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O Último Trem Da Aurora
O Último Trem Da Aurora
O Último Trem Da Aurora
E-book675 páginas7 horas

O Último Trem Da Aurora

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Sobre este e-book

No livro o autor coloca em evidência a beleza e a poética vida camponesa. Sua maneira sensata e tranquila para resolver seus problemas, pretendendo ressaltar suas virtudes na vivência fraternal e solidária base fundamental da cultura campesina, sem esquecer sua devoção pela natureza! Também não poderia deixar de lado as agruras que acompanham de perto sua vida. Por falta de condições e apoio não conseguiu se constituir em uma sociedade camponesa, a fim de fazer valer seus direitos, frente a classe rural organizada, onde à sombra do poder público oferece condições e meios para dominar com sua sanha devastadora o massacre dos camponeses! Quando as máquinas tomaram das mãos dos lavradores seus instrumentos de trabalho e sustentação de sua família, não se preocuparam com sua sorte, deixando-os a mercê de um progresso desumano, cuja alternativa que lhe restou foi migrar para a perifeira das grandes cidades e fazer o que não sabiam se tornando párias. O livro também levanta um grande problema dos tempos modernos: o idoso se constitui no seu dia a dia um problema para a família. O progresso o ignorou deixando-o abandonado à margem da vida. O autor, como presidente durante 40 anos de uma entidade beneficente de apoio aos idosos abandonados, presenciou neste percurso muitos serem preteridos pelos seus familiares. Sendo um problema de alta complexidade e de difícil solução, em consequência da transformação da estrutura familiar, necessário se faz, sentarem-se à mesa, a comunidade e o progresso, para que possam caminhar juntos, sem pisotear à justiça e o ser humano. O autor deseja neste livro prestar uma homenagem a todos aqueles que de qualquer forma contribuíram para a redemocratização do nosso país.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de mar. de 2017
O Último Trem Da Aurora

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    O Último Trem Da Aurora - Valentim Morcelli

    O ÚLTIMO TREM DA AURORA

    Fragmentos de vida em forma de história

    CAPA Rafael Herrera

    DIAGRAMAÇÃO Janaína Cavalcanti

    REVISÃO Alinne Soares

    Morcelli, Valentim

    O último trem da Aurora: fragmentos de vida

    em forma de história/ Valentim Morcelli

    ISBN 978-85-918339-0-0

    Valentim Morcelli

    O ÚLTIMO TREM DA AURORA

    Fragmentos de vida em forma de história

    1ª edição

    São Paulo

    Edição do Autor

    2014

    Dedicatória

    In Memorian:

    À Teresinha Moro Morcelli, esposa.

    Á Cezirinha Morcelli, filha

    Aos filhos:

    Telma Aparecida Morcelli

    Cezira Terezinha Morcelli

    Gildo Wagner Morcelli

    Maria Augusta Morcelli, sobrinha.

    Prefácio

    Bem definido! Prende a atenção do leitor pela sua propositura paradoxal.

    Confunde-se com o último momento da vida, isto é, os últimos acontecimentos que antecedem a partida.

    Relato bem feito e elaborado, as ideias são bem articuladas e o que é mais importante é que apesar do trabalho constituir-se num grande volume, a subdivisão em capítulos torna a leitura mais atrativa e prazerosa.

    Convém ressaltar também que apesar da riqueza dos detalhes, o senti-

    do ou o foco central do que é tratado em nada se perde.

    Sem dúvida, se trata também de um relato que expressa, por parte

    do autor, grande consciência das desigualdades sociais, satiriza o comportamento das pessoas preocupadas unicamente com o status quo na

    sociedade e mostra sobretudo como as pessoas mais simples e humil-

    des são tratadas de forma injusta pelas que detêm um poder aquisitivo.

    Não bastasse isso, a obra aborda ainda, diria que como centro de tudo, a problemática do idoso na sociedade e principalmente na família. O

    sofrimento deste é duplamente qualificado. Em primeiro lugar pelo sofrimento físico imprimido pelo passado e por esvair lentamente de seu controle os bons momentos, os amigos e sobretudo o que foi adquirido ao longo da vida, que representa grandes valores simbólicos. Em segundo lugar o sentimento da constante rejeição do peso que causa aos

    mais jovens, inclusive á própria família.

    É uma verdadeira denúncia da condição social do idoso, da discrimi-

    nação sofrida por ele numa sociedade marcada pelo consumo e o indivi-dualismo. A morte aparece como a superação do desamparo, das angús-

    tias e da solidão. Ela é a possibilidade dos bons momentos do passado, do encontro com os amigos e do retorno á juventude.

    Enfim, trata-se de um convite a repensar as relações sociais, a condi-

    ção humana, o progresso tecnológico e sobretudo á experiência dos mais velhos e as crendices populares.

    Paulo Cavalcanti

    O livro tem uma história incrível, emocionante, que parece relatar a memória de uma vida inteira de luta incessante dedicada ao amor às pessoas e à natureza, apesar das circunstâncias injustas que a vida apresenta.

    Esse drama é muito bem contado, com clareza, bom humor, e inteligente simplicidade. Dentro dessa história tão rica, repleta de sentimentos e valores familiares, ainda podemos acompanhar o contexto histórico, que relata as iniquidades ocorridas no Brasil do ponto de vista de quem vivenciou esses tempos tão dramáticos.

    O coronelismo no Brasil, o nepotismo, o descaso com a população hu-

    milde, as tradições, a justiça com as próprias mãos, a influência da igreja nas lutas sociais, a fé, as crendices populares, a união em comunidade, o êxodo rural, a tortura na ditadura, as mazelas do capitalismo, a desvalo-rização dos idosos, a precariedade do sistema de saúde pública e diversos outros temas são levantados no texto, levando, inevitavelmente, o leitor, como em uma viagem, a diversas reflexões, profundas; dentre elas, sobre o sentido do progresso e a brevidade da vida.

    Alinne Soares

    O ÚLTIMO TREM DA AURORA

    9

    1

    A CARTA

    Uma carta lida e esquecida sobre a mesa por obra do destino

    como se costuma dizer, despertou a atenção de Emília. Deu uma

    despretensiosa passada de olhos e como se encontrasse algo que

    lhe chamasse a atenção, levada pela curiosidade, colocou seus óculos e passou a ler com mais interesse.

    – Ruth, – mencionava a carta – você está se queixando que a carga de cuidar dos velhos está recaindo sobre você, mas a proposta de que eles venham passar uns tempos comigo, eu acho muito complicada – prosseguia a carta recebida de seu irmão Degas –Aqui na Capital o ritmo de vida é uma loucura!...e não sobraria tempo nenhum para dar atenção a eles.

    A essa altura, as mãos de Emília estavam trêmulas, bem como seus

    lábios que pareciam antecipar o choro! As letras nas quais seus olhos tocavam pareciam pedras que saltavam do papel e atingiam seu coração.

    – Além do mais- prosseguia a carta- minha mulher tem um tempera-

    mento complicado e já se posicionou: que se eu recebê-los terei de cuidar deles. O ideal Ruth, seria colocá-los em um abrigo de idosos, onde teriam gente dando-lhes a atenção que nós não estamos podendo dar. O custo, dividiríamos entre nós e o Deo. Vê se convence os velhos.

    E por aí afora, prosseguia a carta triturando todos os sentimentos sublimes que se têm pelos filhos! Mas Emília não conseguiu continuar a leitura, pois as lágrimas embaçaram seus olhos e embaralhavam as letras. Como se a carta lhe queimasse as mãos, recolocou-a sobre a mesa olhando-a como um condenado olha para uma notificação de sua pena de morte!

    Repentinamente, desabou uma tempestade sobre ela, percebendo que

    a sua vida e a de Firmino, caminhavam na contramão!

    E como se tivesse assistido a uma cena de terror, tentava por todos os meios se afastar do centro daquele escombro de vida que se desmoronava.

    Com um esforço sobrenatural distanciou-se daqueles amontoados de ca-

    cos da vida que se despedaçava.

    Palpando paredes, abalroando móveis, se afastou, trôpega, rumo à sua casinha, nos fundos do quintal de sua filha mais velha, Ruth.

    10

    Toda ingratidão dói, mas aquelas feitas por alguém que se ama dóem

    muito mais! Trancou-se no seu pequenino quarto, para ocultar de Firmi-no sua expressão de dor e chorou copiosamente!

    Tentou se recompor, até duvidando do que lera. Cobriu o rosto com as mãos na tentativa de obstruir a visão de um fato que se confirmara.

    Depois olhou pela janela. Viu seu velho, Firmino, sentado no seu banquinho sob a frondosa mangueira, agradando seu inseparável amigo, seu cão Maiado, uma das poucas coisas importantes que lhe sobrara na vida!

    – Ah!– pensava Emília - Se fosse apenas um sonho tenebroso do

    qual nos safamos quando se acorda! Mas era a dura realidade. Um so-

    nho sem aurora!

    Só agora Emília se dera conta de que seus filhos, envolvidos nos problemas do dia a dia, gradativa e imperceptivelmente diluíam no tempo a preocupação com os pais. A idolatria do sucesso ocupava os espaços dos sentimentos humanos. Veio-lhe à memória um fato ocorrido recentemente que havia passado despercebido como se fosse apenas uma distração de seus filhos:

    – Ruth, sábado é o dia de aniversário de seu pai. Lembra também de

    avisar seus irmãos.

    Chega o dia esperado por Emília a fim de que seu velho Firmino re-

    cebesse o carinhoso apoio de seus filhos, mormente agora que sua saúde se tornava cada vez mais preocupante. Como não acontecia nada de extraordinário, ninguém aparecia, Emília subiu até a casa de sua filha indagando:

    – Ruth, você se esqueceu que hoje é dia do aniversário de seu pai?

    Antes que sua mãe prosseguisse, Ruth atalhou:

    – Ora mãe, tive uma semana tão atarefada que não tive tempo sequer

    de pensar em mim.

    Com humildade, perguntou:

    – Minha filha, você lembrou seus irmãos?

    – Eles que têm o dever de se lembrar da data. Caso se preocupassem,

    teriam se lembrado.

    Procurou Emília superar a decepção, e pensando quão feliz Firmino se sentiria com um abraço de sua filha, pediu-lhe conformada:

    – Bem Ruth, mas não se esqueça de cumprimentar seu pai.

    – Assim que puder eu vou- disse descompromissadamente- estou tão

    atarefada! Ainda tenho que aprontar as malas para viajar amanhã cedo!

    Já era tarde da noite, no quartinho dos fundos no quintal de sua filha Ruth, Emília à janela, alimentava a esperança da vinda de Ruth, a fim de

    O ÚLTIMO TREM DA AURORA

    11

    dar o abraço vivificante em seu pai. Com amargura, Emília viu as lâmpadas da casa de Ruth se apagarem e se fez silêncio!

    Emília compungida se arrastou até o sofá, onde de cochilo em cochilo, Firmino agora dormia profundamente... Ajoelhou com lágrimas no rosto ao lado de Firmino para ficar mais próximo de seu rosto. Contemplou

    aquele homem como o religioso contempla o sacrário. Observou, encanta-da, aquelas dezenas de rugas, que cortavam sua face em todas as direções, emoldurando seu rosto.

    Tomou suas mãos rústicas e calosas, prova de sua devoção ao trabalho.

    Mãos que tantas vezes roçaram a fronte de seus filhos preocupados com a febre! Mãos que tantas vezes orgulhosas, seguraram firme as mãozinhas de seus filhos ensaiando seus primeiros passos! Mãos que gesticularam contando mirabolantes causos de assombrações nos serões da varanda da Fazenda Zoio D’água.

    Aquele era Firmino, pai de Ruth, Deo, Degas e Maria Rosa, que dias e mais dias, meses e mais meses formavam um rosário de anos no trabalho duro, exclusivamente dedicados à sua família!

    Emília descansou suas mãos trêmulas sobre a fronte de Firmino, onde

    jazia enclausurado o arquivo de seus feitos, formado por vitórias e percal-

    ços, lágrimas e sorrisos misturados, que constituíam a vida toda de Firmino.

    Um arquivo que gradativamente se transformava em um museu hu-

    mano coberto pelo pó do esquecimento e cuja história, o tempo se en-

    carregava de apagar na memória dos filhos. Enfim, estava ali um homem que fizera de sua vida toda, um templo de amor à família. Um tanque de guerra humano que se transformara em sucata.

    12

    2

    O ANIVERSÁRIO DE RUTH

    Assim que voltara da viagem, se apossou de Ruth um grande frene-

    si: a preocupação:

    – Sábado, comemoro meu aniversário. Tenho que fazer algo tão

    bom ou melhor que minhas amigas! – dizia Ruth à sua empregada Maria

    José. Temos que começar hoje mesmo a preparação da festa. Espero que você não se importe em sair um pouco mais tarde. A empregada prontamente aquiesceu.

    De bolos, doces e salgados, choviam receitas até pelo telefone.

    – Ruth, saboreamos um pudim na festa de aniversário do Dr. Dalci que era uma delícia! Vou te mandar a receita – dizia sua amiga Suzana; não tanto interessada em contribuir com a festa, mas para satisfazer sua vaidade em dizer que fora convidada para comemorar o aniversário de uma pessoa tão importante como era o Dr. Dalci.

    O fogão jamais trabalhara tanto como essa semana do aniversário de

    Ruth!

    A cada dia acelerava o ritmo dos trabalhos. As geladeiras e freezer estavam abarrotados de bolos e toda sorte de guloseimas.

    Tomando por base a bebida que chegava, não tinha dúvida, muita gen-

    te tinha sido convidada!

    Suas amigas colaboravam intensamente nas tarefas.

    Até Emília se entusiasmara com a movimentação e se dispôs a parti-

    cipar:

    – Deixe isso mamãe! Você não enxerga bem e vai quebrar minhas lou-

    ças – disse Ruth em uma entonação de voz quase proibitiva.

    Depois se voltando para as amigas completava:

    – Mamãe é muito teimosa! Não tem mais condições de fazer nada, mas

    insiste! Ainda a semana passada ela me quebrou uma travessa de estima-

    ção que ganhei no meu casamento!

    Suas amigas corroboravam:

    – Minha sogra tem a mesma mania, não há louça que chega. Tive de

    proibi-la de chegar próximo à pia.

    O ÚLTIMO TREM DA AURORA

    13

    Diante de todos esses libelos, Emília, desapontada pela sua inutilidade, se retirou para seu quartinho dos fundos da casa de sua filha Ruth, que quando pequena lhe quebrara tantas louças!

    Chegara o esperado sábado. As emoções estavam no ar! A expectativa

    era de ser um evento até hoje nunca visto!

    Na rua, os carros disputavam as vagas! De cada um, desovavam lotes

    de pessoas, que após uma rápida reparação na indumentária e da maquiagem, se arrojavam decididamente porta adentro, como quem estivesse

    submisso a um rigoroso horário.

    Logo atrás desfilavam os homens: magros, gordos, rechonchudos, re-

    dondos, pálidos, corados. Homenzarrões, pigarrentos e sisudos, sorridentes; enfim, uma gama impressionante de feições e comportamentos. Mas era notório que possuíam algo em comum: avidez por algo, o chop! Acertavam a gravata, puxavam a calça pra cima, afrouxavam a cinta, ajeitavam o saco do lado costumeiro, como se preparassem para um grande embate.

    As mulheres puxavam o decote para baixo, a saia para cima. Procu-

    ravam repor no seu vasilhame, seus seios flácidos, gelatinosos; que lhes beijavam o umbigo. Como os soutiens são os campeões de propaganda

    enganosa, conseguiam mantê-los eretos e firmes como eram, antes dos

    frequentes embates de amor!

    Com um furo a menos no cinto, conseguiam uma proeza! Dividir suas

    obesidades em duas partes!

    Consultavam, no espelhinho, o limite máximo. Estabeleciam esse limi-

    te para um sorriso sem incidente, evitando assim o rompimento da espessa camada de maquiagem, permitindo as rugas aflorarem.

    Vestidos lindos, vistosos, colados ao corpo. Vestidos longos até os pés, outros curtos até a outra extremidade das pernas. Vestidos de grife, con-feccionados por hábeis costureiros que operavam milagres de disfarçar os conglomerados de banha dispersas aos montes pelo corpo todo, isso com a colaboração dos espartilhos. Vestidos caríssimos, a longas prestações que, antes de ser saldados, já estavam aposentados pela moda ou pelas gorduras trans.

    Feita essa rigorosa revisão, entravam na sala como se estivessem desfilando em uma passarela, com todos os olhos voltados para elas.

    Na etapa seguinte eram os cumprimentos, afrontavam-se cara a cara

    para um meticuloso fragrante, possibilitando assim um exame rápido de sua performance, pois as mulheres possuem um imperscrutável dom de, com um olhar instantâneo, como se fosse um flash de raio x, detectar o

    14

    visível e o invisível, os violáveis e os invioláveis.

    A sessão de beijos era tensa e problemática, com a constante preocupa-

    ção: não avariar a camada de cosmético! Beijos frios, gelados, e até beijos sinceros e afetivos! Sempre atrelados a frases, cuja autoria já era de domí-

    nio público e de significado inverso.

    – Ah querida! Você continua sempre jovem! Como emagreceu!

    – Quantas saudades! Você não aparece mais!

    Cumpridas todas as praxes que mandam as regras da sociedade, inau-

    gurava-se a festa propriamente dita do aniversário de Ruth. Casa cheia.

    As crianças foram as primeiras a estrearem com seus tombos, ou deixando cair, por descuido, seus sorvetes no chão.

    Os homens, instintivamente, foram se separando das mulheres. Fervo-

    rosos devotos de Baco, eram atraídos para seu altar-mor: O Santo Barril de Chop! Como sua fé lhes causava um intenso calor, ingeriam repetidos copos de bebida a fim de esfriar a temperatura interna, mas, pelo visto, esse calor era inextinguível!

    O vozerio aumentava na mesma proporção que aumentava a taxa de

    álcool no sangue. Em pouco espaço de tempo só se fazia ouvir aquele que gritasse mais alto. Porém, esse estado de coisa tem seus efeitos colaterais, pois o álcool é um agente libertador das diversas personalidades e recalques que estão aprisionados dentro de cada um. Afrouxados pelo álcool essa autocensura aflora uma gama de comportamentos ocultos, vindo à

    tona os bravateiros, os irreverentes, galanteadores, os afeminados, arruaceiros, cafajestes e os terríveis e medíocres preconceituosos; para os quais o anel de formatura é o limite da ascensão dos menos favorecidos.

    As bandejas como objetos voadores começavam a sobrevoar pelo

    salão. Manejadas por hábeis e experientes garçons, necessariamente

    altos e esguios, roçavam as cabeças e se escapuliam como os jogadores de basquete. Ao seu encalço seguiam uma legião de mãos erguidas em

    posição de súplica, dando uma nítida impressão de uma multidão de

    pedintes esfomeados.

    Quando conseguiam atingir o alvo, lamentavam:

    – Quão limitado é o ser humano! Só duas mãos.

    As mulheres davam início à sua interminável e angustiosa guerra entre a gula e o regime, onde sempre a gula leva vantagem.

    – Ah! É só hoje! Amanhã reinicio o regime.

    Estabelecendo o acordo, o qual nunca cumpriam, partiam libertas suas mãos ágeis movidas pelos poderosos cordéis da gula, partiam como fle-

    O ÚLTIMO TREM DA AURORA

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    cha ao encalço das bandejas, sempre em fuga. Conseguindo seu intento, enlameavam-se com pudins achocolatados, enfim, todo tipo de guloseima; para gáudio dos famintos conglomerados gordurosos que envolviam

    o corpo, contudo, para a tristeza dos vestidos, que talvez fossem essa a última vez que viriam a um acontecimento.

    Na festa de aniversário de Ruth não faltara ninguém dos convidados,

    até havia alguns a mais:

    – Ruth, minha cunhada e suas filhas apareceram inesperadamente em

    casa e tomei a liberdade de trazê-las.

    Entretanto, os saques às bandejas iam se arrefecendo. Os estômagos afogados nas massas, condimentos, guloseimas e empanados dão sinais de empanturração! Nem mesmo os arrotos travestidos de tosse, nem tampouco os gases expelidos por via menos nobre, conseguiam liberar espaços.

    Os homens faziam uso frequente de um dos caminhos mais importan-

    tes de uma festa: O trajeto entre o barril e o WC.

    Nem faltou à festa de Ruth, o lado impróprio para menores: as estra-

    tégicas cruzadas de pernas, oferecendo uma ampla visão da arma da mulher; as pernas, os óbvios flertes furtivos e ensaios de infidelidade.

    Subitamente, a festa de Ruth foi interrompida! Pedidos de socorro vindos do quintal de Ruth.

    Apavoradas, as mães procuravam seus filhos. Os homens em um arrojo

    heroico, largaram seus copos e partiram às pressas em direção de onde vinham os gritos.

    Em pouco tempo, o santo barril se achou sozinho, com a cara para o

    ar. No pátio, em meio ao tumulto, um menino assustado choramingava,

    enquanto o outro dava as explicações:

    – Ele puxou o rabo do cachorro que dormia embaixo do banco e ele

    mordeu a mão dele.

    Maiado não podia ter feito tal coisa! Só porque lhe puxaram o rabo,

    fazer tamanha confusão. Ademais, podia morder a mão de qualquer ou-

    tro, menos a de Robertinho, filho do Dr. Roberto, assessor do Sr. Prefeito.

    Ao tomar conhecimento de quem se tratava, multiplicavam-se os ges-

    tos de solidariedade latentes em cada um. A solidariedade, embora ador-mecida, alheia aos acontecimentos que nos cerca, explode à flor da pele, em se tratando do filho do assessor do prefeito, causando um clima de pânico da solidariedade!

    – Chamem o médico!

    – Não! Chamem uma ambulância urgente!

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    – Melhor será levá-lo ao hospital!

    O que foi aprovado por unanimidade. Emperrou-se na hora de esco-

    lher quem levaria, pois havia 18 carros preparados, gerando uma nova discussão. Venceu aquele que tinha o carro mais possante e veloz.

    O empenho em socorrer o menino se multiplicava. Os fluxos de mãos

    eram tantas que daria para socorrer dez Robertinhos.

    A solidariedade ao molho de álcool, misturada com um filho de asses-

    sor do Prefeito, leva as pessoas à loucura!

    – Ruth, seu cão está vacinado?

    – Não?

    – Então temos que levar sua cabeça para ser analisada. Ele pode estar louco!

    Imediatamente surgiram dezenas de candidatos a sacrificar Maiado.

    Ganhou aquele que tinha mais experiência.

    – Eu sou do ramo, já matei muitos cães!

    Maiado, após ressarcir seu rabo se enrodilhou novamente embaixo do

    banco sem ter a menor ideia de que sua cabeça estava em jogo. Entretanto, houve vozes discordantes, de pessoas sensatas.

    – Não matem o pobre animal sem ouvir o médico!

    Por pouca margem de votos, a cabeça de Maiado foi poupada. Alguém

    que se incumbira de buscar o Dr. Roberto voltou frustrado! Não o encontrou em parte nenhuma.

    Um experiente conhecedor da vida privada do Dr. Roberto se pronti-

    ficou a buscá-lo. De fato sem muita demora trazia o Dr.Roberto com os cabelos em desalinho, gravata fora do lugar e uma parte da camisa fora das calças.

    Outro detalhe: parecia que tinha se vestido às pressas. Estava mais preocupado em justificar seu paradeiro do que com o filho:

    – Estava em uma reunião com o prefeito e o deputado Sardinha a fim

    de conseguir a verba para construir a ponte sobre o rio Tatuí e consegui, disse triunfante.

    Alguém que conhecia sobejamente sua vida privada cochichou ao colega:

    – Pelo jeito conseguiram na porrada!

    A demanda ao hospital foi algo inacreditável. Uma verdadeira fórmula 1:

    – Liguem o pisca-pisca e passem com o sinal vermelho mesmo!

    – Saia da frente tartaruga! É urgente! Trata-se do filho do Dr. Roberto!

    Em última análise era uma verdadeira divisão de carros blindados

    rumo ao Hospital Municipal.

    Assim, a carreata da solidariedade avançava, pedindo caminho com

    O ÚLTIMO TREM DA AURORA

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    buzinadas inamistosas. Um verdadeiro pandemônio que assustava os

    transeuntes.

    Nas portas das lojas e dos bares os telespectadores ficavam atônitos e divagavam:

    – Deve ser casamento!

    – Com essa pressa toda?

    – Talvez estejam com medo que o noivo se arrependa!

    Outros vaticinavam:

    – Deve ser alguma carreata de protesto!

    – Isso aí não passa de uma manifestação de torcedores pela vitória de seu time. O que mais se espera desse povinho?

    – Você tem razão, corroborou outro, dizimaram toda safra de líderes e não é mais como antes que por qualquer arranhão à cidadania, a casa vinha abaixo. Hoje em dia menosprezam, tiram direitos e não acontece nada.

    Não há união e nem solidariedade; pois, os que estão instalados confortavel-mente em seu apartamento, diante de uma TV de última geração com sua geladeira abarrotada, convênio de saúde e seus filhos nas melhores escolas, se distanciam dos demais, formando uma nova classe social: a casta dos omissos, que voltaram as costas para os menos privilegiados.

    Indiferente a essas considerações, a tropa de choque salvadora, rompia à frente até tomar o Hospital de assalto.

    Previamente avisados, enfermeiros com maca, aparatos de oxigênio e

    suportes para soro, aguardavam a vítima, o filho do assessor do prefeito!

    Em frente ao hospital, os carros freavam bruscamente. As portas se

    abriram simultaneamente e desovou uma multidão de passageiros apre-

    ensivos, os quais deixaram até as portas abertas e se apressaram em dar apoio ao ferido.

    Nesse ínterim, ocorreu um pequeno incidente: Não encontravam a ví-

    tima! Depois de muitas buscas e gritos:

    – Robertinho, onde está você?

    Encontraram-no com seus amiguinhos rolando na grama do jardim do

    hospital! O mais difícil foi capturá-lo e socá-lo sobre a maca, pois era uma questão de honra! Robertinho só cedeu quando estava sendo transportado gostosamente na maca.

    Atrás da escrivaninha, um médico com expressão sonolenta, indiferen-

    te ao tumulto, recebeu a risonha vítima, enquanto à porta se acotovelavam uma multidão de acompanhantes.

    O que mais demorou foi localizar o ferimento na mão do menino, por-

    18

    que nem ele próprio sabia em qual mão fora mordido. Recomendou ao

    enfermeiro que fizesse uma assepsia e liberasse o paciente, recomendando também aos responsáveis que observassem o cachorro e caso morresse

    em menos de dez dias, retornassem com o menino, para tomar vacina

    antirrábica.

    A galera chiou decepcionada.

    – Que médico displicente! Fazer isso com o filho do Dr. Roberto?!

    – Isso é caso de internação! Sequer pediu a cabeça do cachorro para

    ser examinado!

    – Ah! Hospital Público é assim mesmo!

    Na volta, a carreata de solidariedade se comportou mais tranquila.

    Bateu-se em retirada, ruminando suas críticas ao médico. Obedecendo

    a faróis, contramão e o limite de velocidade, retornaram à festa com a mesma avidez; os orgulhosos por terem cumprido um importante dever:

    a solidariedade! Voltaram à caça das bandejas e à fila do W.C.

    Já ia alta a noite, quando um alarido de vozes explodiu no salão: era o

    parabéns à você , quando Ruth ficou soterrada sobre beijos e abraços.

    Daí pra frente, a festa entrou em declínio. O vozerio ia aos poucos se arrefecendo e os espaços vazios no salão tornavam-se maiores.

    Logo mais, o silêncio tomava conta do resto que sobrara da festa: copos pelo chão, pedaços de bolos pisoteados. Parece que a própria festa, exausta, deitara ali mesmo no chão e dormira profundamente.

    Lá no quartinho dos fundos do quintal de Ruth, Firmino vestido a ri-

    gor, de cochilo em cochilo, adormeceu no sofá. À janela, Emília esperava o convite de sua filha Ruth. Mas as luzes na casa de Ruth se apagaram...

    Logo cedo, antes de sair para o trabalho, Ruth desceu até a casa de sua mãe. Pensou inicialmente que ela vinha se penitenciar pelo esquecimento do convite, mas estava enganada.

    – Viu mamãe, que vexame que aprontou esse cachorro? Mordeu o filho

    do Dr. Roberto!

    Emília, surpresa, ficou embasbacada. Ruth com uma expressão azeda,

    concluiu:

    – Mamãe, dê um jeito nesse cachorro! Não quero mais ele no meu

    quintal!

    O ÚLTIMO TREM DA AURORA

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    3

    O PÉ DE MANGA

    Para Firmino e Emília os dias fluíam mecanicamente. A única diferen-

    ça é que havia entre eles uma noite. Era apenas um dia produzindo

    horas em série como uma máquina produz suas peças. Uma sequên-

    cia de dias, sem conteúdo, a não ser a expectativa preocupante do amanhã!

    Emília trazia trancado a sete chaves o segredo daquela carta fatídica.

    Firmino, humilde e alheio a todos esses problemas, resignado com a

    parte do mundo que lhe reservara, que não ia além do tamanho da sombra do pé de manga.

    Sentado no seu velho banquinho, com Maiado enrodilhado aos seus

    pés, deliciava-se com os pássaros cantando amores à sua companheira no ninho, nos altos galhos da mangueira!

    O zumbido das abelhas, cheio de melodia, como se fosse uma orques-

    tra móvel, beijando flor por flor!

    Todo esse quadro poético volvia à sua memória a lembrança das vastas matas virgens onde se aventurava ao entrar para colher mel de abelha ou procurar cascas de pau para fazer remédio para seus filhos.

    Hoje, sentado à sombra de sua minúscula floresta, formada por apenas um pé de manga, Firmino mergulhava no mar do passado, para trazer à

    tona as inesquecíveis lembranças dos áureos tempos em que, sentado no mesmo banquinho; contava causos de assombrações aos seus filhos nos saudosos serões na varanda da Fazenda Zoio D’água; tendo ainda como

    testemunha viva desses inesquecíveis momentos de felicidade, seu inseparável amigo: o cão Maiado.

    Mas, um belo dia, o único pedaço da mata virgem que lhe sobrara veio abaixo!

    Logo de manhã, cinco ou seis homens taludos, dentro de seus uni-

    formes, apareceram no quintal, acompanhados de Ruth. Empunhavam

    nas mãos uma ferramenta estranha. Rodearam o pé de manga, mediram,

    estudaram, retiraram o banquinho e se aproximaram da mangueira com

    seus aparatos.

    Só agora Firmino se dera conta de que iam derrubar seu pé de manga! Abalado, em sobressalto, se aproximou de sua filha e perguntou com humildade:

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    – Minha filha, você vai mandar cortar o pé de manga?!

    – Ora papai, ele só faz sujeira no quintal, além de que as crianças im-portunam o dia todo pedindo mangas.

    Sem se dispor a discutir mais o assunto, fez sinal para os operários ini-ciarem os trabalhos e tomando seu carro, partiu para seu trabalho.

    Os operários, com um gesto que se eximia de qualquer culpa, ligaram

    sua moto-serra e deram início à sua tarefa.

    Firmino, abatido como um advogado quando perde sua causa, reco-

    lheu-se no seu quartinho dos fundos do quintal de sua filha Ruth, para não ser testemunha ocular desse assassinato a sangue frio.

    Em respeitoso ao pungente silêncio, sentou-se no sofá ao lado de Emí-

    lia, que sofria tal qual ele.

    Quisera Firmino não ter ouvidos para não ouvir a macabra sinfonia da motoserra, que com a fúria antiecológica, estraçalhava com seus dentes de aço no o caule da mangueira, tal qual um lobo faminto devora sua presa.

    Os pássaros fugiam apavorados para retornar em seguida. Nasceram

    ali, viviam ali, para onde iriam agora?

    A mangueira, aflita, tremulava suas mãos cobertas de folhas, como quem pedisse socorro! Quisera ela poder voar, fugir; mas estava presa pelos pés!

    Inconformada com seu destino, agitava seus braços ao vento, enquanto as aves em pânico fugiam em definitivo; voando a esmo pelo espaço!

    A mangueira percebeu que estava condenada à morte, só não lhe dis-

    seram por que, pois sempre abrigava a todos na sua confortante sombra, oferecia seus apreciadíssimos frutos, purificava o ar, então por que os homens agiam assim?!

    Quando a serra atingiu sua veia jugular, o cerne, ela entregou-se, perdera o contato com seu corpo todo. Rodopiou para um lado, depois para outro, deu um grito e um gemido prolongado e caiu morta em decúbito dorsal!

    O que a natureza custou dezenas e dezenas de anos para construir, o

    predador acabou em poucos minutos!

    Na janela dos quartinhos dos fundos da casa de Ruth, Emília e Firmi-

    no, com os olhos umedecidos, velavam o corpo de sua amiga mangueira, estirada sobre o chão...

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    O DESTINO DE MAIADO

    Diariamente, Ruth cobrava de sua mãe uma solução para Maiado.

    Ela estava determinada em não aceitar a presença do cachorro em

    seu quintal.

    Emília sequer repassava essa notícia a Firmino, temendo que essa no-

    tícia viesse a agravar sua já preocupante saúde. Emília protelava e várias vezes tentava persuadir sua filha a demovê-la desse intento.

    – Ruth, você bem sabe o que Maiado representa para seu pai! Suas ca-

    çadas, pescarias, procurando criações arribadas. Quantas vezes lutou com bicho do mato, salvando nossas galinhadas. Você se lembra quando ele lutou contra a perigosa caninana enquanto você dormia embaixo da sombra do pé de café e nós trabalhávamos?

    Ruth, inflexível contestava:

    – Ora, mamãe! Não é mais tempo de Maiado!

    Emília acabou por se convencer que o caso de Maiado estava perdido.

    A posição de sua filha era inarredável e cada vez mais ameaçadora.

    – Se vocês não derem um jeito, eu dou! – o que podia se subentender

    a providência fatal: a participação da carrocinha de recolhimento de cães abandonados, cujo destino era a câmara de gás!

    Emília gastava o dia e passava a noite em busca de uma solução. Che-

    gou ao ponto extremo de pedir até para seu santo protetor que a ajudasse.

    Uma noite, já de madrugada, lhe veio uma luz! Encontrara uma so-

    lução. Só faltava convencer Firmino a aceitá-la. Logo cedo se pôs a essa tarefa, cuidadosamente:

    – Firmino – disse temerosa e emocionada - esse nosso Maiado está

    sofrendo muito nesse quintal cimentado e quente como um braseiro sem uma sombra para abrigar-se... e com esse enxame de mosca comendo-lhe as orelhas! Desse jeito ele não vai viver muito tempo!

    Emília, atenta à expressão de seu marido fez uma pausa. Firmino tirou seu olhar do chão, levantou a cabeça e tomado de surpresa, olhou para Emília sem entender o que falava.

    Emília, com alguma dificuldade, arriscou:

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    Vamos pedir ao nosso afilhado Gabrielzinho para levá-lo de volta à

    Fazenda Zoio D’água. Gabrielzinho gosta tanto dele! Lá ele vai viver por muito tempo. Lá ele foi amado e lá ele viveu os melhores momentos de sua vida, enfim lá ele vai se reencontrar. Se preocupar com os animais foragidos, espantar as raposas e cachorro do mato que ameaçam as criações e se deliciar com a gostosa sombra da varanda. Dito isso, Emília ficou na expectativa da reação de Firmino.

    Depois de alguns momentos de silêncio, se manifestou e para satisfa-

    ção de Emília, não teve uma reação negativa.

    Olhou para o quintal, Maiado se protegia do sol na estreita faixa de sombra do beiral da casa. Estava ofegante e com a língua de fora, perturbado por um enxame de mosquitos tentando sugar o sangue de sua orelha.

    Surpreendentemente, manifestou-se pesaroso:

    – Acho que você tem razão - disse com a voz meio embargada, mas eu

    não entendo, Emília, por que nossa filha trata Maiado com tanto desprezo.

    Quando ele se aproxima dela para agradá-la, ela o enxota! Você se lembra de que lá na Fazenda brincavam o dia todo como duas crianças!

    Alguns dias após, lá se ia Maiado sobre a caminhonete de Gabrielzinho rumo à Fazenda Zoio D’água.

    – Fique tranquilo, padrinho. Ele vai ser tratado como merece, mas vai precisar sempre de sua visita.

    Do portão, Emília e Firmino assistiam com os olhos umedecidos a par-

    tida de Maiado, história viva de um passado morto...

    Contaram depois que quando foi solto, vasculhou apressadamente toda

    a casa à procura de algo. Depois foi ao quartinho de ferramenta de Firmino e, com as patas, forçava a porta. Aberta, vasculhou todos os pertences de Firmino. Depois tomou o rumo da roça em uma desembalada à procura

    daquele outro Firmino pujante, destemido, que ele deixara por ali.

    Disseram também que à noite, Maiado vinha se enrodilhar na varan-

    da, bem no local onde nas noites de serões, Firmino contava causos de assombrações aos seus filhos.

    Então o mundo de Firmino ficara mais vazio e se encolhera mais, fi-

    cando do tamanho da sombra do beiral dos quartinhos do fundo do quintal de sua filha mais velha, Ruth.

    Nas tardes ensolaradas e calorosas, Emília, sofrendo; observava Firmi-no encurralado dentro dos limites de seu território, com um olhar perdido no além, como se sua visão extrapolasse o momento, buscando através da lembrança os dias mais marcantes de sua longa existência. Era o passado

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    pedindo licença para viver novamente!

    Pelos seus cinquenta anos de convivência na mesma vida, pensando de

    modo igual, almejando os mesmos objetivos, Emília entendia até quando Firmino falava através de seu silencio.

    Emília também rompeu as brumas de seu passado e se deparou com

    o seu Firmino de ontem, jovial, vigoroso e decidido! Como uma máquina humana, virava e revirava a terra dura com a lâmina afiada de seu arado puxado pela fogosa mula Turdia, a fim de preparar a terra para receber a promissora semente. Pisava sobre a terra como se fosse algo santificado!

    Falavam-se. Ela bebia com avidez o suor que lhe pingava do rosto. Afofada a terra, aguardava as chuvas para confiar-lhe as sementes.

    Toda a manhã, o céu era o que recebia os primeiros olhares dos lavradores. Auscultando seu sintoma, a coloração das nuvens, a direção dos ventos e a noite; aguçavam os ouvidos a fim de captar os promissores pronunciamentos dos sapos anunciando a chuva, bem como as aves prenunciadoras de chuva, esperando como um atleta em posição, o tiro de partida.

    Embebida a terra com o precioso líquido básico da vida, a água; as ro-

    ças se coloriam de gente com variedade de trajes e cores, tendo em comum o enorme chapéu de palha de longas abas, para se proteger do impiedoso sol causticante.

    Como hábeis coreógrafos, em um movimento sincronizado entre as

    mãos que deitavam as sementes e os pés que cobriam a cova, com o mes-mo número de semente em cada cova, conforme sua espécie.

    Firmino, com sua habilidade e precisão, emborcava a mão dentro de seu embornal a tiracolo, retirando matematicamente sempre o número de sementes desejadas e com emoção e respeito que um religioso toma em suas mãos a Hóstia Santa, oferecia-as à boca da terra e respeitosamente as cobria.

    A semente encerrada na cova, o seu leito nupcial e através dos dons que transcendiam a inteligência humana, morria para transferir sua vida a novos rebentos dando continuidade à espécie. E atentem: sem que ninguém lhe estabelecesse os moldes, nem receitassem seus sabores e programas-sem suas matizes, reprisam há milhares de anos com uma precisão sobre-

    -humana, formando cores e paladares e que alguém bisonhamente atribui ao acaso. Uma nova preocupação surgia: era a de salvar a semente das aves predadoras que revolviam a terra e comiam uma por uma das sementes!

    Os espantalhos, com sua feição mais variada e pitoresca, feitos para amedrontá-las, se tornavam tão familiares que ousavam pousar em sua

    cabeça para defecar!

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    Esses incansáveis predadores, principalmente os teimosos Pássaros

    Pretos, deixavam Emília ao final do dia extenuada! Suarenta, afugentava o bando de pássaros que levantava voo aquém para se assentar mais à frente para onde corria Emília.

    O apoio de Maiado era decisivo: Ela economizava dezenas de cami-

    nhadas! Esbaforido, com a língua de fora, saltava no ar quase pegando as aves retardatárias que demoravam em levantar voo!

    Quantas vezes o número de pássaros sentavam ao mesmo tempo no

    início e no fim da roça. Às vezes, para Emília, em estado de desespero, não restava alternativa: apanhava a espingarda, dependurada em algum galho das árvores e saía dando tiro de festim para todos os lados!

    Ao receber as águas das primeiras chuvas, as sementes no ventre de sua mãe terra, eram tocadas pelo dom da vida. Então acontece o magnífico e esplendoroso mistério da natureza: a germinação, a posse da vida!

    Após seu nascimento, seguem-se novas etapas de preocupações: não

    permitir que as ervas daninhas suplantem e sufoquem a plantação e não deixar que suguem todo o nutriente da terra, comprometendo o bom desenvolvimento da plantação. Havia até comentários entre os lavradores a esse respeito:

    – Não sei por que o mato cresce mais depressa do que a plantação!

    – É verdade! Até parece que a terra é mãe do mato e madrasta da plantação!

    O ÚLTIMO TREM DA AURORA

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    O PRIMEIRO PARTO DE EMÍLIA

    Emília - dizia Firmino - vou aumentar a área de plantação. Precisa sobrar algum dinheiro para que eu possa comprar uma nova mula. A

    Jurema está velha, trabalhou muitos anos e não aguenta mais puxar

    o arado! Preciso de uma mula nova!

    Firmino era imbatível! Um sonho para cada ano, embora o sonho de

    uma mula nova já passara de ano! Mas desse ano não passaria! Por isso, levantava mais cedo e voltava da roça mais tarde.

    A lida de Firmino começava de madrugada, quando ainda tinha um

    bom pedaço de noite. Correndo entre o paiol, estábulo e chiqueiro, como um fantasma, tratando de sua criação! A essa hora, a jovem Emília já co-ara seu saboroso cafezinho, com café torrado e moído por ela e já posto à mesa juntamente com seu delicioso bolo de fubá. Depois do abraço e um comedido beijo, colocava seus apetrechos nas costas, a porunga de água na mão e se punha a caminho da roça acompanhado por Maiado, de onde

    só retornava quando o seu relógio, a penumbra da noite, anunciava o fim da jornada! Porém, Firmino não parava aí não.

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