria ser a praticante de cada uma daquelas modalidades.

    Essa situação não é incomum e nem exclusiva da condição feminina. Para as pessoas que, como eu, participaram de diferentes ambientes multiesportivos, é notório observar que nos identificamos e somos identificados pelo esporte que praticamos e o grupo com o qual somos reconhecidos. Identificamos particularidades de comportamento e estilo diferentes vinculados a cada grupo esportivo. Nós tipificamos⁵ cada sujeito pelo lugar/esporte que este está. Não se trata, no entanto, de um olhar só para o outro, para o sujeito que pratica uma modalidade apaixonadamente, as características particulares do seu esporte também passam a ser, muitas vezes, como idealizações de atitudes e valores para si em outros segmentos da vida. Nesses casos, o esporte se transforma em estilo de vida, eventualmente, uma espécie de doutrina. Como veremos, a identidade pessoal se relaciona com a identidade do grupo, que por sua vez se apoia em um passado histórico⁶.

    Também como praticante de basquetebol na juventude e nos vários locais que atuei como professor de Educação Física, observei que é recorrente nessa tipificação que se diferencie as práticas esportivas mais adequadas para homens e mulheres. Decerto que eu não observo essas equações de uma forma homogênea. Nas minhas diversas vivências com o esporte, observei que, dependendo do local e estrato social ao qual pertençam os(as) praticantes, ou do nível de familiaridade que esses tenham com o ambiente de atletas, a percepção de que existe algo errado em mulheres praticando esportes de homem pode ser mais ou menos acentuada. No entanto as mulheres que praticam as modalidades de futebol, basquetebol e handebol, principalmente quando apresentam desempenhos ótimos para o jogo, são comumente identificadas como agressivas, grosseiras, rudes – são estranhas. Essa identidade se contrapõe ao modelo tradicional de feminilidade e, frequentemente, vincula-se a essa a percepção de um desvio do padrão heterossexual, estabelecido como norma em nossa sociedade. Decorrente disso, em muitas situações, tal percepção associa-se a uma descrição de personalidade negativa imputada às praticantes.

    Numa outra dimensão, se olharmos pela exposição da mídia, diríamos que, nos dias de hoje, as mulheres praticam indistintamente todos os esportes como os homens, sem acusações de ordem moral ou discriminatória explícitas. No entanto o fato de assistirmos a competições nacionais ou internacionais femininas não é uma garantia de que a prática desses esportes esteja se democratizando na mesma proporção para homens e mulheres e em todos os lugares. Nas modalidades femininas de basquetebol e futebol, por exemplo, as profecias da conquista de medalhas em eventos internacionais e a existência de ídolos como catalisadores de investimento e popularização não se confirmaram nos anos de 1990 e 2000, como aconteceu em outras modalidades.

    Como outro exemplo, temos a atleta Marta, que nos últimos anos tem se tornado uma referência de sucesso no futebol feminino. Ao desembarcar no Brasil com o troféu de melhor jogadora de futebol do Mundo, a atleta concedeu uma entrevista para TV explicando seu feito. Após agradecer de início aos familiares e justificar o prêmio devido a seu esforço pessoal – como de costume todos fazem nessas entrevistas – a feição do rosto dessa mulher foi se transformando de uma aparência tranquila e feliz do início da entrevista, para outra de constrangimento, em que os olhos perdidos já não se fixavam na câmera. E com a cabeça se esquivando para o lado e para baixo, em tom de desabafo, anunciou com extremo rancor – "isso é pra provar pra muita gente que sempre falou muita besteira sobre mim, sempre falaram o que não tinha nada a ver. Tá aí, ó!". Se não podemos saber o que se passava na mente da atleta, podemos perceber o incômodo vivido cotidianamente, e supor o quanto foi duro, durante a vida, as explicações que teve que dar para justificar a predileção pelo futebol. Se é assim com a melhor do mundo, também podemos supor o quanto este tipo de esporte tem que ter significado especial, para que muitas mulheres permaneçam nessas atividades no tempo de lazer.

    Esse fato ocorreu poucos meses depois da própria jogadora, juntamente à equipe brasileira, ter feito a final dos Jogos Pan-americanos de 2007, no estádio do Maracanã para um público, inesperado para muitos, de 50 mil pessoas. Não fosse suficiente o fato de um jogo feminino de futebol mobilizar tantas pessoas, não observei naquele dia, nenhuma reação discriminatória por parte da torcida pelo fato de estar ocorrendo um jogo com não exatamente-mulheres. Quanto à exaltação da torcida, a reação foi, em uníssono coro, exatamente para enaltecer as jogadoras, comparando-as como melhores que os homens, pois no mesmo período, esses não estavam alcançando resultados esperados. Mas essa demonstração de enaltecimento do jogo feminino a distância, seja na TV, seja nas arquibancadas, não parece se repetir na mesma proporção, quando se trata de incentivar pessoas com que se tenha maior familiaridade ou ocupando o mesmo espaço de convivência.

    Enfim, eu precisava de respostas que explicassem, mais claramente, como esses esportes

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