O Blecaute
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Sobre este e-book
Em uma cidadezinha no norte da Espanha, a eletricidade misteriosamente parou de funcionar. Pilhas, baterias, celulares, veículos ou máquinas de qualquer tipo não servem mais. O governo envia vários agentes para investigar o assassinato do dono de um dos bares da cidade, o estupro de uma moça e o suicídio do padre da capela. Aparentemente, todas essas mortes estão relacionadas com o blecaute.
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O Blecaute - Esteban Navarro Soriano
O Blecaute
Esteban Navarro Soriano
––––––––
Traduzido por Valquíria Pereira Bosqueti
O Blecaute
Escrito por Esteban Navarro Soriano
Copyright © 2023 Esteban Navarro Soriano
Todos os direitos reservados
Distribuído por Babelcube, Inc.
www.babelcube.com
Traduzido por Valquíria Pereira Bosqueti
Babelcube Books
e Babelcube
são marcas comerciais da Babelcube Inc.
O BLECAUTE
Esteban Navarro
esteban.orravan@gmail.com
––––––––
© Esteban Navarro Soriano. Julho de 2018
Capa: Shutterstock.
ISBN: 9781980898047
ASIN: B07D6CXXG6
É estritamente proibido, sem a autorização por escrito do titular dos direitos autorais, sob penas estabelecidas por lei, a reprodução parcial ou total desta obra por qualquer meio ou procedimento, incluindo xerox e processamento de computadores e sua distribuição por aluguel ou empréstimo público de cópias.
Primeira revisão em outubro de 2019
Para Esther. Para Raúl. Para Rufus.
Para minha família. Para minha casa.
O único mistério do universo é que existe um mistério do universo
.
Fernando Pessoa.
Índice
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Nota do autor
Mais romances
Capítulo 1
Maria Cifuentes empurra a porta da farmácia Larraga, ouvindo na hora, o ranger das dobradiças envelhecidas e o estalar da madeira. As dobradiças certamente precisam de óleo. A campainha toca avisando que alguém está entrando pela porta. Do interior do pequeno comércio, dirigido pela senhora Remédios Larraga, vem o cheiro característico de medicamento. Maria sabe que ainda terá que esperar pelo menos alguns minutos até que a dona passe pela cortina fina que separa a sala dos fundos da farmácia e apareça atrás daquele balcão tão antigo quanto a própria farmácia.
— Espere um minuto, já vou sair. — Uma voz fraca é ouvida ao longe.
A senhora Larraga fala da sala dos fundos. Sua voz aguda preenche os quase quatro metros quadrados do estabelecimento que seu pai inaugurou já há cinquenta anos, desde que em 1966 decidira abrir uma farmácia no andar térreo da casa que sua família herdou das unidades do exército franquista. Naquela época, se conhecesse as pessoas certas, podia-se obter a autorização necessária, evitando-se os entraves de distância e população exigidos por lei. Nos últimos anos, Remédios dirigiu a farmácia com o marido, até que em 2011 ele morreu de câncer. Nenhuma das duas filhas, que agora moram em Madri, quis continuar com os negócios da família, obrigando Remédios a continuar sozinha após a morte do marido. A farmácia foi um bônus da qual Mariano Larraga se beneficiou, graças ao seu passado falangista, ao fundar a única farmácia de Novesilla, com uma população de não mais do que mil habitantes e localizada na Jacetânia[1] aragonesa. Mariano foi o primeiro prefeito assim que a guerra acabou. E durante a sua gestão, o vitral com o brasão de Franco foi instalado na escadaria do primeiro andar da prefeitura e permaneceu intocável, apesar de os vereadores do município de esquerda terem pedido a sua retirada em várias ocasiões.
— Não estou com pressa, Srª Larraga — avisa Maria, olhando para o aparador em estilo modernista com potes de vidro vazios, cujos rótulos trazem o nome em latim.
O pinho tinha sido envernizado tantas vezes que o esmalte começou a descascar, desenhando curiosas estrias que, longe de enfeá-lo, embelezam-no. Ainda assim, o pequeno vidro que o protegia estava imaculado, como se um mordomo eficiente o estivesse limpando constantemente e não deixasse a poeira assentar sobre ele.
Maria fez cinquenta anos, cinco dos quais teve que enfrentar um divórcio conflituoso que a mergulhou em uma depressão da qual já estava saindo. Divorciar-se em uma cidade como Novesilla não é fácil nem agradável. Pode-se dizer praticamente que metade dos habitantes é a favor do marido e a outra metade a favor da esposa. Ninguém desconhece que surgiu uma relação amorosa entre ela e Pedro Monistrol, o dono da fábrica de madalenas[2]. Demorou muito para ambos se separarem de seus respectivos parceiros, mas o amor acabou triunfando e Maria conseguiu se divorciar, assim como Pedro; embora morassem separados e concordassem que ainda era muito cedo para morar juntos. O ex-marido de Maria, Alejandro Sanchís, tem a mesma idade dela, os dois fizeram o ensino fundamental na escola pública e trabalharam ao mesmo tempo na única fábrica que ainda resiste inabalável ante o flagelo da modernidade: Madalenas Artesanais Monistrol, a genuína fábrica fundada por Salvador Monistrol em 1901 e que exportava seus produtos por toda a Espanha e para alguns supermercados da França. Maria e Alejandro tiveram duas gêmeas: Tatiana e Marina. Sendo Tatiana só um minuto mais velha que Marina. Trabalhar numa fábrica como divorciados, quando o dono da fábrica é o atual companheiro de Maria, gera uma situação complicada. Alejandro é segurança, empregado na empresa Segurmesa e conseguiu ser encaminhado para a Monistrol para poder trabalhar no mesmo lugar onde morava. Mas desde o divórcio com Maria, pediu para ir para o turno da noite para não se encontrar com ela.
— Já te atendo — fala a senhora Larraga enquanto puxa a cortininha de seda, semelhante a uma cortina de renda. Maria se surpreende que a cortina esteja sempre tão limpa; embora deduza que o fato de a dona da farmácia não ter netos correndo pela farmácia seja o motivo mais aceitável para a exata explicação da limpeza imaculada. Maria imagina suas duas filhas, quando ambas tinham quatro anos, correndo dentro da farmácia e projeta em sua mente a imagem daquela cortina convertida em uma tela de couro engordurada. — Nunca se para de colocar pacotes neste armazém apertado. — Desculpa-se pela demora no atendimento. — Meu Cândido — diz, referindo-se ao marido — mexia-se como uma enguia dentro de um gigantesco aquário, mas eu, dá para ver, mal tenho ânimo de sair por aí empilhando caixas que, embora pequenas, uma a uma somam muitas. Sabe o que dizem — se vira para Maria enquanto a olha por cima de umas lentes pequenas, das quais se destaca um cordão de ouro que as prende ao pescoço: — devagar se vai ao longe.
— Tem Paracetamol? — pergunta, ignorando as explicações que a idosa está lhe dando. —Atualmente, tenho dores de cabeça constantes.
— É a chegada da primavera. Sempre, ano após ano, a partir da primeira semana de fevereiro, os analgésicos e os anti-histamínicos são os medicamentos mais pedidos. Só posso dizer que quase não me sobram. E agora não posso pedir tanto como antes, por causa do prazo de validade — diz, ao ver que Maria se desinteressa pela conversa. — Tudo expira. Anos atrás, nada tinha data de validade, nem mesmo nós. — Ri de sua própria brincadeira e mostra um dente de ouro na dentadura superior, cuja cor combina com o cordão que segura seus óculos. — Mas agora tudo tem uma data de término. Uma caixa?
— Sim, uma já basta — responde Maria, sem perguntar que a farmacêutica fale sobre a primavera no início de fevereiro.
— Não acho que o barulho das máquinas da fábrica seja bom para a dor de cabeça. — A farmacêutica abre uma gaveta do aparador e pega uma caixa de Paracetamol genérico.
— Bem, não acho que esteja com dor de cabeça. Diria que está mais para uma enxaqueca. Terei de esperar o verão para que suma.
— Certamente. Embora na época do Natal seja quando vendo mais calmante. As ruas ficam cheias de neve suja e congelada e o frio penetra nos ossos dos novesillanos. Aqui, uma caixa. Não trabalha hoje?
— Sim, claro. Pedro me deixou sair alguns minutos para comprar o analgésico. — Maria pega a caixa do balcão e a coloca dentro de uma bolsa do tamanho de uma pasta de notebook.
Conhece a senhora Larraga e sabe que ela nunca lhe faria uma pergunta maliciosa que implicasse na relação que tinha com o dono da empresa onde trabalha.
— Pedro é como seu falecido pai; Rosendo era o homem mais agradável que um funcionário poderia ter como chefe. Nada era dito além do necessário, nem sequer um olhar atravessado.
Maria se lembra que a senhora Larraga conheceu o pai de seu atual companheiro e dono da fábrica de madalenas, já que, segundo diziam na cidade, a dona da farmácia tinha noventa anos; mesmo que não aparentasse.
— Quanto é?
A farmacêutica anota a quantia do medicamento em um pedaço de papel. Maria não se surpreende, pois sempre a viu fazer assim. Anota a quantia com uma caneta e entrega o papel à cliente, na forma de recibo. Sorri ao pensar o que aconteceria se um dia um fiscal da Receita Federal passasse por lá e visse como a farmacêutica preparava os rudimentares recibos.
— Pegue — coloca as moedas dentro de um cinzeiro de bronze no balcão, olhando em seguida para o relógio de pulso. Não quer voltar tarde para a fábrica e incentivar a fofoca entre os outros trabalhadores de que uma funcionária como ela se beneficiava do relacionamento amoroso com o dono. — Nossa, ele parou. — diz, procurando um relógio para confirmar a hora.
— Tem um lá. — A idosa aponta para a parede atrás dela.
Maria se vira e examina o relógio, um Ômega impecável com ponteiros de prata. São nove horas e cinco minutos, algo completamente impossível. Ela tem certeza de que saiu da fábrica alguns minutos antes das dez. Portanto, agora devem ser dez e meia, no máximo. Da fábrica até a farmácia são só dez minutos a pé.
— Funciona? — pergunta, franzindo a testa diante da coincidência de que os dois relógios pararam ao mesmo tempo.
A senhora Larraga olha atentamente para o relógio da parede, para o qual tem que se aproximar para que seus óculos de leitura cubram todo o mostrador. Maria nota a incrível altura da idosa, que chega ao relógio sem ter que subir em nenhuma cadeira.
— Não, não funciona. Deve ter acabado a pilha.
— Tenha um bom dia, Srª Larraga. — Maria se despede enquanto abre a porta e sai para a rua.
Nesse exato momento, as duas lâmpadas fluorescentes do teto da farmácia se apagam, deixando a drogaria em uma escuridão incomum. Maria já saiu e não se dá conta desse repentino blecaute.
Capítulo 2
Ele acordou quando o frio atingiu seus ossos. O cansaço das quase duas horas que dormiu naquela noite foi o suficiente para que uma lembrança recorrente viesse à tona martelando seu cérebro até o forçar a abrir os olhos.
Essa é a explicação
, disse a si mesmo quando começou a relembrar o ocorrido em 1946. Como pude ser tão idiota?
70 anos se passaram, mas agora sabia que aquele homem levara o seu projeto adiante, do qual mal falava quando tomava uma xícara de café com leite no café da manhã no bar, onde mergulhava a única madalena que o sustentava. Raquítico. Fraco. Durante os meses em que esteve em Novesilla, os vizinhos repararam nele. Parecia um vagabundo que fugira de algum país da Europa Central. Sentava-se na mesma mesa todos os dias e pegava um punhado de folhas que rabiscava sem parar, sob o olhar atravessado dos outros clientes. Só uma vez o viu falar com alguém. Foi na manhã em que Mariano Larraga entrou no bar. Observou o resto dos clientes costumeiros enquanto tomavam o café da manhã e depois foi para a sua mesa. Cumprimentou-o calorosamente e sentou-se ao lado dele.
— Como está?
O homem o olhou com pesar.
— Cansado, mas...
Ele não conseguiu continuar ouvindo o que diziam, os homens perceberam que estava prestando atenção neles e baixaram a voz.
Durante os meses em que ficou morando em Novesilla, alojou-se numa das casas próximas da capela românica do século XII e que foi parcialmente reconstruída no fim da guerra. Aquele aglomerado de casas formava a favela onde jardins abandonados e fachadas descascadas eram enchiam-se de calçadas rachadas e ruas cheias de mato que ninguém cuidava. Para os outros era um forasteiro, mas as relações entre o regime de Franco e o governo dos Estados Unidos iam bem, apesar de a Assembleia Geral da ONU condenar a ditadura espanhola e proibir sua adesão à organização. Ainda assim, em janeiro do mesmo ano, 1946, a IBM doou ao ditador a não desprezível quantia de 109.000 pesetas (pouco mais de 650 euros na época) para serem distribuídas entre os mais necessitados. O amigo americano não estava disposto a deixar o regime fracassar e, assim, perder um poderoso aliado na Europa do pós-guerra.
O americano invadiu a cidade à vontade. Todos sabiam que cada vez que enfiava a mão no bolso tirava um punhado de notas de cem pesetas com o semblante perverso de um Francisco de Goya que parecia conter naquele olhar os desastres da guerra. Bom pagador e bom morador, ninguém se perguntava o que fazia em Novesilla ou se fugia de alguém ou de alguma coisa. As feridas da recente guerra civil ainda não haviam sarado e as duas Espanhas ainda estavam há várias dezenas de anos de se fundirem. Com o tempo, os novesillanos se acostumaram a ouvir o motor Renault 4CV, preto, rodando por suas ruas, assim como se acostumaram a vê-lo estacionado na praça ou na rua, em frente ao velho casebre onde o americano se hospedava.
Mas setenta anos se passaram desde então, e só agora percebe o que aquele homem estava fazendo em Novesilla.
Capítulo 3
Depois que Maria saiu, a senhora Larraga foi tateando até a sala dos fundos, procurando a caixa de fusíveis. Tem a certeza de que a interrupção de energia elétrica se deveu a uma falha do diferencial. Em outras ocasiões, no inverno, quando ligava o fogão elétrico, as luzes se apagavam e resolvia isso erguendo a alavanca central do medidor de energia. Por alguns momentos, lembra-se dos anos da guerra civil, quando os bombardeios das Brigadas Internacionais cercavam Novesilla e os blecautes eram frequentes enquanto os Túpolev SB da aviação republicana sobrevoavam a cidade jogando bombas de cem quilos. Remédios tinha onze anos na época, mas se lembrava bem do pai, implorando para que ficassem quietos e não se mexessem. Seu pai escondia as filhas debaixo da mesa de pinho californiano da sala de estar, protegendo-as de destroços e pedaços de gesso do teto que estalavam pelo tremor das bombas cada vez mais precisas. Remédios apertava os olhos, esperando o explosivo que finalmente arrebentaria o teto adornado da velha casa e acabaria com a doença que os amedrontava naquelas primeiras semanas de 1937.
Roça os dedos calejados para garantir que a alavanca é a certa, mas erra, ao verificar que está voltada para cima, na posição correta. Com as pontas, toca nas outras duas e verifica que também estão voltadas para cima. Sai para a rua. O sol de fevereiro bate em seus olhos em um dia tão claro que sabe que vai fazer frio à tarde. Na praça, um grupo de mulheres conversa com um rapaz em uma motoneta. Isaac é o carteiro de Albamero. Ele parou quando sua motoneta travou o motor ao passar pelos prédios de Bermúdez. À sua volta, as mulheres formaram uma roda, perguntando se ele sabia por que cortaram a luz.
— Cortaram a luz? — pergunta Remédios.
Algumas semanas antes começaram as obras do reservatório e suspeitam que o blecaute repentino possa ter sido causado pelos movimentos de terra das grandes escavadoras que circulam diariamente na estrada que liga Novesilla a Albamero.
— Estou na mesma — Nicolau, dono do bar de mesmo nome, junta-se ao grupo.
— Você também está sem luz, Nicolau? — pergunta a senhora Larraga.
— Não. Não tenho luz no bar, nem em casa. — responde, virando a cabeça e apontando com o queixo para a parte de cima do bar. — Alguém tem algumas pilhas para esta lanterna?
— Que relíquia! — sorri Anselmo Crispín, um idoso que mora sozinho na última casa da rua Mayor. — Há séculos que não via uma dessas. Essas funcionam com uma pilha grande de formato retangular.
— Bem, não sei se terei alguma em casa. — Retruca Nicolau, contemplando a pilha como se fosse uma antiguidade.
— Pilha não — interrompe Gertrude, — mas posso contribuir com outra lanterna.
A idosa empurra a porta de sua casa, localizada na mesma praça, e entra passando pela cortina de cordas. Em poucos segundos sai do interior segurando na mão uma grande lanterna preta, que em sua mão parece um telescópio gigante.
— Bem, também não tem pilha — reclama, quando a lâmpada não responde.
— Deixa comigo — intervém Nicolau, largando sua lanterna e a enorme pilha quadrada para liberar as mãos. — Não, também não funciona. Que esquisito tudo isso, não tem luz e as pilhas também não funcionam.
Todos voltam o olhar para Isaac, o carteiro de Albamero, que continua obcecado em ligar sua motoneta apertando o botão no guidão.
— Vamos, vamos! Assim não poderei terminar a entrega a tempo.
Nicolau abre a porta de seu Seat León, que estacionou em frente ao bar. A luz de dentro não acende. Buzina repetidamente, mas a buzina não funciona. Põe a chave na ignição e gira até não aguentar mais, mas o motor nem mesmo arranca, nem as luzes do painel se acendem.
— Mas que droga está acontecendo aqui? — Suas bochechas ficam vermelhas.
— Meu relógio não funciona — comenta Anselmo Crispín enquanto balança o braço para cima e para baixo como se estivesse desfilando no exército.
— Nem o meu — confirma Gertrude, batendo com o dedo no mostrador do relógio de pulso.
— Merda de celular! — exclama Carmen, uma garota de dezoito anos com grandes olhos castanhos, que espera o namorado junto com a multidão.
— Sério que o seu celular não está funcionando? — interessa-se Nicolau.
Carmen abre os enormes olhos e o observa como se houvesse uma aparição bem ali.
— Ele morreu — afirma entristecida. — Nem mesmo o botão liga/desliga responde.
Aurora ergue o pescoço, deformado pelo bócio, pela fresta da janela de sua casa.
— O que foi? — pergunta sem se dirigir a alguém em particular. Por meio de sua enorme cabeça pode-se ver as frigideiras penduradas na parede da cozinha.
— Os eletrodomésticos não funcionam — resume a senhora Larraga. — Nem relógios, nem celulares, nem carros, nem motos.
A farmacêutica tem que forçar a voz para que todos possam ouvi-la.
— Espere um minuto — diz Aurora, levando sua enorme cabeça para a cozinha.
E enquanto Carmen continua mexendo no botão de seu telefone, o carteiro começa uma viagem cômica empurrando sua motoneta pela encosta íngreme que liga a Plaza de la Constitución à caixa d'água, com a intenção de ligá-la. Ao subir a rua Joaquín Costa, passa em frente ao bar Silvia. Gerardo Jardiel, o dono, aparece ao ver o jovem arrastando sua motoneta. Sua figura esquelética assoma sob a soleira.
— Quer que te ajude? — oferece-se ao ver que as forças do jovem estão acabando.
— Não se preocupe, Gerardo. — Arqueja. — Algo está acontecendo na cidade, pois a eletricidade não funciona. Nem nas casas, nem nos veículos. Imagine, — observa — nem mesmo as lanternas acendem.
Gerardo ainda não havia acendido a luz do bar.
— Mas que droga... — brada, enquanto liga o interruptor da luz. — Eu também não tenho eletricidade.
— Já te disse. A cidade ficou às escuras.
Mais adiante na praça, Nicolau entra em seu bar e procura algum aparelho que funcione com eletricidade ou pilhas. Acha um despertador, uma calculadora e um inseticida que pulveriza de forma intermitente.
O grito no céu é de Aurora, quando aparece pela porta de sua casa gritando.
— Está morrendo, está morrendo...
Seu pescoço parece um enorme balão flácido prestes a estourar.
— O que foi? — pergunta Nicolau.
Em sua mão, segura vários aparelhos que encontrou dentro do bar, mas no momento nenhum está funcionando.
Vários vizinhos entram na casa de Aurora. Deitado no chão está seu marido, Feliciano. Sua aparência é deplorável e sua boca está contraída em uma careta desagradável de dor.
— Você não estava estudando enfermagem? — grita Nicolau da soleira da porta.
— Sim — balbucia Carmen com uma expressão de horror.
— Então entre, pois este homem está morrendo.
— É o coração — Aurora começa a dizer. — É o coração que não funciona.
— Deve ser uma parada cardíaca — sugere Nicolau, tentando colocar o corpo de lado. — Venha, mocinha — indaga à Carmen. — Nessas aulas devem ter te ensinado a fazer manobras de reanimação.
— Não há nada a fazer — a senhora Larraga fala lentamente da porta da casa. Sua enorme figura cobre a pouca luz que vem da rua.
Carmen se ajoelha ao lado do corpo e aperta com toda a força o esterno de Feliciano.
— Por que diz isso, Remédios? — Aurora pergunta.
— Porque me lembro que seu marido colocou um marca-passo no coração. E esses aparelhos funcionam com eletricidade.
E assim que acaba de falar, a morte apaga qualquer sinal de sofrimento do rosto de Feliciano, como se por um momento sua cara voltasse aos tempos em que estava bem.
Capítulo 4
Úrsula Pereyra percorre lentamente o longo corredor do segundo andar onde fica a sede do Regime Interno da Escola Geral de Polícia de Ávila. Sabe que, se acelerar o ritmo, sua frequência cardíaca aumentará e será difícil respirar. E não quer parecer ansiosa na frente daqueles inspetores que a esperam. O calor de junho gruda a camisa do uniforme em seu corpo e sente-se estranhamente engraçada com o rabo de cavalo regulamentar caindo nas costas. Nem sequer sua altura, pouco mais de um metro e setenta, é suficiente do ponto de vista estético, para deixar aquele rabo de cavalo atraente.
No meio do corredor passa por um colega, também subinspetor, que imediatamente reconhece.
— Luís?
— Úrsula?
— Também está para ser promovida?
Luís interrompe o passo e se aproxima do rosto de Úrsula para cumprimentá-la. Úrsula sopra dois beijos no ar, ao