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Cantando por entre as águas do dilúvio: Competência metafórica e leitura de poesia
Cantando por entre as águas do dilúvio: Competência metafórica e leitura de poesia
Cantando por entre as águas do dilúvio: Competência metafórica e leitura de poesia
E-book182 páginas2 horas

Cantando por entre as águas do dilúvio: Competência metafórica e leitura de poesia

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Sobre este e-book

Esta obra trata da sempre tão falada crise da leitura em seus múltiplos desdobramentos, em particular no campo da poesia. A leitura literária, hoje quase que restrita à sala de aula, é fonte de angústia para qualquer pai/professor que tenha tentado fazer seus filhos/alunos entenderem um texto que contenha uma metáfora. É justamente por meio do conceito de competência metafórica, a habilidade do leitor de construir sentidos a
partir do poema que ele lê, que este estudo pretende discutir como os jovens brasileiros (estudantes do ensino médio) desenvolveram – ou não –, após anos de exposição ao texto literário, a habilidade de criar os múltiplos sentidos que a poesia pede. Um tema profundamente atual, em especial nestes tempos de leitura instantânea e superficial, e fundamental para pais, professores, linguistas, poetas, jornalistas e qualquer pessoa que se interesse por entender a realidade da cultura e do ensino em nosso país.
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento11 de jul. de 2022
ISBN9786525418728
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    Pré-visualização do livro

    Cantando por entre as águas do dilúvio - Décio Orlandi

    Sorriso Interior

    O ser que é ser e que jamais vacila

    Nas guerras imortais entra sem susto,

    Leva consigo esse brasão augusto

    Do grande amor, da nobre fé tranquila.

    Os abismos carnais da triste argila

    Ele os vence, sem ânsias e sem custo...

    Fica sereno, num sorriso justo,

    Enquanto tudo em derredor oscila.

    Ondas interiores de grandeza

    Dão-lhe essa glória frente à Natureza,

    Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

    O ser que é ser transforma tudo em flores...

    E para ironizar as próprias dores

    Canta por entre as águas do Dilúvio!

    Cruz e Souza, Últimos Sonetos (1905)

    Um apelo ao leitor amigo

    Este texto foi escrito originalmente para a obtenção do título de Mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Porém, mesmo após anos, eu tenho visto a situação de que trata o trabalho – a crise da leitura no Brasil, em particular da leitura de poesia – só piorar. Foi essa emergência que me motivou a trazer o texto de volta, agora para o grande público, por meio desta publicação.

    Apesar de ter feito várias atualizações na obra, eu mantive intacta a sua essência: uma reflexão sobre a crise, já de décadas, do mundo da escrita e da leitura. Mas, ao contrário do poema de Cruz e Souza que nos guia nesta reflexão, sem tentar transformar tudo em flores... Pelo contrário. Como professor de Português há mais de 30 anos e escritor (bissexto), essa crise me dói fundo, na alma... E vejo que há muito pouco que eu possa fazer para revertê-la. Uma impotência que o poeta (como sempre!) sabe exprimir muito melhor que eu:

    Tenho apenas duas mãos

    e o sentimento do mundo.

    A esperança é que a publicação deste estudo possa ser uma pequena contribuição para alterar o curso de uma situação que está próxima do ponto de não retorno, o dilúvio na metáfora de Cruz e Sousa. No fundo, eu continuo me recusando a cantar, em augusto isolamento, enquanto as águas sobem!

    Quando, em 2010, eu assumi a cadeira de Literatura de uma grande universidade pública, cheguei a acreditar que poderia contribuir efetivamente para mudar a situação. Entretanto, quando os alunos do último ano do curso de Letras fizeram um protesto contra minhas aulas, entendi quão dramática era a guerra em que estava lutando. Ao meu argumento de que eles estariam em poucos meses recebendo o diploma de Bacharéis em Língua Portuguesa com um baixíssimo nível de compreensão do texto literário (o que eu estava de todas as maneiras tentando reverter), fui trazido de volta à dura realidade: Professor, ninguém aqui quer dar aula. Nós só queremos um diploma de nível superior para poder prestar concurso público!

    Pedi exoneração. Continuei com as aulas no Ensino Médio – mas aí sobreveio o ENEM, com sua mediocrização do estudo de Literatura, que ainda sobrevivia até então com alguma dignidade devido às leituras obrigatórias dos vestibulares. Troquei a sala de aula pela Coordenação Pedagógica apenas para encontrar outra crise evidente: a das famílias dos alunos. Bem-intencionadas, porém perdidas na sua tentativa de acompanhar a vida escolar de seus filhos, os pais muitas vezes acabam por se voltar contra os professores, prejudicando o processo de ensino e cercando os alunos de muletas imaginárias que eles arrastarão por toda a vida...

    Ainda assim, o magistério me deu também muitas alegrias. Entre elas, tenho imenso orgulho de ter sido paraninfo da turma de formandos da mesma universidade que abandonei, apesar de ter lecionado para aqueles alunos apenas no 1º ano do seu curso. Tenho plena certeza de que, nesses 30 anos, instilei em centenas de estudantes o maravilhoso vício pelo conhecimento, pela beleza das palavras. Mesmo assim, fiz pouco. A guerra é muito maior; todos nós que estamos envolvidos precisamos fazer mais, pois as armas que os nossos inimigos empregam estão cada vez mais sofisticadas (espaço para a sua reflexão sobre essas armas).

    Não tenho dúvida de que se o questionário que criei para avaliar a competência dos alunos do ensino médio há mais de uma década for aplicado hoje, os resultados serão ainda mais devastadores. Convido você, amigo leitor, a tentar fazer a experiência por si mesmo. Os questionários estão no Anexo desta obra. Fique à vontade para usá-los, modificá-los, ampliá-los. Este é meu apelo a você, quer seja professor, jornalista, pai de aluno ou curioso das letras (por algum motivo muito nobre você chegou até aqui comigo): vamos juntos combater essa guerra justa! Vamos reverter esse quadro trágico, levando a beleza do conhecimento a quem precisa dele! Como diz António Candido, todos têm DIREITO À LITERATURA! E privar um ser humano desse direito básico é um crime do qual nós não podemos mais ser cúmplices.

    Boa leitura!

    Primeiras águas: a crise da leitura

    E aconteceu que, depois de sete dias, vieram sobre a terra as águas do dilúvio. No ano seiscentos da vida de Noé, aos dezessete dias do segundo mês, nesse dia romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as comportas do céu se abriram, e houve copiosa chuva sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites. (Gênesis 7: 10-12)

    O poema que inspirou o título deste trabalho foi escrito por Cruz e Sousa já no final da sua vida. Doente e esquecido, deixou o manuscrito dos seus Últimos Sonetos a cargo de um amigo fiel e dirigiu-se a Minas Gerais apenas para morrer – eis o motivo pelo qual muitos críticos veem nessa obra derradeira o verdadeiro testamento do poeta catarinense.

    Compreende-se, portanto, que o ser que é ser seja o próprio poeta, modelo de estoicismo e de renúncia pacífica e virtuosa num mundo todo feito contra ele (como diria Clarice Lispector), mas que, ainda sim, no qual ele desfruta do imenso prazer que lhe dá a consciência mesma de sua superioridade. O poeta, enfim, vencerá, ainda que esteja derrotado na aparência.

    Mas, para nós, Cruz e Sousa não apenas se definiu – e a seu tempo – neste soneto; de uma maneira surpreendente, ele anteviu a realidade brasileira de hoje. Metaforicamente (como convém à poesia!), a imagem do dilúvio mencionada no poema poderia muito bem representar a tragédia que vem se abatendo sobre o atual mundo da palavra escrita. Em um texto escrito já na década de 1980, o crítico americano Gore Vidal retratava bem essa situação dramática:

    A Academia ganhou a batalha em que [o escritor Edmund] Wilson combateu tão ferozmente do outro lado. Professores de inglês cheios de ambição inventam atualmente sistemas que nada têm a ver com literatura ou com vida, e tudo a ver com aquelas jogadas que devem ser feitas para que eles possam galgar os degraus da burocracia acadêmica. Seus trabalhos são vazios mesmo. Mas, por outro lado, seus trabalhos não pretendem ser cheios. São para serem ensinados, não lidos. O longo diálogo se interrompeu. Por sorte, como Flaubert apontou, a pior coisa sobre o presente é o futuro... (VIDAL, 1987, p.53.)

    O necessário diálogo entre a sociedade e a Academia/Escola se interrompeu. As Universidades, as Academias de Letras, as Associações de Escritores, as Secretarias de Educação e Cultura (as "sociedades de discurso", como as define Foucault), todas elas sempre tiveram o poder constituído de intervir nas questões envolvendo os temas leitura e literatura, mas têm preferido o caminho do augusto isolamento¹, mesmo porque a tarefa é árdua, os meios, desconhecidos, e o resultado, duvidoso. Tal opção pelo imobilismo tem raízes na própria criação da Academia

    Essa noção é relativamente recente, remontando ao século XVII francês e ao Cardeal Richelieu que, fundando a Academia Francesa, conferiu certo status ao poeta e escritor. Depois, a sociedade burguesa levou adiante a separação, valorizando o intelectual e o artista enquanto homem de gênio, mas afastando-o da vida prática. [...] O mundo da arte torna-se esfera autônoma, e por essa razão requer tratamento especial, deferência que se traduz na constituição de uma (ou mais) ciência(s) que lhe são próprias - a Estética e a Teoria da Literatura. Mas pertence a esse afastamento a proibição de retornar à vida prática, a não ser sob outra máscara. (ZILBERMAN, 2003, não paginado.)

    Souza (2003, p.56) arrisca apontar algumas razões práticas (além da própria natureza elitista da Academia) para esse afastamento do meio acadêmico em relação à vida prática em geral, e ao meio escolar em particular, tal como ele se dá hoje na área da leitura: primeiro, não há consenso na Universidade sobre a melhor teoria linguística, dentre as várias que surgem, a ser adotada como um parâmetro seguro; segundo, os cursos de atualização para professores, ainda que bem intencionados, são superficiais e não conseguem divulgar todo o conhecimento sobre temas vitais para o ensino da leitura; terceiro, há uma herança de métodos antigos arraigada no comportamento dos atuais professores que só pode ser mudada muito, mas muito lentamente; quarto, a própria sociedade não se dá conta da necessidade de mudanças no perfil da escola; e, finalmente, falta coragem aos cursos de graduação em Letras para se adaptarem às demandas dos tempos modernos.

    Enquanto os teóricos discutem entre si, as águas da crise sobem e sobem... E já não é nova a noção de que as práticas da escrita e da leitura estão passando por um momento particularmente crítico. Walter Benjamin (apud BARBOSA, 1974, p. 44) detecta uma crise da poesia a partir da segunda metade do século XIX², com origem em três fatores principais: a) o poeta lírico deixou de representar o poeta per se, isto é, não é mais o menestrel com que alguns poetas românticos ainda se identificavam; b) a partir de Baudelaire, a poesia deixou de ser um sucesso de massa , como era até Vitor Hugo ou Heine, por exemplo; e finalmente c) a frieza do público perante a nova poesia acabou desgas­tando o que restava de lírico na própria herança cultural dos povos.

    Benjamin retoma o tema da crise da literatura no famoso ensaio A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, que poderia acrescentar um quarto fator aos três já mencionados: a literatura (como de resto as outras formas de arte) perdeu sua aura, sua grandeza primordial, algo que a associava, em nosso inconsciente, à magia, ao sagrado. Num mundo tecnicista, em que a leitura, desprovida de sua magia inicial, se presta basicamente a fins práticos, não há muito sentido para a poesia e suas metáforas, o avesso, do avesso, do avesso, de Caetano. A esse respeito, cabe citar uma obra do mitólogo americano Joseph Campbell, Tu és isso – transformando a metáfora religiosa, em que ele afirma:

    Metáfora é um termo derivado do grego, meta, uma passagem, uma transição de um lugar a outro, e phorein, mover ou carregar. As metáforas nos transportam de um lugar a outro; elas nos permitem atravessar fronteiras que de outra forma estariam fechadas para nós. As verdades espirituais que transcendem o tempo e o espaço só podem ser transportadas em veículos metafóricos cujo significado é encontrado em suas conotações – ou seja, na nuvem de testemunhas das várias faces da verdade que elas espontaneamente evocam – não em suas denotações, os invólucros duros, factuais e unidimensionais da sua referência histórica. (CAMPBELL, 2003, p. 16).

    A essência da poesia (também da fé, como vemos na citação acima) está nessa metáfora que transcende³ – daí não ser muito difícil associar a crise de uma com o declínio da outra, em todo o nosso mundo ocidental.

    No Brasil, podemos igualmente detectar os quatro fatores da crise poética descritos por Benjamin, talvez com algumas adaptações, devidas antes à realidade econômica e social de nosso país que a qualquer fator cultural propriamente dito. É fato que o último grande sucesso poético de público e

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