Saúde e psicologia: Dilemas e desafios da prática na atualidade
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Saúde e psicologia - Sandra Fernandes de Amorim
PREFÁCIO
Ao receber o convite das professoras e amigas Sandra Lopes e Sandra Amorim, organizadoras do material, para elaborar o prefácio deste livro, me senti muito honrado, pois quando entrei em contato com os textos e com os profissionais que os escreveram percebi a responsabilidade a mim delegada, pelo histórico de todos os autores no campo da saúde, tanto do ponto de vista teórico quanto prático.
Em um momento de tanta intolerância às diferenças e descaso com a saúde pública, associado ao nítido processo de desmonte do SUS, temos a oportunidade de discutir saúde em prol da sociedade, em especial das pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade social, papel primordial de todos que atuam e militam por uma sociedade mais justa – tarefa fundamental do psicólogo.
Trata-se de importante material no campo da psicologia da Saúde, para estudantes e profissionais que se interessam pela área. O livro Saúde e Psicologia: dilemas e desafios da prática na atualidade aborda temas fundamentais a serem enfrentados pela Psicologia em interface com todo o sistema de saúde. É sempre bom destacar que o diálogo com as demais áreas de saúde é aspecto fundamental para avançar da multidisciplinaridade para a inter e a transdisciplinaridade, sempre visando o melhor atendimento do sistema, o que fica evidente no transcorrer dos capítulos desse livro.
Alguns temas abordados nesse projeto já fazem parte da tradição das práticas em Psicologia. Por exemplo, o atendimento na atenção primária à saúde, que além de ter ações clínicas diretas aos usuários, intervém nos fatores de risco próprios aos territórios. O livro também aborda outros temas de grande relevância relacionados à saúde pública; a questão dos pacientes crônicos e psicossomáticos e da psicoterapia na atenção básica no SUS; o plantão psicológico na saúde pública; a atuação do psicólogo em situações de emergências e desastres; os desafios da avaliação psicológica de candidatos à doação de órgãos; a ação da psicologia no tratamento cirúrgico da obesidade; a atuação do psicólogo no ambiente de UTI; a reabilitação neuropsicológica na prática clínica; o morrer e o luto no contexto hospitalar e os desafios na organização e coordenação de serviços de psicologia hospitalar na rede pública.
O livro aprofunda a discussão sobre desafios emergentes aplicadas à saúde, como a saúde mental na interface com as questões da migração, tema fundamental na realidade brasileira e mundial, que atinge milhões de pessoas no Brasil e no mundo; a questão dos transgêneros, tema atualíssimo e de grande relevância social, que tem na psicologia importante aliado no combate à intolerância fundamentalista, contribuindo com odesenvolvimento da cultura da diversidade; a reprodução assistida, gestação de substituição e suas repercussões.
Vale destacar o carinho e o respeito com que as várias abordagens do campo psicológico tratam o tema, indicando que independentemente da orientação teórica, as diversas vertentes têm contribuições a dar, enxergando na diversidade teórica possibilidades de atuação, agregando as várias formas de pensar e atuar na saúde.
Parabenizo mais uma vez a todos os autores pela elaboração dessa obra que trazem importantes contribuições para aqueles que vivem e pensam o cotidiano da saúde, sem nunca perder a dimensão social da nossa profissão, garantindo a práxis nas nossas ações.
Prof. Dr. Marcos Vinícius de Araújo
Coordenador do curso de Psicologia da
Universidade Presbiteriana Mackenzie
APRESENTAÇÃO
A realização deste livro é fruto de um sonho acalentado pelas organizadoras de visibilizar e discutir os desafios e dilemas vivenciados, muitas vezes anonimamente, pelos profissionais no cotidiano das instituições de saúde.
As organizadoras se valeram, para idealizar e materializar este projeto, de suas próprias inquietações e, porque não dizer, de algumas indignações que a atuação direta, o ensino, as supervisões e as orientações provocam, bem como também os questionamentos e reflexões que produzem.
O foco deste material é evidenciar o fazer construtivo, crítico e criativo do psicólogo nos mais diferentes contextos de saúde em que está inserido, considerando áreas já tradicionais e outras nas quais os avanços técnicos em saúde vêm exigindo um olhar para novas demandas que se apresentam na contemporaneidade.
Em nenhum momento acreditamos que a prática se dá sem um referencial teórico e metodológico que norteie o seu pensar e o seu agir, pois isto seria imprudente. No entanto, sabemos que diversas situações exigem decisões rápidas, eficientes e eficazes, não antes vistas, acompanhadas por condições adversas e com escassos recursos. Talvez seja exatamente aqui que resida a grandiosidade, a inventividade e a versatilidade do artesão
da saúde mental.
Concordamos que falar de saúde em nosso país no momento atual talvez seja uma das tarefas mais árduas e ingratas em decorrência de tudo que estamos assistindo em termos econômicos, político-ideológicos e até logísticos, mas encontrar alternativas para contribuir para o bem estar da população, para a melhoria na qualidade de vida, para a descoberta de sentido de vida, considerando um viver mais satisfatório e feliz, seja a maior, a mais importante e gratificante tarefa do psicólogo da saúde.
A missão de concluir este projeto só foi possível graças à gentileza e dedicação dos colegas, que prontamente aceitaram nosso convite.
Agradecemos aos autores por compartilharem conosco suas experiências e por acreditarem neste projeto.
E, por fim, aproveitamos para convidar o leitor a adentrar neste território desafiador e se permitir ser conduzido, através da leitura dos temas, ao encontro com a riqueza, a diversidade e complexidade próprias da natureza humana e, desta forma, poder tecer suas próprias reflexões e considerações a respeito.
Boa leitura!
Sandra Amorim e Sandra Lopes
1. A INTERFACE DA PSICOLOGIA COM A ATENÇÃO BÁSICA E OS DESAFIOS DE UMA ATUAÇÃO TÉCNICA E POLÍTICA
Flavia Fusco Barbour¹
Beatriz de Oliveira Leme²
Introdução
A proposta deste capítulo é discutir a atuação do psicólogo na Atenção Básica de Saúde no Brasil.
A Atenção Básica é também chamada de Atenção Primária à Saúde em documentos internacionais, onde normalmente os termos se equivalem. Para fins deste capítulo, após as definições necessárias, será utilizado o termo Atenção Básica, por ser esta a nomenclatura que consta oficialmente na maioria dos documentos brasileiros.
Serão apresentadas as características que compõem esse nível de atenção em saúde e suas diretrizes que norteiam o trabalho do psicólogo nesse campo de atuação.
Por fim, serão apresentadas reflexões referentes à formação do psicólogo no Brasil e seus desafios para uma atuação condizente com a realidade encontrada nos serviços de saúde da Atenção Básica.
Política Nacional de Atenção Básica
A Atenção Primária à Saúde (APS) foi definida e reconhecida na Conferência Internacional de Alma-Ata, Cazaquistão, em 1.978. Esta Conferência produziu a Declaração de Alma-Ata, onde se enfatizou que os cuidados primários em saúde devem ser baseados em métodos e tecnologias práticas, ser cientificamente fundamentados, além de estarem ao alcance universal de indivíduos e famílias. O documento enfatiza ainda que os cuidados primários representam o primeiro nível de contato entre os indivíduos e o sistema de saúde, onde esses cuidados devem ser levados o mais próximo possível dos lugares em que as pessoas se encontram, vivem e trabalham, ou seja, no seu cotidiano (Opas, 2018; Rivero, 2003).
A APS passou a ser denominada no Brasil de Atenção Básica (AB) durante o processo de efetivação do Sistema Único de Saúde (SUS) através da Política Nacional de Atenção Básica (Pnab) criada em 2006 e revisada em 2011. A Atenção Básica caracteriza-se por um conjunto de práticas e ações em saúde, tanto no âmbito individual como no âmbito coletivo, que abrange a promoção e proteção da saúde, a prevenção de agravos, diagnóstico e tratamento, reabilitação e a redução de danos, além da manutenção da saúde (Giovanella; Mendonça, 2008; Brasil, 2012).
Os princípios e diretrizes preconizadas pela AB, apresentados adiante, estão em consonância com os princípios e diretrizes do SUS. O Sistema Único de Saúde foi criado em 1.990, tendo como foco não apenas a doença, mas também o cidadão, além de organizar a hierarquização do sistema de saúde em níveis de complexidade para atender as diferentes demandas da população do País (Brasil, 1990).
A AB é um sistema complexo formado por estruturas físicas, programas, estratégias e tecnologias de saúde. O psicólogo está inserido nesse sistema complexo, atuando em Unidades Básicas de Saúde (UBS), nas Unidades de Estratégia de Saúde da Família (ESF), nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), nas equipes de Consultório na Rua, Serviços Residenciais Terapêuticos, entre outros dispositivos da rede. Também estão inseridos nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que, apesar de ser um serviço especializado em saúde mental, é parte integrante e fundamental da rede básica de atenção à saúde.
Este capítulo enfocará a atuação dos psicólogos nas UBS, ESF e Nasf, por serem os locais onde se encontram a maioria dos psicólogos. Vale ressaltar que diversos arranjos podem ser encontrados na rede de saúde, conforme a organização do município onde esse profissional está inserido.
Unidade Básica de Saúde, Estratégia de Saúde da Família e Núcleo de Apoio à Saúde da Família
As Unidades Básicas de Saúde estão instaladas próximas de onde as pessoas moram ou trabalham e é a principal forma de acesso à saúde de uma determinada população. Consistem em estruturas físicas de atendimento aos usuários do SUS e desempenham um papel importante no acesso e na qualidade dos serviços oferecida aos cidadãos (Giovanella; Mendonça; 2008; Brasil, 2012).
As UBS podem contar com diversos especialistas que variam conforme a organização de cada unidade; a equipe pode ser formada por psicólogo, assistente social, equipe de enfermagem e equipe médica, esta podendo contar com pediatra, ginecologista, psiquiatra, clínico geral, entre outros, a depender da necessidade local. O atendimento se dá através de demanda espontânea ou programada. No Brasil, este modelo vem sendo substituído pela Estratégia de Saúde da Família (ESF).
A ESF, anteriormente chamada de Programa de Saúde da Família (PSF), é considerada uma estratégia para uma atenção primária qualificada e resolutiva, sendo um dos pilares da reorganização do modelo de atenção em saúde no Brasil, tendo um território definido com uma população delimitada. A equipe de ESF é composta por médicos de família e comunidade/generalistas, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde (ACS). Quando a equipe é ampliada pode contar com um dentista, um auxiliar de consultório dentário e um técnico em higiene dental (Brasil, 2006a). O psicólogo não está previsto, oficialmente, na composição da equipe de ESF, mas atualmente, muitas unidades de ESF contam com psicólogos atuando junto a essas equipes.
A proposta da ESF é intervir não somente com ações clínicas diretas aos usuários, mas também intervir nos fatores de risco do território delimitado a que essa população está exposta. A ESF vem com o propósito de substituir o modelo tradicional de assistência, baseado em especialidades médicas, por uma atuação voltada às famílias e aos domicílios dos indivíduos (Brasil, 2006a).
Por sua vez, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf) são equipes multiprofissionais que atuam de maneira integrada junto às equipes de ESF. O Nasf é constituído por uma equipe de profissionais de diversas áreas, incluindo o psicólogo, que devem atuar compartilhando e apoiando as práticas em saúde nos territórios sob a responsabilidade das equipes de ESF. A composição dessas equipes de Nasf é definida pelos gestores municipais e pelas necessidades das equipes de Saúde da Família, conforme as demandas levantadas. O Nasf, diferente das UBS e ESF não se constitui como porta de entrada do sistema de saúde para os usuários, mas de apoio a essas equipes de ESF (Brasil, 2008).
Esta atuação integrada permite realizar discussões de casos clínicos, atendimento compartilhado entre a ESF e equipe Nasf, visitas domiciliares, construção conjunta de projetos terapêuticos, e tantas outras abordagens, de forma que se amplie e qualifique as intervenções no território e na saúde de grupos populacionais. Essas ações de saúde também podem ser intersetoriais (educação, jurídico, etc.), com foco prioritário nas ações de prevenção e promoção da saúde.
Feitas estas breves considerações a respeito dos equipamentos da AB, cumpre destacar que a Atenção Básica apresenta fundamentos e diretrizes que norteiam o trabalho desenvolvido pelos profissionais que atuam nessa área. O item que se segue busca delinear este contexto, com vistas a apontar para a atuação do psicólogo.
Intervenções do psicólogo na Atenção Básica sob a perspectiva das diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica (Pnab)
O trabalho do psicólogo na Atenção Básica acontece na interface da saúde coletiva com a saúde mental, e, neste cenário, o psicólogo necessitou adequar sua atuação, prioritariamente voltada à clínica individual para a coletividade. Isso implica uma ampliação do repertório deste profissional, que deverá ir além do arsenal teórico e técnico específico da Psicologia, abrangendo conceitos da saúde coletiva, epidemiologia, educação em saúde, entre outros, com a finalidade de desenvolver práticas que sejam condizentes com as diretrizes da Pnab.
A seguir serão apresentadas as diretrizes na ordem preconizada pela Política e discutiremos possibilidades da atuação prática do psicólogo em concordância com essas orientações.
Primeira diretriz
A primeira diretriz apresentada pela Pnab enfoca o embasamento da atuação em um território determinado, ou seja, programar e executar ações setoriais e intersetoriais baseadas nas condicionantes e determinantes da saúde daquela população, permitindo um planejamento mais adequado às necessidades de uma população/território específicos (Brasil, 2012).
Com relação a esta diretriz, o psicólogo vai desenvolver suas intervenções a partir do perfil populacional das pessoas que ali residem ou trabalham, respeitando as demandas específicas apresentadas por determinada população.
Segundo Barcellos (2000), a doença é a manifestação do indivíduo e a situação de saúde é a manifestação do lugar, pois contextos sociais são condições para a produção de doenças, o que tornaria o adoecimento indissociável à situação do local onde o indivíduo vive. Assim sendo, o psicólogo deve ouvir as queixas e as particularidades trazidas pelos indivíduos e isso pode ser compreendido à luz das teorias psicológicas, porém, o conhecimento do psicólogo sobre o local que esse usuário ou população estão inseridos possibilita uma compreensão mais ampla do caso e, consequentemente, ajuda na escolha da intervenção, tanto no âmbito individual, ou seja, com um paciente específico, como coletivamente, com uma população característica daquele território.
Nesse sentido, se uma unidade de saúde está inserida, por exemplo, em um local onde exista um número expressivo de imigrantes ou refugiados, os profissionais devem se atentar para as características específicas dessa população. Neste caso, a barreira da língua, as condições precárias que geralmente vivem e a dificuldade de acessarem os serviços de saúde, fazem com que o psicólogo lance mão de visitas domiciliares, plantões psicológicos para o acolhimento espontâneo, entre outros. Muitas vezes essas pessoas conseguem chegar apenas uma única vez ou de forma menos sistematizada aos serviços, e nem sempre aquilo que o psicólogo acredita ser o ideal é possível de ser concretizado. É preciso alinhar a atuação aos limites impostos pelas possibilidades de vida das pessoas.
O cuidado em saúde mental não é desvinculado do território e, portanto devemos entender também o que este território tem a oferecer como recurso para auxiliar nos manejos dos profissionais (Brasil, 2013).
Quando falamos de território, cabe especial atenção ao fato de que não apenas o usuário em atendimento e sua família estão no foco dos cuidados em saúde do psicólogo. É preciso dirigir a atenção e cuidados para toda a população que está naquele espaço, sendo necessário mapear os grupos de risco, desenvolver técnicas que sirvam não apenas para o paciente atendido, mas que tenha viabilidade para abranger todos que ali estão inseridos, uma vez que isto é parte fundamental de uma AB de qualidade.
O psicólogo deve elaborar suas intervenções a partir dessas vivências nos territórios. Tais especificidades de cada lugar exigem que o profissional da Psicologia tenha habilidades e dispositivos de intervenção que muitas vezes não estão nem em livros e nem em técnicas psicológicas.
Segunda diretriz
A segunda diretriz da Pnab estabelece o acesso universal e contínuo aos serviços de saúde, caracterizados como porta de entrada aberta e preferencial da rede de atenção; portanto, os serviços devem assegurar acessibilidade e acolhimento aos usuários daquele território, já que a acessibilidade é uma das principais preocupações desse nível de atenção (Brasil, 2012).
Esta diretriz possibilita que chegue ao serviço de saúde todo e qualquer tipo de adoecimento, inclusive os diferentes tipos de sofrimento psíquico.
A porta de entrada na AB é variada, ou seja, pode se dar através de encaminhamentos pelas equipes ou profissionais da própria unidade, por outras instituições da rede, como os Caps e por demanda espontânea.
No entanto, na AB nem sempre há uma porta de entrada exclusiva da Psicologia, o que significa que cada unidade deve se organizar de uma maneira para o acolhimento de usuários que precisem de algum tipo de cuidado em saúde mental.
Nas UBS o usuário pode procurar o psicólogo (caso haja na unidade) de maneira autônoma por sentir necessidade de algum tipo de ajuda deste profissional. Nestes casos, o atendimento à demanda espontânea deve ser realizado pelos psicólogos, principalmente em casos de pacientes em episódios de agudização e urgências variadas como em casos de violência, por exemplo.
O conhecimento desse pressuposto essencial da AB pelo psicólogo, faz com que sejam mobilizadas estratégias que estão muito além das tradicionais consultas agendadas. Caso contrário, corre-se o risco de não conseguir dar acesso e acolhimento necessários aos usuários daquele território. As portas de acesso precisam estar abertas para que essas pessoas sejam acolhidas e tenham suporte imediato, na medida do possível, quando sentirem a necessidade de ajuda psicológica (Barbour, 2012).
Para isso, triagens de portas abertas (sem necessidade de agendamento), plantões psicológicos e inserção do psicólogo em outros espaços de saúde com outros profissionais (ex: grupo de diabéticos, planejamento familiar, etc.) fazem com que seja possível que o profissional tenha uma atuação mais próxima dos pressupostos de acesso e acolhimento a demandas espontâneas.
A função dessas atividades é evitar filas de espera e ter uma resolutividade às demandas da população e não daquilo que o psicólogo imagina ser necessário, hipótese em que corre-se o risco de não encontrar ressonância nas necessidades da população.
Diante disso, parece incongruente que um serviço de atendimento psicológico na rede básica de saúde tenha filas de espera por tempo indeterminado. Manter essa disponibilidade aos usuários não se constitui tarefa fácil por diversos motivos (falta de profissionais, superlotação, etc.), porém, esse desafio é parte do trabalho de busca por tecnologias em saúde (Barbour, 2012).
A formação do psicólogo é, normalmente, fragmentada por campos de atuação (psicologia escolar, psicologia hospitalar, psicologia clínica, etc.) ou por ciclos de vida (infância, adolescência, adultos, idosos) ou ainda por transtornos, distúrbios e síndromes (neurológicos, psicológicos, etc.). Em razão de a AB ser porta de entrada para o sistema de saúde, todos esses públicos e campos aparecem para o profissional da Psicologia no seu cotidiano de trabalho.
A saúde mental não está dissociada da saúde geral e faz-se necessário reconhecer que as demandas em saúde mental estão presentes em diversas queixas relatadas pelos usuários, principalmente no contexto da AB (Brasil, 2013). A acessibilidade e o acolhimento pressupõem uma lógica de funcionamento e organização dos serviços que deve partir do princípio que a unidade deva receber e ouvir todas as pessoas que vão em busca de auxílio (Brasil, 2012).
Segundo Cassell (2004 apud Brasil, 2013, p. 94), é observável que existem pessoas que sofrem e não estão doentes (ou enfermas), e muitas podem estar gravemente doentes e mesmo assim não sofrer. Quem trabalha ou estuda o sofrimento mental na AB sabe que tristeza, desânimo, perda do prazer de viver, irritabilidade, dificuldade de concentração, ansiedade e medo são queixas comuns dos usuários. Com frequência, quem se queixa de uma delas, também se queixa de muitas das outras. Sendo assim, devemos estar atentos para manter um serviço de portas abertas para essas demandas.
Terceira diretriz
A terceira diretriz da Pnab consiste em desenvolver relações de vínculo e responsabilização dos profissionais inseridos no primeiro nível de atenção, o que equivale dizer que, as equipes devem garantir, através do vínculo, a continuidade das ações de saúde, pois a longitudinalidade é característica fundamental aos cuidados em saúde da população, já que esses usuários se inserem nos serviços em diferentes momentos de sua vida, e portanto, as equipes devem ser referência para o seu cuidado em saúde (Brasil, 2012; Starfield, 2004; Giovanella; Mendonça, 2012).
As ações desenvolvidas pelo psicólogo em um território geograficamente conhecido possibilitam aos profissionais uma proximidade com a vida dessas pessoas e o vínculo torna-se elemento fundamental no acompanhamento desse cuidado (Brasil, 2013).
Neste acompanhamento está implícita uma relação terapêutica de confiança e esta relação pode se desdobrar em duas perspectivas: a primeira para um trabalho de promoção e prevenção, que se dá quando o usuário não apresenta uma demanda específica de cuidado em saúde mental; a segunda se dá quando esse usuário passa por um processo de sofrimento e adoecimento e necessita de cuidados específicos. Portanto, o acompanhamento longitudinal oferece ao indivíduo o cuidado mais adequado quando este sentir necessidade, estabelecendo uma relação de confiança com o profissional ou com a equipe. Quando uma nova demanda surge, esta pode ser atendida de forma mais eficiente.
Na prática podemos pensar, por exemplo, o caso de um usuário que foi atendido pelo psicólogo em determinado momento de sua vida por apresentar sintomas ansiosos importantes; após melhora significativa deste quadro, recebe alta e, tempos depois (meses ou anos), este usuário passa por uma situação de luto e retorna ao serviço de psicologia da sua unidade de referência. O pressuposto de que esse usuário encontrará um profissional ou equipe que o conheça, fortalece a relação de vínculo e então se têm melhores condições de ouvir o que ele tem a dizer. Com isso, a segurança para realizar os novos cuidados e orientações a esse usuário se fortificam (Brasil, 2013).
Quarta diretriz
A quarta diretriz da Pnab trata da coordenação da integralidade; as ações programáticas e de demandas espontâneas devem ser coordenadas por equipes de saúde que atuam na AB, onde estas são responsáveis pela organização e articulação entre todos os níveis de atenção da saúde, incluindo encaminhamentos necessários para outros serviços como hospitais gerais, serviços especializados, entre outros (Brasil, 2012).
Essa integralidade implica que os equipamentos que compõem a AB devam fazer arranjos para que os usuários recebam todos os tipos de tratamentos oferecidos dentro da rede de saúde, incluindo também o encaminhamento para serviços especializados. Caso seja necessário o uso de equipamentos da atenção secundária e terciária, serviços comunitários ou outros, a AB deve fazer essa comunicação para alcançar a integralidade e coordenar esse cuidado. Deve-se reconhecer de maneira adequada problemas de todos os tipos apresentados pelos usuários, sejam eles funcionais, orgânicos ou sociais (Starfield, 2002).
O reconhecimento dessa complexidade de fatores implica na necessidade de compartilhar diagnósticos de problemas, propostas de intervenção e também soluções (Brasil, 2009).
Essa integração e compartilhamento podem acontecer tanto entre profissionais da mesma unidade como entre profissionais de unidades diferentes e ainda entre outros setores. A função de integrar o setor saúde a outros setores (intersetorialidade) busca otimizar os recursos disponíveis para lidar com determinada demanda.
O psicólogo pode desenvolver essa diretriz através de ações clínicas compartilhadas e também através de ações compartilhadas no território. Isso inclui fazer atendimentos e consultas em conjunto com outros profissionais, visitas domiciliares com outros membros da equipe e grupos compartilhados com a equipe de saúde. O profissional também consegue desenvolver projetos com as escolas, discutir casos com equipamentos do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e tantas outras possibilidades. Tais ações visam promover e deslocar os diferentes conhecimentos dos profissionais, conhecer o território onde o psicólogo atua e evitar os encaminhamentos tradicionais, substituindo-os pelos encaminhamentos implicados.
O encaminhamento implicado consiste em referenciar os usuários para outras unidades ou outros níveis de atenção de forma não redutora a um procedimento burocrático, algo frequente nos modelos tradicionais de assistência em outros níveis. A orientação atual é a de um encaminhamento em que aquele que encaminha se corresponsabiliza e participa ativamente de todo o processo de chegada do paciente a seu novo destino. Mesmo depois disso, permanece atento e ativo no desenvolvimento do caso (Brasil, 2013).
O psicólogo, caso necessite referenciar seu paciente a outros serviços, como o Caps, deve entrar em contato com esse equipamento, discutir o caso e verificar se houve adesão ou não, assim como pensar com os profissionais desse outro equipamento a melhor estratégia terapêutica para aquela pessoa. Ao fazer isso, o psicólogo que atua nesse contexto assume sua responsabilidade sanitária, não se eximindo do seu papel político na AB.
Quinta diretriz
A quinta diretriz da Pnab diz respeito à importância de estimular a participação dos usuários na construção do cuidado à sua saúde, pressupondo uma lógica mais centrada no usuário, estimulando assim sua autonomia (Brasil, 2012). O objetivo é buscar uma efetividade dos cuidados oferecidos através de um pacto entre profissional e usuário sobre os cuidados em saúde.
Esta diretriz da Pnab vai ao encontro da Lei 8080/90 (Lei do SUS), que em seu art. 7º, inciso VIII prevê o princípio de participação da comunidade (Brasil, 1990). A materialização deste princípio acontece na prática cotidiana e institucional de todos aqueles que constroem o sistema de saúde, buscando a solidificação de um dos principais pilares do SUS, que é a democratização das políticas de saúde (Guizardi, 2014).
Na visão tradicional, o profissional é tido como o detentor do saber, e o paciente entendido como aquele que é desprovido de conhecimento, sendo afastado de seu próprio cuidado. Há que se ter em conta que na AB a proposta é de uma relação mais simétrica com os usuários, pois o objetivo não é apenas o diagnóstico, mas também a terapêutica. Portanto, é imprescindível que