Filhos Da Senzala
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Filhos Da Senzala - Silvânia Dias
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Editora Schoba
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E-mail: atendimento@gruposchoba.com.br
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ISBN: 978-85-8013-369-1
À família Espírito Santo.
Sumário
1. Segunda-feira, 21 de junho de 1819
2. O mestre dos artefatos mortuários
3. Na casa da família Espírito Santo
4. O lamento das seis badaladas
5. De volta ao lar
6. Confidências ao sabor de um pequeno café
7. A antiga paixão de Juliana
8. O feitiço de um pequeno momento mágico
9. Rumo a um destino incerto
10. Francisco segue viagem
11. Rumo à Fazenda Cantareira
12. A imponente propriedade e suas histórias de horror
13. O tropeiro acolhe Francisco em sua casa
14. Francisco torna-se um agregado na Fazenda Cantareira
15. O novo agregado desperta a cobiça do proprietário
16. Eugênia era o nome dela
17. De volta à Fazenda Cantareira
18. Francisco fica enfeitiçado pela beleza da escrava
19. Eugênia rende-se aos encantos de Francisco
20. Francisco consegue permissão para casar-se
21. O casamento
22. Dor e morte no sertão do Matipó
23. Francisco é gravemente ferido
24. Os filhos de Francisco tornam-se escravos na Cantareira
25. A Cantareira é assolada pelo surto de varíola
26. As ilusões de uma jovem donzela
27. Um casamento infeliz
28. A Cantareira recupera sua opulência de outrora
29. Templo dos prazeres
30. Uma joia nas ruas de Ponte Nova
31. Uma primavera sem flores nem chuva
32. A cobiçada herdeira dos Moutinho Esteves
33. Surpresas em uma manhã primaveril
34. Uma sórdida intriga
35. O coração dela pertenceu somente ao doutor Caetano
36. E a vida refloresce
37. O Capitão sofre um grave acidente
38. Três escravos desaparecem da Cantareira
39. Um recanto habitado por forças estranhas
40. Francisco vai para a prisão
41. O doutor Francisco de Paula torna-se advogado da família
42. Os desatinos de mãe
43. Mentiras, fraudes e corrupção
44. O Capitão é surpreendido por uma tragédia
45. O Capitão nega as acusações e ameaça processar Francisco
46. Uma mulher ferida à beira do caminho
47. A sentença
48. Uma inesperada reviravolta
49. Uma notícia embaraçosa
50. A perseverança do Coronel Francisco de Paula
51. Deveria ser um dia como qualquer outro
52. Assombrosamente trágico
53. O último Moutinho Esteves
Segunda-feira, 21 de junho de 1819
Aos gritos de desespero, espantada e muito aflita, a escrava Anastácia correu desorientada pelo longo corredor da casa em direção à cozinha, onde outra cativa, de nome Joana, ocupava-se com os preparativos do almoço. Ofegante, trêmula e sem conseguir pronunciar bem as palavras, anunciou apressadamente que a senhora Ana Leocádia estava caída sobre o chão do alpendre.
A corpulenta dama estava regando seus vasos de delicados e floridos gerânios, como fazia todos os dias, quando foi abruptamente surpreendida pelo domínio da morte. O comprido e rodado vestido que usava ficou em parte molhado pela água que derramou em seu corpo no momento da queda e, em uma das mãos, permaneceu segurando a caneca, que ficou vazia. Com seus grandes olhos verdes olhando fixamente para a mesma direção, parecia apenas atordoada pela queda brusca, apesar da palidez cadavérica de seu rosto. Entretanto, o corpo inerte e ainda morno estendido no assoalho molhado não apresentava nenhum sinal de que ainda pudesse haver vida. Aos 42 anos, na manhã fria e cinzenta do dia 21 de junho, Ana Leocádia havia se despedido da vida terrena sem nenhum aviso prévio.
Tão logo constatou-se a tragédia do falecimento, a residência se encheu do vapor fúnebre deixado pela visita inesperada do anjo da morte. Portando a nefasta e dolorosa notícia, o moleque Joaquim partiu em disparada rumo à pequena lavoura situada nas proximidades, onde seu senhor, juntamente com seus dois filhos e dois escravos, cuidavam da colheita do café, que, naquele ano de 1819, estava sendo especialmente generosa.
Em pouco tempo a notícia se espalhou pela região. Uma multidão curiosa e solidária logo ocupou o grande terreiro e os recintos do antigo casarão, e o alvoroço desolado imediatamente tomou conta de todos os habitantes da casa e dos parentes que moravam nas redondezas.
Na memória de muitos que ali se encontravam, ainda eram presentes as lembranças do funeral do pai e do irmão caçula de Ana Leocádia, que também haviam morrido nas mesmas circunstâncias que ela, poucos anos antes. A família parecia amaldiçoada pela presença traiçoeira da morte repentina. Nas três funestas ocasiões, o drama sem testemunhas foi o mesmo: as vítimas desfaleceram sem que elas ou outra pessoa pudessem pressentir o ataque mortal iminente. Os membros daquela família estavam sendo subitamente levados à sepultura por força de uma enfermidade silenciosa que os entendidos da Medicina chamavam de lesão orgânica do coração
. A doença atacava sem ser percebida, e a inclemência da morte chegava de surpresa.
Francisco do Espírito Santo teria rogado a Deus que lhe apagasse da vida aquele amaldiçoado dia, mas, como religioso que era, não questionava os desígnios Divinos. A dor imensurável do viúvo ocultava-se em sua imponente aparência de homem inabalável, mas, na solidão de sua tragédia, somente ele sabia que a mulher com quem viveu por quase 25 anos levaria à tumba metade do seu coração, para não dizer de sua alma. O esposo enlutado jamais imaginou, nem nos piores de seus pesadelos, que sua amada partiria de modo tão impiedoso. Para sua alma destroçada, aquilo parecia a pior das traições! A devastação daquele momento imprimiu um estado de lamento e tristeza silenciosos que vagarosamente iam consumi-lo até seu último suspiro, mas, por ora, não importava o quanto lhe doía, a morte imperiosa havia se imposto, e os preparativos fúnebres esperavam por quem os providenciassem.
Ana Leocádia ainda guardava os traços da beleza de sua juventude que outrora tinha roubado para sempre o coração daquele homem de sentimentos tão íntegros e nobres. Talvez ela, em seus pressentimentos mais íntimos, soubesse que a morte a espreitava, e o golpe que a todos devastou naquela manhã cinzenta já era silenciosamente aguardado. Em seus pertences, guardava com zelo o hábito de São Francisco de Assis, pois era de sua vontade que seu corpo descesse à sepultura envolvido naquela mortalha. Na confusão daquele infortúnio, suas duas irmãs se esforçavam em organizar o ambiente para que o corpo fosse, então, preparado para o velório.
Estavam todos perdidos em meio a muita coisa a fazer, mas ninguém conseguia direcionar um único caminho que fosse. Na cozinha, a mais velha escrava da família parecia a única a não se curvar às desorientações deixadas pela morte e, com punho firme, cozinhava para toda aquela gente que ali ficaria no decorrer do triste entardecer e da longa noite do velório. Ela sabia que a comida não poderia faltar até o amanhecer do dia seguinte, quando o cortejo finalmente conduziria sua senhora à sepultura.
A escrava Joana já era moça feita quando foi doada pelo pai de Ana Leocádia, na ocasião em que esta se casou com Francisco do Espírito Santo. Desde então, a cativa nunca se tinha distanciado da vida do casal e foi cúmplice nos momentos bons e ruins da casa. Lembrava-se com assombrosa perfeição do dia em que a menina Josefina, com menos de 3 anos de idade, morreu em seus braços, vitimada por veneno de escorpião. A antiga escrava da família carregava o pesar de não ter evitado que a pequena recebesse a fisgada letal. Ocupada em descascar o milho, não viu quando Josefina, em sua inocência de criança, brincava com o animal peçonhento que lhe desferiu a dose de veneno mortal. A dor daquele incidente trágico nunca foi esquecida, mas foi abrandada quando, mais tarde, sua senhora deu à luz os dois filhos gêmeos do casal, que foram recebidos com muita alegria e celebração. Essas eram só algumas de suas muitas lembranças que, naquele momento de luto, lhe reviravam os pensamentos.
Desde quando foi entregue a Ana Leocádia, e até aquele dia, ela lhe tinha servido com lealdade, e em seu coração lamentava por sua senhora ter tido aquela morte tão traiçoeira. Que nosso senhor Jesus Cristo acompanhe sua alma! – rogava ela, em silêncio.
A falecida não teve tempo de preparar seu testamento e expressar seus desejos póstumos, e o peso do despreparo já provocava a preocupação dos familiares. Todos estavam cientes de que uma morte tão repentina prejudicava a passagem da alma do plano terreno para o plano celeste. Por isso mesmo, o inconformado viúvo encomendaria quantas missas pudesse pagar para que sua amada atravessasse em paz os portais do paraíso.
Desde que o ataque fulminante a fez tombar sem vida, algumas horas se passaram, mas seu corpo ainda estava recebendo os cuidados das irmãs e da escrava Anastácia. Elas, inconformadas, tentavam colocá-la dentro de uma mortalha, que àquela altura estava pequena para envolver o corpo. Ninguém sabia ao certo se ela havia ficado mais pesada desde que encomendou seu último traje ou se o perito em moda fúnebre havia errado, e muito, nas medidas. Chorosas, as irmãs indagavam se Ana Leocádia não havia experimentado a vestimenta encomendada para a ocasião. Valei-me, Nossa Senhora! Mortalha foi feita para os mortos, não para os vivos! – murmurou a cativa Anastácia.
De dentro do quarto principal ninguém saía, ninguém entrava, e o ritual de vestir o corpo se arrastava tarde afora. Em parte porque as irmãs da falecida não tinham prática no assunto e em parte porque o ritual era, por si só, demorado. Gastaram um tempo valioso para rezar um pai-nosso e uma ave-maria para cada nó dado ao cordão da mortalha, que ao todo deveriam somar-se sete.
Desorientadas pela dor da perda inesperada, era mesmo compreensível que se atrapalhassem com tanto pai-nosso e ave-maria – por fim, já tinham rezado bem mais que o sugerido para cada nó feito no cordão.
Embora tivesse sido penoso o ritual, o cadáver finalmente ficou pronto para ser velado. Com cuidado, Ana Leocádia foi conduzida à sala principal, onde velas e panos fúnebres ornamentavam o espaço e compunham o ambiente enlutado. O corpo foi depositado sobre um estrado precariamente improvisado até que o caixão ficasse pronto, o que somente deveria ocorrer lá pela madrugada do dia seguinte. Daquele momento em diante, missas de corpo presente sucederam-se pelo resto da tarde e por toda a noite. Um dos sacerdotes, chamados às pressas para rezar pela alma da falecida, já estava presente, mas outros dois ainda eram aguardados.
Para alguém com o infortúnio de morrer daquela maneira, sem tempo de arrepender-se dos pecados, sem preparar o espírito para a passagem e sem receber a extrema-unção, último sacramento oferecido aos fiéis, as missas, as vigílias e as orações vinham como derradeiro socorro à alma fragilizada pelos ataques do inimigo. A condenação ao fogo eterno do inferno era o temor maior, e a desventura da morte instantânea de Ana Leocádia seria compensada em missas rezadas em dobro, nem que, para isso, a família se endividasse completamente.
O mestre dos artefatos mortuários
Oafamado João Carpinteiro, que produzia a última moradia para os defuntos ricos ou para os da mais humilde condição, tinha-se deslocado cerca de uma légua e meia de distância para atender a uma encomenda especial, quando foi comunicado sobre o falecimento de Ana Leocádia. Duas mortes no mesmo dia e na mesma vizinhança significavam trabalho em dobro. Naquela manhã, suas habilidades já tinham sido requisitadas por uma nobre família da redondeza, que solicitou a confecção de um caixão suntuoso para um famigerado usuário.
O ilustre falecido pertencia à terceira ou quarta geração de uma linhagem renomada e, assim como seus antepassados, tinha herdado a grande propriedade vulgarmente chamada de Fazenda dos Suplícios, que naquele dia se amargava em mais um de seus lutos. Cercado de luxo e de mistério, o lugar era assim conhecido por causa dos castigos e das torturas aplicados aos escravos que lá viviam. Os moradores mais antigos da fazenda juravam que os acusados de desobediências mais graves foram enterrados vivos naquelas terras.
O carpinteiro já tinha estado na propriedade em muitas ocasiões, mas, todas as vezes em que ultrapassava as porteiras da fazenda, um arrepio estranho o impelia a fazer o sinal da cruz. A atmosfera do lugar o sufocava! Sentia a presença de alguma coisa que ele não compreendia. Era como se uma entidade o observasse sorrateiramente e, com o passar dos anos, convenceu-se de que algum tipo de maldição dominava o lugar. Naquele dia, porém, sentia-se aliviado, pois terminaria o serviço antes do anoitecer e não passaria a madrugada trabalhando sozinho no antigo cômodo de ferramentas situado nas imediações da casa principal.
Enquanto ligeiramente finalizava os retoques da esmerada encomenda para ir atender aos familiares de Ana Leocádia que já o aguardavam, as recordações de uma das muitas vezes em que ele havia trabalhado para aquela poderosa família logo lhe tomaram os pensamentos. Duas décadas ou mais haviam passado, mas as lembranças dos eventos sinistros que ele vivenciou naquele mesmo lugar nunca foram apagadas e ele podia descrevê-las em seus pormenores.
Divagando pelos labirintos de sua memória, o carpinteiro recordava que era uma bela noite de lua cheia. O céu era de um brilho magnífico e, até onde alcançavam os olhos, não se via uma única nuvem que ofuscasse a beleza daquele infinito cintilante. O firmamento parecia vestido por um manto prateado, e as estrelas pareciam bailar numa melodia celestial. A noite era perfeita para qualquer celebração alegre e festiva, mas ele, amigo íntimo da morte, sentia-se insultado por ela. Naquela época, o caixão encomendado pertenceria a uma jovem moça suicida, cujo motivo para tamanha brutalidade os parentes guardavam debaixo do mais rigoroso sigilo.
O carpinteiro tentava escapar das espantosas lembranças há tanto tempo armazenadas em sua mente. No entanto, quanto mais ele queria esquecer, mais nítidos ficavam os detalhes. Suas recordações insistiam em transportá-lo novamente ao passado e, sem querer, ele lembrou que já era tarde da noite, mas, envolvido em seu serviço, nem tinha percebido que se aproximava das três da madrugada. Quando o primeiro canto de galo rasgou o silêncio