Quereres de Caetano Veloso: Da canção à canção
De Leandro Maia
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Quereres de Caetano Veloso - Leandro Maia
PREFÁCIO
Mais de quarenta anos atrás, aluno da graduação de Letras ainda, lembro-me de que fiz um trabalho que ficou bacana – daqueles que o tempo não apaga da memória. Depois virei professor no mesmo curso de Letras e sei bem que alunos de graduação se esquecem de quase tudo em pouco tempo. Mas este ficou. Era sobre o tema do infinitivo flexionado
. Era para o grande Celso Luft, que me deu A – coisa de lembrar para sempre, claro.
Não vou abrir uma gramática recente para conferir, porque corro o risco de não encontrar o fenômeno com esse mesmo nome – assim como a omoplata virou escápula e a rótula virou patela, também uma série de fenômenos da linguagem ganhou novas descrições científicas e, com elas, novo nome. Talvez isso que se chamava de infinitivo flexionado seja hoje conhecido como... nem é bom imaginar.
O assunto, porém, sei que segue vivo. Trata-se dessa peculiaridade da língua portuguesa, um (como se dizia) idiotismo, uma singularidade: o infinitivo (aquele estado em que o verbo tem seu r
final: ser, viver, sair, morrer, repor) é flexionável. E a gente pode dizer o fato de termos ido bem na prova nos credencia para a aprovação
, sem qualquer dificuldade de entendimento. E ali está: termos, um infinitivo flexionado.
O infinitivo, junto com o gerúndio (aquele que termina em – ndo) e o particípio (dado, ocorrido, posto), é uma forma verbo-nominal do verbo. É verbo, aquela palavra que se modifica para dar notícia de tempo, modo e pessoa, mas é também nome, isto é, pode ser usado como substantivo ou adjetivo, que flexiona em gênero e número. Uma coisa que tem duas naturezas em si mesma: um ser híbrido, anfíbio, bipolar.
Sua ocorrência e a estrutura que ele implica, que eram o tema daquele trabalho, não interessam aqui. Só o que eu quis foi dizer que eu presto atenção no fenômeno faz muito, muito tempo, sim, senhor.
Aí, uns anos depois, vem o Caetano com O Quereres. Era o ano de 1984, era o sensacional disco Velô. Assim como eu, muitos milhares de ouvintes e apreciadores do artista recebemos uma massagem, um do-in cósmico em nossa linguagem, na língua que usamos, quando ouvimos a canção – que faz par, no disco, com outro clássico no tema, Língua
, aquela que faz toda uma rememoração de aspectos, protagonistas, limites da cultura da língua portuguesa, não só no Brasil. Gosto de ser e de estar
, diz essa canção, em certo momento, jogando luz e som sobre mais essa particularidade de nossa língua materna, que divide em dois verbos o que outras tratam num só: em língua inglesa, aquela que paira sobre nós o tempo todo, o verbo to be
dá conta das duas dimensões, ser e estar, que para nós são distintas, ser
para as durações, estar
para as brevidades.
Não, eu não reabilitei aquele velho trabalho, que ainda era recente na minha restrita história pessoal. Mas o infinitivo flexionado turbinou umas quantas conversas com amigos, com a namorada, com colegas. E ainda mais com esse artigo na frente, este o
definido, definitivo: o verbo, sem qualquer dúvida, tinha sido transfigurado em nome, substantivando uma ação, a de querer, que por outro lado não é bem uma ação, mas um estado – paradoxalmente é mais ser do que estar, se é que me permitem o trocadilho.
Estou aqui nesta trip rememorativa que nada tem diretamente a dizer sobre o excelente trabalho do Leandro, que o leitor vai conhecer e curtir em seguida. Mas é tudo para fazer uma onda, um rufar de imaginários tambores, um abrir enfático de cortinas de forma (ei, um rufar
, um abrir
!) para chamar a atenção do distinto público para o que interessa.
E o que interessa é que o Leandro pegou esse objeto sublime que é a canção O Quereres e fez dela um passaporte para uma linda viagem. Viagem que passa pelos territórios conhecidos da letra e da melodia, essas nossas íntimas conhecidas mesmo quando não ganham esses nomes: vai o guia Leandro mostrando isso e aquilo, ser e estar, querer e ganhar, e a gente aqui apreciando.
Mas o mais importante nem é isso, ainda. O que de fato eu preciso aqui é pôr no centro do facho de luz – eu, neste prefácio, como o mágico de subúrbio que antecede o artista principal e realmente valoroso chamado Leandro Maia – é que não havia um roteiro claro e único, nítido e já trilhado, para este estudo. O autor precisou forjar sua espada analítica enquanto a canção já estava no ar e o estudo tinha começado.
O senhor pode achar pouco, mas não deve.
Estudar canção na universidade não era e nem é ainda um passeio trivial. Objeto artístico ao mesmo tempo muito familiar (que a gente escuta, assobia, rememora com intimidade) e muito mergulhado no mercado (coisa que os intelectuais costumam tratar com distância), a canção, quando vista desde os jardins cultivados da academia, é um ser estranho, parte música e parte literatura, parte vivendo de performance ao vivo, mas parte sobrevivendo em estado mais frio (na memória, por exemplo). A canção é uma coisa híbrida, anfíbia, bipolar...
Ei!
O Quereres, de Caetano Veloso: duas vezes misturado.
Querido leitor, esqueça essa conversa toda. Vá direto ao texto do Leandro, claro e iluminador, ao mesmo tempo analítico e admirativo, que não tinha roteiro prévio e precisou construir seu método enquanto o objeto lhe sorria, enigmático: tu me queres entender, Leandro? Então vem.
O Leandro foi, e indo com ele a gente sai, lá no final, com uma experiência rigorosa e amorosa de análise e de interpretação. Músico, professor de música, mestre em Literatura, doutor em uma coisa híbrida, anfíbia, bipolar que é a poética da canção – com vocês, o meu amigo Leandro Maia!
Luís Augusto Fischer
Professor Titular de Literatura Brasileira na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
APRESENTAÇÃO DO AUTOR
Este livro origina-se da dissertação de mestrado orientada por Luís Augusto Fischer e coorientada por Celso Loureiro Chaves no programa de pós-graduação em Letras da UFRGS. Trata-se de um estudo, talvez o único no Brasil com este formato, que ousou focar em apenas uma única canção. Considerando todos os aspectos envolvidos no pequeno universo de cada canção – texto, melodia, harmonia, arranjo instrumental, intertextualidade, contexto e, principalmente, a relação existente entre letra e música na criação de significados – é aceitável dizer que dentro de cada canção exista um livro escondido. O Quereres (Veloso, 1984) é uma metonímia da canção brasileira em si. Neste sentido, partindo de uma amostra, buscam-se reflexões sobre a natureza do gênero Canção, cujo conceito é sempre escorregadio e difícil de apreender, apesar de sua aparente simplicidade.
O Quereres, de Caetano Veloso, é a sétima faixa do disco Velô, de 1984. Este trabalho analisa esta obra utilizando instrumentais teóricos provenientes das áreas de música e de letras, considerando-se canção
como um gênero próprio que possui interfaces com a literatura e com a música, ao mesmo tempo em que se revela autônomo e de difícil categorização. Este trabalho está organizado a partir do estabelecimento de dois principais pontos de vista analíticos, denominados aqui de Intracancionalidade (intramelódico-textualidades) e Extracancionalidade (extramelódico-textualidades). O primeiro trata da relação interna dos elementos presentes na canção tais como texto, melodia, ritmo, harmonia, arranjo e interpretação: a conexão, propriamente dita, entre letra e música na produção de um discurso cancional. O segundo, pondera a presença implícita e explícita de elementos externos, incluindo a relação com outras canções, com outros autores, com a tradição poética luso-brasileira, a presença de elementos intertextuais, além da possibilidade de diálogo com elementos da arte, da cultura e do conhecimento suscitados a partir de um atento processo de leitura-escuta. Busca-se, assim, um procedimento analítico que contemple a integridade da obra que conhecemos como canção
, evitando a separação entre letra e música. Realiza-se, de viés
uma abordagem que utiliza O Quereres como um ponto-chave de recorte na obra de Caetano Veloso, uma lente que nos auxilia a compreender a poética deste compositor que considera a