Fatalidade
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Fatalidade - Helio Parron Ferrara
Hélio Parron Ferrara Fatalidade 3
Hélio Parron Ferrara Fatalidade FATALIDADE
Um ensaio sobre a tragédia
4
Hélio Parron Ferrara Fatalidade
FATALIDADE
Um ensaio sobre a tragédia
Hélio Parron Ferrara
Copyright © 2019 Hélio Parron Ferrara
All rights reserved.
5
Hélio Parron Ferrara Fatalidade
Este é um trabalho de ficção, salientamos, portanto que qualquer
semelhança que a presente obra possa apresentar, seja com pessoas,
nomes, ou acontecimentos da vida real, configurar-se-á apenas e tão
somente em fruto do acaso, singela coincidência.
Ferrara, Hélio Parron, 1963
Fatalidade, um ensaio sobre a tragédia
Editoras
Clube de Autores (Brasil)
Lulu (USA)
Bubok (Portugal)
1. romance 2.drama 3.literatura brasileira 4.tragédia 5.mistério
6.suspense 7.terror 8.literatura fantástica 9.ficção
Capa e revisão – O próprio autor
1ª Edição – Agosto de 2019
Todos os direitos reservados
Nenhuma parte deste livro poderá ser utilizada, modificada ou
reproduzida, sem prévia autorização do autor.
ISBN 978-0-359-64921-1
6
Hélio Parron Ferrara Fatalidade
"Não consideremos feliz nenhum ser humano,
enquanto ele não tiver atingido, sem sofrer os
golpes da fatalidade, o termo de sua vida."
Sófocles
7
Hélio Parron Ferrara Fatalidade Introdução
Seria mesmo verídica ou procedente, a idéia de que
todo escritor principiante tem sempre algo de "Sturm und
Drang" 1 (terminologia que pode ser traduzida como
tempestade e ímpeto) em suas primeiras composições?
O fato é que em Fatalidade, e já fazendo uma
autocrítica, devo salientar que a violência paira no ar em todos
os seus capítulos. E ainda que possa soar excessivamente
melodramático, é inegável, contudo, que de suas páginas quase
se pode ver o sangue vertendo.
Também pudera; Fatalidade, composta a mais de 30
anos, foi de fato o meu primeiro romance. Eu tinha meus 19/20
anos, e trabalhava no Sindicado dos Trabalhadores Rurais de
Itaguajé. A presente obra foi redigida inicialmente em uma
Sperry Remington 100 2. Devo ter levado pouco mais de um ano
para concluir sua composição. A idéia inicial era escrever uma
tragédia. Nessa época, havia me causado grande influência, as
peças; Édipo Rei, de Sófocles, Prometeu Acorrentado, de
Ésquilo, algumas incursões que fiz pelas obras de Eurípedes, e
finalmente, da lavra de Shakespeare, Romeu e Julieta e,
sobretudo Titus Andronicus.
A inevitabilidade do destino previamente prognosticada
parecia algo assombroso, onde os personagens em tresloucado
desespero buscam alternativas para o fatídico iminente, onde
1 Sturm und drang - Peça do alemão Friedrich Klinger (1752-1831), que
titulou o movimento que foi de 1760 a 1780 na Alemanha, cujo principal
objetivo era fazer frente à influencia francesa. As obras tinham uma
impulsividade violenta, buscando evidenciar explicitamente as emoções
fortes.
2 Sperry Remington 100 - Marca/modelo de máquina de escrever muito
comum nos anos 80.
8
Hélio Parron Ferrara Fatalidade pequenos detalhes alteram sobremaneira os rumos de toda uma
existência. Tudo envolto em maldade, violência, e as cores
berrantes da dor e do sofrimento diante do destino atroz.
"-Vem para aqui, menino: vem e aprende conosco a
derreter-te de tristeza." 3 Diz Lúcio, um dos filhos de Titus
Andronicus, já nas últimas frases do último ato. E enquanto
isso, Prometeu, se lamenta de seu infortúnio causado por
Júpiter, onde a imortalidade pode lhe ser um fardo, já que sua
desdita será eterna; "-... estou acorrentado a este íngreme
rochedo , onde ficarei de sentinela, bem a meu pesar, pelos
tempos a fora"4; Mais adiante vamos encontrar o Corifeu na
última frase de Antígone
; lançar a inquietante fala que, com
efeito, vai muito bem representar a idéia da tragédia, e, por
conseguinte de Fatalidade
: "- Assim, não consideremos feliz
nenhum ser humano, enquanto ele não tiver atingido, sem
sofrer os golpes da fatalidade, o termo de sua vida."5 E por
fim, Tirésias, o vidente cego, arremata a desdita fatal de todos
os infortunados das tragédias: "- O que tem de acontecer,
acontecerá,..."6 já que "o sofrimento é a lei de ferro da
natureza", assevera Eurípedes. E neste contexto, concluímos
com o próprio dramaturgo de Salamina, "já não sei como
algum mortal eu possa chamar feliz, se a mor boa ventura em
desgraça se torna num momento" 7!
Dentro dessa inter-relação é que vai nascer Fatalidade.
Das entranhas da mente de um jovem de 19 anos, cujo objetivo
não era o de compor um poema trágico, ou uma peça de teatro
dramática, mas sim um livro com a mesma temática das
3 Tito Andronico - Shakespeare Ato V cena III
4 Prometeu Acorrentado – Ésquilo
5 Antígone - Sófocles
6 Édipo Rei - Sófocles
7 Hipólito - Eurípedes
9
Hélio Parron Ferrara Fatalidade tragédias propriamente ditas. Logo se vê, por exemplo, a
influência de tais composições nas frases longas, um tanto
rebuscadas e laboriosamente construídas, onde o sofrimento
gratuito vai permear a obra em seus dois núcleos; a trajetória
do personagem e a trama secundária de terceiros, mas no
entorno do personagem principal, único elemento em comum.
E assim também, como na mitologia grega em que
todas as coisas foram personificadas, vamos encontrar nesta
obra, a personificação da fatalidade. Fatalidade esta, que em
sua significação vai representar o destino imutável, iconizada
em um vaticínio tétrico e com isso ganhar as cores aflitivas do
mal, da dor, do sofrimento, do inevitável. Suas garras afiadas e
bico adunco, vão afligir sobremaneira o pobre personagem
Breviato. Vindo do Nordeste, ele, desde tenra idade, tem vivido
e convivido com a tragédia. A dor e o sofrimento parecem se
exibir diante dele, com tantos acontecimentos fatídicos numa
trajetória de violência, maldade, vingança, ódio e mistérios
lúgubres.
Sabemos que em literatura, o que se escreve é quase
sempre o fruto das experiências vividas, das impressões
capturadas do cotidiano, das influências do meio em que se
está inserido. Ora, acontece que em 1983/84, com parcas duas
décadas de existência, pouco se sabia sobre as mazelas da vida.
E ainda que uma hemorragia digestiva, seguida de um erro
médico onde estivemos a poucos passos do passamento, possa
representar provação marcante, fato é que a falta de
experiência de vida ainda é gritante. Faltou portando, inserir
em Fatalidade, algo além da tragédia explícita, o DDM8, Uma
das mais maquiavélicas patologias tão abundantes nos tempos
modernos. Esta que por sua vez, não vai causar a dor
lancinante de uma faca rasgando-lhe o corpo ou de uma chama
8 Distúrbio Depressivo Maior. Depressão.
10
Hélio Parron Ferrara Fatalidade ardente queimando-lhe impiedosamente a derme. É na
patologia depressiva que a dor que não dói, mostra seu poder
mais perverso e cruento, de tal sorte (ou melhor, azar) que o
paciente é levado ao extremo da loucura desesperadora e
aflitiva que lhe sugere como única alternativa, a subtração de
sua própria existência. Não obstante a falta de conhecimento da
época, o personagem Breviato, certamente foi acometido de tal
malefício patológico, notadamente diante das mais sórdidas
revelações, onde menciona com todas as letras que a dor da
alma é insuportavelmente maior que a dor física, evidenciando
assim todos os indícios de que os sintomas mórbidos da
depressão, certamente lhe acometeram em muitas ocasiões,
muito embora o texto da época, não as ter especificado como
tal.
De qualquer forma, para Breviato, é o destino, a
fatalidade propriamente dita, quem lhe causa tanta dor, tanto
sofrimento. Não só para si próprio como para aqueles que lhe
são próximos. Sucessivamente todos os que lhe são mais caros,
vão sucumbindo em dor e lágrimas, quando não em sangue,
impondo ao pobre nordestino radicado no sul, os mais aflitivos
pesares diante do destino inevitável e vaticinado, contra o que
não pode lançar embate.
Notadamente sobre este texto, fatalidade, é essencial
mencionar que uma correção bem aprimorada, a inserção de
novos personagens, um melhor entrelaçamento noveleiro dos
tipos criados, foram introduzidos para assim dar mais
consistência à obra. Tal opção foi bastante questionada e
mensurada antes de ser levada a efeito. E tais alterações, que
não passam de quinze páginas de acréscimo, (num universo de
mais de duzentas) foram devidamente ponderadas e
cuidadosamente inseridas sem, contudo, prejudicar a estrutura
do texto original. De sorte que no geral, toda a obra representa
um momento específico no tempo, da minha própria
11
Hélio Parron Ferrara Fatalidade capacidade criativa. Procurei, portanto, manter o texto original,
redigido em máquina de escrever no início da década de 80
(1983/84), onde praticamente nada foi descartado. As únicas
alterações dignas de menção foram os poucos acréscimos que
tornaram o entrelaçamento dos personagens ainda mais
consistente, bem como a inserção do vaticínio tão comum nas
tragédias gregas, fonte de inspiração da presente obra.
Com efeito, e desse modo, pude preservar minha linha
de idéias e pensamentos não dos dias atuais, mas daqueles
tempos passados, que já lá se vão mais de três décadas.
Justamente por esse motivo, Fatalidade ficou
engavetando por mais de trinta anos. Por conseguinte, foi um
trabalho laborioso, copiar todo o texto original das já
amareladas folhas de papel sulfite, redigitando tudo em
formato de texto para computador. Mas a originalidade da
composição, quanto ao seu conteúdo, foi mantido. Apenas a
gramática, por motivos óbvios, foi devidamente atualizada, não
obstante as inserções supra mencionadas.
Por fim, um breve parágrafo sobre as tenebrosas cenas
do "fazer a cabeça". Ainda que pareça demais macabro,
sinistro e deveras horripilante, o ritual existe de verdade. São
praticados em raras exceções, onde apesar de nos causar
espanto e às vezes até mesmo muito medo, trata-se de tradição
da cultura Afro, e em sua tese primária, tem os objetivos mais
alvissareiros, ou seja, o de trazer o bem. Não é, repito, não é
absolutamente um ritual demoníaco, mas sim um processo
onde segundo a crença, vai trazer somente benefícios, apesar
do sofrimento do ritual em si. Consideremos, pois assim, o
mencionado sofrimento como sacrifício em vista de um bem
maior, a ser conquistado no futuro. Já as cenas noturnas, com o
personagem Doutor Marão, e todo aquele ambiente sinistro,
tétrico e assustador, são apenas recursos de linguagem para
12
Hélio Parron Ferrara Fatalidade tornar o texto mais dramático, mas nada tem a ver com a
realidade. É ficção pura.
Por fim, e já concluindo, reitero que Fatalidade, é,
portanto a tentativa juvenil, e devo reconhecer bastante
pretensiosa, de compor uma obra trágica, nos mesmos moldes
das tragédias grego-shakespearianas, onde o infortúnio, sem
motivo aparente, se lança vorazmente sobre pobres inocentes,
infelicitando-os ao extremo. E inda que a pretensão possa
parecer demais ambiciosa ou um tanto pueril, fato é que
esforço grandioso ao longo de mais de um ano, foi dispensando
em favor de tal composição. Conjunto este que narra a
trajetória catastrófica e calamitosa de Breviato, que desde
criancinha, tem sua vida tolhida pelas desgraças insanas
praticadas pela crueldade maligna de uma insensata, impiedosa
e fatídica Fatalidade, e sua persistência em fazer cumprir a
qualquer custo, um oráculo pronunciado.
O autor
13
Hélio Parron Ferrara Fatalidade
Capítulo 1
Cenas Funestas
14
Hélio Parron Ferrara Fatalidade O sol diariamente se levanta, clareando a terra,
expulsando as trevas e iluminando meu triste destino. É assim
que foi hoje é e sempre será, sendo hoje minha situação
deveras aterradora, porém mais aterradora ainda é minha
história, minha vida que aqui procurarei contar em poucas
linhas, com a maior objetividade possível, porém, sem omitir
fatos.
Meu nome é Aribaia Sivirino Breviato. Aribaia, por
causa de certo Doutor Aribaia, que viveu em minha terra, o
querido Pernambuco, que, com efeito, é minha terra, mas não
cheguei a conhecê-lo como verão mais adiante. De retorno ao
assunto, era o Doutor Aribaia, de muita fama e prestígio, como
contou minha saudosa mãe. Sendo assim e tendo eu vindo ao
mundo sob seus cuidados, foi até uma obrigação de minha mãe
por em mim o nome de aludido Doutor, com a sua aprovação
evidentemente, já que minha mãe supunha rebaixar o bom
nome do Doutor pondo em um reles pirralho como eu, o nome
de
tão
importante
personalidade.
Quanto
ao
nome
propriamente dito, Aribaia
, eu não sei absolutamente de onde
veio. Se ele era, e digo era, porque hoje é saudoso o bom
esculápio pernambucano; um nome brasileiro ou se de outras
terras veio. Ou ainda se é um nome gringo. Com efeito, pelo
pouco que conheço sobre tudo, venho a crer e não sei bem
porque, que o nome do Doutor tem mesmo é origem indígena.
Quanto a Sivirino, nem preciso explicar, o nordeste, sobretudo
o Pernambuco é a terra deles e para mim é um orgulho ter esse
nome, todavia, diga-se de passagem, me magoa muito ter ele
sido escrito errado na ocasião do registro, e minha mãe
analfabeta como era nem se deu conta disso. Quanto a meu pai,
pior ainda, além de analfabeto não se importava comigo. Por
fim no que diz respeito ao Breviato, nada posso dizer. É
sobrenome de meu pai e nunca minha mãe me falou sobre ele.
15
Hélio Parron Ferrara Fatalidade De certo nunca soube, pois se soubesse certamente me teria
dito.
Eis agora minha história, com efeito, minha própria
vida. Como já ficou exposto acima, vim eu do nordeste,
todavia vim de lá quando criança. Os momentos de terror e
angustia que já passei não desejo a ninguém, nem mesmo ao
tinhoso lúcifer, demo inescrupuloso.
Dos trágicos fatos ocorridos com minha família em
Pernambuco, não me lembro de nada. Tudo que sei me foi
contado mais tarde quando eu era já bem crescidinho, por
minha mãe, que em prantos não contendo os soluços, quase
sempre deixava a narrativa inacabada e corria a se trancar em
seu pequenino quarto de dormir.
Conta ela, a minha mãe, Maria José era seu lindo nome,
que certa vez descobriu a traição de meu pai, Crisógono
Severino Breviato, que freqüentava a casa de uma prostituta e
não muito raro dando-lhe caros presentes e deixando minha
pobre mãe passando sérias necessidades em casa, mais
explicitamente sofrendo os horrores da fome com uma criança
manhosa do lado, eu evidentemente.
Numa certa noite mamãe já cansada de tanta
humilhação e sofrimento decidiu por uma atitude mais séria e
após a saída de meu pai o que ela garantiu categoricamente
premeditada e com o intuito de visitar a desprezível concubina,
minha mãe saiu atrás alguns instantes depois a fim de segui-lo
e pegá-lo em flagrante a fim de que ele de maneira nenhuma
pudesse alegar como das outras vezes, ser conversa dos outros.
E assim foi que minha mãe após segui-lo por certo trecho até
uma tosca casinha no meio da quiçaça, sentiu vontade de
voltar, faltava lhe ânimo para enfrentar a situação, e de fato já
ia iniciando o retorno quando ouviu escandalosa risada vinda
do casebre. O efeito sonoro que a escandalosa gargalhada
produziu em minha mãe foi surpreendente e até mesmo eu diria
16
Hélio Parron Ferrara Fatalidade aterrador ou catastrófico. Enfurecida ela tocou-se decidida até
o escandaloso casebre e de faca em punho invadiu-o
derrubando violentamente a frágil portinhola que ali existia.
Atravessou rapidamente um pequeno cômodo que mais tarde
ela supôs ser a cozinha e estando diante de uma segunda porta,
desta vez protegida apenas por uma cortina, gritou enfurecida.
-Malditos.
E invadiu o repugnante recinto encontrando os dois
completamente nus e assustados pelo barulho. Histérica,
completamente tomada pelo ódio, ela se lançou sobre a nojenta
prostituta que era o alvo mais próximo e se não fosse pela
interferência de meu pai que segurou lhe o pulso evitando o
golpe fatal que sangraria a concubina no coração, minha mãe
teria saído dali assassina.
Vendo que na seqüência dos acontecimentos mulher e
marido se debatiam no chão, a prostituta desapareceu
certamente sem as roupas entre a espessa quiçaça que por ali
existia. Dominada finalmente por meu pai, mamãe o xinga
violentamente, o que faz com que ele se enfureça e arranque
das calças agora já vestidas, um belo e ameaçador cinturão de
couro cru, e sem pena fustiga lhe as costas várias vezes
seguidas sem que ela emita um só gemido. Depois quando seu
vestido já está feito trapo por causa das fortes chicotadas; e
trechos de suas costas já começam a aparecerem por entre os
rasgos do vestido, mostrando visivelmente os sinais do
lamentável flagelo, ele para de chicoteá-la, mais por cansaço
que por pena. Aí então ela se volta melancólica para ele e diz:
-É esse o carinho que prestas àquela que te estima e
respeita? É este o cumprimento do que prometestes quando
diante do padre no dia do himeneu? É esta a fidelidade que tão
santamente tu jurastes diante do altar? É assim que tu me
tratas, tirando de casa o pão que era de seu filho para
empanturrar essa vil mulher de presentes caros que tu nunca
17
Hélio Parron Ferrara Fatalidade me destes, igual nem inferior? Que tu me deixe passar fome
premeditadamente é um pecado, mas ainda assim uma pobre
escrava como eu certamente que toleraria. Todavia deixar que
um inocente recém nascido passe por tão cruel necessidade por
causa de tuas farras malditas é imperdoável e maldito sejas tu
por toda a eternidade. E como se não bastasse, pois que, venho
aqui a fim de extinguir essa devastadora orgia para que
possamos viver felizes ou pelo menos criar o nosso filho com
dignidade, mas tu enfeitiçado por essa maldita pecadora, estais
cego e não percebes nem mesmo o que é razoável, e me
fustigas tão barbaramente por praticar uma boa ação. É esse o
agradecimento que tens por mim por tentar livrá-lo do opróbrio
e mais que isso por tentar livrá-lo da fúria divina por praticar
hediondos atos de orgia? Pois se é assim, se é esse o tipo de
agradecimento que tens para mim, então bata mais que eu
mereço, pois ainda tem muito que me agradecer por eu ter sido
fiel e mais que uma esposa, uma serva. Sendo assim eu te
suplico; bata-me, surra-me, surra-me ainda mais...
Para meu pai, essa atitude foi incompreensível, e
desatinado como estava, bradou energicamente de chicote em
punho:
-Ó desgraçada mulher, então tu me segues dessa
maneira e ergue a faca ameaçadora contra uma indefessa
mulher, e se ela não estivesse mais perto certamente seria eu o
alvo de tua cólera, pois que descontrolada estavas. Não vedes
que sou eu o chefe da casa e que com isso mando eu? E tu me
vens desafiar perante uma mulher e não querias que eu te
repreendesse? Bem sei que errei, mas que outra atitude tomaria
um homem em minha situação senão fustigar lhe a carne a fim
de que se acalmes? Com efeito, já via eu que positivamente
exagerara na coça e já me preparava para invocar o poder
supremo, a fim de solicitar lhe boa maldição, doloroso castigo
para que com o esforço e o sofrimento eu pudesse me redimir
18
Hélio Parron Ferrara Fatalidade de meus atos, quando tu me fazes novamente crescer a cólera e
o ódio. Que tipo de mulher é tu que após dolorosa humilhação
ainda pede bis? Vejo com isso que é real o dito do povo que
diz que as mulheres gostam mesmo é de apanhar. Se assim é
que tu desejas, então assim será. Prepara-te, pois que não terei
piedade e de nada adiantará suplicar perdão, pois foste tu
mesma que pedistes isto.
Dito tais palavras, meu pai põe se a cortar lhe as costas
e também outras partes macias do corpo com o potente
cinturão de couro cru. E assim foi que por razoável período ele
ficou ali a castigar vergonhosamente minha inocente mãe.
Quando por fim já eram visíveis as manchas de sangue por
entre as vestes de minha mãe, agora feito trapos, que ele deu
por findo seu castigo. Todavia minha mãe já perdendo as
forças novamente lhe suplica que a surre mais um pouco:
-Vamos odioso marido... bata-me ... bata-me mais ainda
... pois que, muito ainda tens que me agradecer...
Revoltado com o que ouve, meu pai pela terceira vez
põe-se furiosamente a maltratá-la com o revoltante cinturão de
couro cru. E desta vez maior é a sua ira que ele procura para
bater, as partes ainda não afetadas e conseqüentemente as
regiões mais mimosas, mais sensíveis, dentre elas o rosto, que
depois de um bom tempo de impiedoso flagelo, vê-se tomado
pelas marcas da correia maldita e já o nariz está a sangrar e os
olhos fechados e ameaçados de cegueira e ela já não tem mais
forças para praticamente nada. Inerte no chão, desfalecida.
Quando meu pai se dá conta do quadro aviltante, deixa
cair-lhe o chicote sobre ela que vendo cessar a humilhação,
levanta a cabeça com esforço e o fita melancolicamente.
Depois deixa a cabeça pender para ao lado como se tivesse
falecido. Já apavorado com o horrendo quadro que se apresenta
diante dele, meu pai tomado pelo pavor foge, tanto por
desatino como por medo de que ela ainda pela terceira vez
19
Hélio Parron Ferrara Fatalidade viesse a implorar-lhe a seqüência do desumano castigo, ou
temendo o pior, pois a essa altura, de certo que lhe passou pela
cabeça a idéia de já tê-la feito cadáver.
Minha mãe segundo me contou, ficou ali por várias
horas num angustiante sofrimento, sem poder se mexer sem
poder se mover. Por fim quando a noite já ia alta, ouviu um
barulho estranho que logo pode ser identificado como o de um
carro. Pouco depois entra ali o Doutor Aribaia, meu xará, e
abismado com o quadro que viu ante seus olhos sob a luz de
uma lamparina, que já se põe a ponto de extinguir sua chama
pela falta de querosene, recolhe minha mãe em seus braços e a
conduz ao seu posto médico onde lhe cuida muito bem, a fim
de que se recupere o mais rápido possível.
Somente mais tarde quando minha mãe já se recuperara
do choque e da dor e quando já seus ferimentos estão por se
cicatrizarem, é que vem a ser informada de que na noite da
barbaridade, foi o Doutor Aribaia, informado por meu pai
Crisógono, do ocorrido e então pode salvá-la. Conta o Doutor
que fora acordado a altas horas da noite por meu pai que em
um pânico terrível assegurava categoricamente ter tirado a vida
da própria esposa. Depois sem rumo certo saiu aos tropeços
amaldiçoando a si próprio. Imediatamente o Doutor Aribaia
conhecedor da região corre para lá ainda a tempo de salvá-la.
Quanto a mim, fiquei sob os cuidados de dona Joselina,
esposa do Doutor Aribaia, uma santa mulher, que compadecida
dos trágicos acontecimentos, até então ocorridos, me tratou
muito bem como se eu fosse seu próprio filho. Alguns dias
depois minha mãe retorna para a casa onde morava, com a
informação de que meu pai estava fora da região ciente de tê-la
assassinado. Estava ele foragido, temeroso da ação das
autoridades policiais. O intuito de minha mãe era retornar à
casa a fim de recolher ali tudo que lhe pudesse ser útil já que
decidido ficara que viveria com a família do Doutor Aribaia e
20
Hélio Parron Ferrara Fatalidade trabalharia ali como criada. Todavia