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Verdade, obscurantismo e práticas sociais
Verdade, obscurantismo e práticas sociais
Verdade, obscurantismo e práticas sociais
E-book91 páginas1 hora

Verdade, obscurantismo e práticas sociais

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Sobre este e-book

A obra do Professor Thiago Decat está dividida em dois capítulos. O primeiro com o título "Obscurantismo e infidelidade: o regime discursivo do Governo Bolsonaro", irá tratar de temas como: obscurantismo militante; regime de produção e circulação de produtos; descrédito de especialistas; desigualdade; desconfiança; Estado de Direito; controle social e outros. No segundo capítulo, "Contextualismo, justificação e verdade: a crítica de Habermas à radicalização Rortyana da virada linguística", são abordados temas como: pragmática de Rorty; análise habersiana da viabilidade do projeto de reeducação de Rorty; crítica ao objetivismo; Teoria consensual da verdade e duplo papel da verdade, entre outros.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de jun. de 2022
ISBN9786553870130
Verdade, obscurantismo e práticas sociais

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    Verdade, obscurantismo e práticas sociais - Thiago Lopes Decat

    Obscurantismo e infidelidade: o regime discursivo do governo Bolsonaro

    1. Obscurantismo militante

    No primeiro ano de seu governo, vimos Bolsonaro, seus ministros e secretários lançarem uma ofensiva sem precedentes contra a liberdade acadêmica, a cultura livre, a educação superior e a ciência. Isso não quer dizer que, mesmo no passado relativamente recente, não tenhamos visto o descaso de administrações federais com a ciência, a cultura e a educação, em geral, e as universidades públicas em especial. No entanto, pretendo argumentar que o que vimos desde 2019 representa não apenas uma diferença de grau em relação a atitudes análogas de governos anteriores, mas algo de uma natureza diferente.

    Não vou tratar aqui das medidas de priorização de gastos, cortes e reorganização administrativa, que expressam o descaso com estas áreas mencionadas. Tampouco me dedicarei às violações de direitos cometidas, ou aos indícios fortes da orientação política proto-fascista deste governo, como ficou claro no pronunciamento do secretário de cultura – que inequivocamente parafraseava o texto e reproduzia a estética de um vídeo de Goebbels – sobre o único futuro possível para a arte brasileira que, segundo este senhor, será heroica, nacionalista, imperativa ou então não será nada. (GÓES; ARAGÃO; SOARES, 2020) Meu objetivo é mobilizar alguns argumentos que possam nos ajudar a compreender as condições de possibilidade do regime discursivo desse governo. O que torna possível que membros do governo Bolsonaro reivindiquem correção para algumas das declarações que fazem na esfera pública, no sentido de esperar que sejam consideradas aceitáveis por seus ouvintes?

    Alguns exemplos podem ser instrutivos. Neste último ano vimos Bolsonaro instaurar não oficialmente uma versão tupiniquim-soft do macarthismo e estimular, em pronunciamentos e vídeos postados em redes sociais, a perseguição e denuncismo contra professores de orientação política de esquerda, ou mesmo apenas críticos do governo, sob a alegação de que realizavam uma doutrinação comunista dos alunos violando sua liberdade de pensamento. (BETIM, 2019) Vimos o presidente afirmar que a universidade pública não faz pesquisa, quando na verdade 95% de toda a pesquisa realizada no Brasil é feita nas e pelas universidades públicas, e no Ranking das melhores 10 melhores universidades do país, todas são públicas. (BARROCAL, 2019) Vimos o presidente chamar os estudantes que protestavam contra os cortes no orçamento federal da educação de idiotas úteis, a serviço de interesses inconfessáveis. (BULLA, 2019) Vimos o ministro da educação afirmar que a autonomia universitária, constitucionalmente assegurada, teria se convertido em soberania territorial para a institucionalização da prática de plantio de cannabis e elaboração de drogas sintéticas nos laboratórios da universidade, tudo sob o olhar complacente do corpo docente e funcionários. (BERMÚDEZ, 2019). Vimos o ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial, um físico respeitado no mundo todo, e inclusive homenageado em 2019 pela revista Nature, ser chamado de mentiroso e acusado de estar a serviço de interesses anti-patrióticos, em razão da divulgação de dados que demonstravam acelerado crescimento do desmatamento por queimadas na região amazônica. (GIRARDI, 2019). Posteriormente, diante da impossibilidade de continuar sustentando esta afirmação em face da confirmação dos dados, inclusive por imagens de satélite da Nasa, o presidente passou a acusar ONGs de realizar e estimular incêndios criminosos. Vimos o ministro da saúde dizer que não confia na pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz, uma das mais respeitadas instituições de pesquisa em saúde pública do mundo, quando esta concluiu não haver uma epidemia de consumo de drogas no país. Sem questionar sua metodologia ou seus dados, ele apoiou sua afirmação no fato alegado por ele de que qualquer pessoa que passeie nas ruas de Copacabana verá que elas estão vazias em razão da violência gerada pelo tráfico e no fato de que se tu falares para as mães destes meninos drogados que não há uma epidemia de drogas elas vão dar risada. (FURLANETO, 2019)

    A estas declarações, somam-se ideias de tipo semelhante, expressas pelo presidente ou por membros do governo como fundamento de ações estatais ou políticas públicas, que se distinguem das anteriores por não serem asserções particulares sobre fatos, mas explicações gerais ou teorias. Como exemplo temos a ideia de que a mudança climática é uma invenção baseada em ideias marxistas e globalistas, sustentada por Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores (DIAS, 2019), a ideia de que o criacionismo é uma explicação de mundo cientificamente aceitável e deve ser discutida em pesquisas científicas de nível superior, afirmada pelo novo presidente da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (SALDANHA, 2020), a ideia de que privar os alunos de informação sobre sexualidade e gênero os protegerá de abusos, defendida pelo próprio presidente (SAKAMOTO, 2019), a ideia de que a exortação da castidade é um método eficiente de prevenção da gravidez na adolescência e deve ser prioritário enquanto política pública à informação sobre métodos contraceptivos, defendida pela Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos (BETIM, 2020), e a ideia de que estaremos mais seguros e teremos uma sociedade mais justa se a polícia for autorizada a matar quando, num confronto, estiver com medo ou sob forte emoção, defendida pelo Ministro da Justiça num projeto de lei que visava a ampliação do excludente de ilicitude (MACHADO; FRANCO, 2019).

    O que há de comum entre estas afirmações e ideias é o fato de serem manifestamente falsas e a completa irresponsabilidade epistêmica que as caracteriza: sua afirmação e sustentação é feita pelos agentes diante da ciência de sua completa ausência de base evidencial. O que há de grave e, penso eu, sem precedentes, é a despreocupação com que estas afirmações são feitas pelas autoridades e a naturalidade com que elas são aceitas por muitos dos destinatários de comunicações oficiais.

    Importa, portanto, saber como tal obscurantismo militante por parte de governantes de um país como o Brasil se tornou possível. Trata-se de

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