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E-book365 páginas4 horas

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Sobre este e-book

Este livro trata da eugenia enquanto um campo de produção de conhecimento, estruturado em pressupostos teóricos, práticas sociais e laboratoriais com o propósito de intervir na constituição biológica humana, em estreita sintonia com os debates sobre hereditariedade na passagem do século XIX para o XX, em um solo epistemológico marcado por ideologias racistas e discriminatórias.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de jan. de 2022
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    Eugenia - Valdeir D. Del Cont

    INTRODUÇÃO

    Já se tornou uma espécie de lugar comum fazer referência à eugenia como procedimento pseudocientífico, caracterizado muito mais como um movimento de cunho discriminatório do que como algo que correspondesse aos rigores mínimos do que poderíamos denominar de ciência, no sentido do que poderia ser descrito como ciência biológica ou genética. (Pichot, 1995)

    Os esforços dos que se envolveram com o movimento eugênico têm sido interpretados como sendo manobras conservadoras, elitistas e discriminatórias, decorrentes de uma visão de mundo centrada em uma perspectiva eurocêntrica e racista (Kevles, 2001). Seus adeptos são descritos muito mais como sujeitos preconceituosos do que como sérios pesquisadores interessados na qualidade de vida das futuras gerações. (Black, 2003)

    Contudo, o que causa certo espanto é perceber, nas listas de membros das instituições eugênicas, nomes de pessoas que foram responsáveis por avanços significativos em várias áreas da ciência, da política e do que poderíamos considerar causas humanitárias.¹ Por que tantas pessoas inteligentes se deixaram enredar por uma mensagem deturpada de um movimento pseudocientífico? O que existe na eugenia que poderia servir como explicação para o seu rápido e fascinante desenvolvimento nas universidades estadunidenses, com a implantação de disciplinas que retratavam a eugenia em seus currículos e até de cursos destinados à formação eugênica? Que fascínio o pensamento eugênico possuía para que instituições eugênicas fossem criadas em inúmeros países europeus, latinos americanos e asiáticos? Como compreender as medidas legislativas que procuravam dar contornos legais para práticas discriminatórias e intervencionistas na capacidade de pessoas consideradas inaptas para constituir família, ter filhos ou para o convívio social? O que poderia explicar a busca desenfreada por instrumentos que pudessem indicar a pessoa eugenicamente inapta, com sua conformação física, seus hábitos socialmente degenerantes e seu nível de inteligência correspondendo a uma existência de idiotia – "moron"? (Gould, 2003; Kevles, 2001; Goodheart, 2004)

    Essas questões serviram de ponto de partida para o desenvolvimento do nosso estudo realizado no programa de doutorado em ciências sociais, no departamento de antropologia, da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Estudo este que agora apresentamos em formato de livro, com ajustes para um público mais amplo, para além dos rigores acadêmicos de uma tese. Para tanto, várias citações de corpo foram modificadas para citações indiretas, algumas partes reescritas e outras suprimidas.

    Para os propósitos do nosso estudo, a eugenia não foi somente um movimento sócio-político discriminatório e racista, mas, sobretudo o modelo estadunidense, constituiu-se como um campo de produção de saber científico proveniente de uma espécie de consequência do desenvolvimento das teorias sobre hereditariedade que se estenderam desde Lamarck (1744-1829), passando por Charles Darwin (1809-1889), Herbert Spencer (1820-1903), August Weismann (1834-1914), chegando aos trabalhos de Francis Galton (1822-1911) e de Charles B. Davenport (1866-1944).

    Nesse sentido, no início do século XX e de modo particular nos Estados Unidos, estabeleceram-se referenciais teóricos e práticas sociais a partir da concepção de que a eugenia era compreendida como legítima ciência da hereditariedade, no sentido de fazer estender para os seres humanos o que seria válido para ervilhas, milhos, porcos e cavalos, com o firme propósito do melhoramento das especificidades genéticas humanas.

    O tratamento que dispensaremos a respeito da contribuição teórica dos envolvidos com o movimento eugenista não visa fazer uma análise pormenorizada de suas posições teóricas, mas sim relacionar os principais pontos que contribuíram para propositura de um campo de articulação teórica e práticas laboratoriais e sociais descritos por Francis Galton como ciência eugênica. Com este propósito, orientamo-nos muito mais por alguns estudiosos como Ernst Mayr e em sua obra O desenvolvimento do pensamento biológico (1998) e Peter J. Bowler e sua obra Evolution: The history of an Idea (1989), bem como por algumas obras de referência dos autores e, em alguns casos, somente os capítulos em que os autores tratam da questão da hereditariedade, como foi o caso de Charles Darwin que dedicou o capítulo 27 da obra The Variation of Animals and Plants under Domestication (1883) para o tratamento de sua teoria da hereditariedade, batizada de pangênese.

    Nosso estudo se originou a partir de uma inquietação quanto aos alcances científicos dos programas eugênicos; dado que Francis Galton, considerado pai fundador da eugenia, concebeu-a como uma ciência, mas, no entanto, a interpretação corrente a considera como uma pseudociência. Ademais, considerada  até pouco tempo como um assunto superado, a eugenia volta a ocupar o imaginário social e a despertar a atenção de pensadores e cientistas de campos variados. Os avanços da genômica têm, por assim dizer, propiciado a recolocação de velhas questões eugênicas. O alcance social do uso das informações genéticas tem inspirado trabalhos como os do antropólogo Paul Rabinow (2002; 1996) e de filósofos como Jürgen Habermas (2004).

    As implicações sociais do conhecimento genômico, associadas à possibilidade cada vez mais presente da formação de um mercado em que as escolhas seriam orientadas para o controle reprodutivo de características desejáveis ou indesejáveis, no sentido de maximizar as vantagens em cenários sócio-econômicos altamente competitivos, têm servido de referência para se pensar as relações sociais a partir de novos referenciais teóricos, como o conceito de biossociabilidade, a partir do qual, segundo Paul Rabinow (2002), diluir-se-ia a tradicional distinção natureza vs. Cultura.

    Isso parece indicar que para compreendermos suficientemente os desdobramentos do uso sócio-econômico das informações genéticas, com a formação de referenciais biológicos através dos quais as noções de identidade, de pessoa e de corpo poderão ser reformuladas em função da busca da saúde e de corpos perfeitos (Sfez, 1995), construídos em clínicas estéticas e laboratórios de biotecnologia, precisamos atentar para a consideração de que a eugenia não morreu. E a força de seu discurso parece encontrar-se na busca por compreender, controlar e orientar os mecanismos da hereditariedade humana, fazendo eco às aspirações presentes no antigo modelo estadunidense de eugenia; o que faz com que a temática de uma ciência eugênica ganhe relevância nos novos cenários contemporâneos.

    Nesse sentido, o ponto que pretendemos destacar é que o modelo estadunidense de eugenia, que se formou nas primeiras décadas do século XX, teve como ponto central a preocupação com o controle da reprodução humana a partir do domínio de informações genéticas; constituindo-se em um campo de produção de saber científico, com habitus característicos, em torno dos quais, agentes e instituições estabeleceram referenciais teóricos e ações protocolares em relação a um núcleo comum de problemáticas. Pois, como diz Pierre Bourdieu:

    O campo científico –sistema de relações objetivas entre posições adquiridas em lutas anteriores– é o lugar e o espaço de uma luta concorrencial. O que está em luta são os monopólios da autoridade científica (capacidade técnica e poder social) e da competência científica (capacidade de falar e agir legitimamente, isto é, de maneira autorizada e com autoridade) que são socialmente outorgadas a um agente determinado. (Bourdieu, 2005, p. 112)

    Diante disso, a investigação que aqui se apresenta envolve relacionar as contribuições teóricas e as práticas sociais que contribuíram para a estruturação da eugenia, concebida como campo de produção de conhecimento científico sobre a hereditariedade humana. Desta forma, orientamos primeiramente os nossos esforços no sentido de se avaliar as contribuições teóricas de Lamarck, Darwin, Spencer e Weismann para a formação da noção de processo evolutivo, bem como as disputas que eles travaram em torno da compreensão do processo reprodutivo, ilustradas pelas oposições teóricas entre fixistas e evolucionistas, entre evolucionistas e neolamarckistas e entre biometristas e mendelianos, gestores, por assim dizer, de um conjunto variado de ferramentas conceituais articuladas pelos agentes em suas práticas individuais e institucionais, que aos poucos, nas primeiras décadas do século XX, contribuíram para a estruturação de um campo de articulação de práticas e saberes eugênicos, presentes nos trabalhos e práticas de Francis Galton, Charles B. Davenport e Henry Laughlin (1880-1943).

    O programa eugênico, ao transformar a sociedade em um grande laboratório, teve o seu ponto máximo durante a Alemanha Nazista de Adolf Hitler (1889-1945). Ponto máximo, mas também ponto de inflexão tanto política quanto científica, marcando o momento de declínio do movimento e sua caracterização enquanto um programa racista desvinculado de qualquer validade científica.

    Contudo, a eugenia não desapareceu como seria de se imaginar, ela se transformou; mas, ao se transformar conservou um núcleo teórico que se manteve inalterado e tem servido de orientação para novas roupagens eugênicas. Em outras palavras, manteve-se a ideia de que com a adequada informação genética poder-se-ia intervir no curso da reprodução humana, no sentido de se estabelecer, através de conhecimento científico, o seu devido controle e direcionamento.

    Parece-nos que temos, neste momento, movimentos em curso que lembrariam modelos ou programas eugênicos com a recolocação de antigas práticas articuladas em novos discursos e novos espaços. Por exemplo, contratos firmados entre empresas de biotecnologia e Estados com a finalidade de estudo e desenvolvimento de produtos baseados em informação genética da população, como o caso da empresa Decode Genetics com a Islândia e a empresa Autogen com Tonga e com a Tasmânia, que recolocam antigas tentativas de se construir um programa eugênico baseado na regulamentação estatal, agora também com interesses mercadológicos (Howe, 2001; Goodman, Heath & Lindee, 2003). Em uma outra perspectiva, poder-se-ia indicar uma nova forma de eugenia, que poderíamos classificar de razões eugênicas baseadas em decisões pessoais com relação à qualidade do material genético e o compromisso com as futuras gerações, gestores de novos referenciais para se pensar noções como identidade, pessoa e corporeidade (Rabinow, 1999; Pichot, 1995; Sfez, 1995).

    Capítulo I

    PROGRESSO, MUDANÇA E EVOLUÇÃO

    Na passagem do século XVIII para o XIX, estava em curso o estabelecimento de um contexto em que as ideias de um mundo ordenado de acordo com regras ou desígnios divinos sofriam sérias críticas, provenientes dos mais diversos setores. No universo político, a Revolução Francesa de 1789, colocando um fim à concepção dos direitos divinos dos Reis (Huberman, 1986), proporcionaram o desenvolvimento de posições teóricas que buscavam retratar a sociedade ou as condições sócio-econômicas, em função de um processo de desenvolvimento histórico; não mais harmonioso ou ordenado, mas sim revolucionário. Como diz Francisco Weffort na apresentação de Os clássicos da política (1989,. p. 9), qualquer que seja a escola de pensamento de que se trate, sua influência maior é a Europa das revoluções, dos dois Napoleões, dos nacionalismos e das guerras civis entre os Estados.

    Em outro contexto, no universo das investigações sobre a vida, ou melhor, sobre os diversos seres existentes no planeta, uma série de descobertas fósseis começavam a abalar as estruturas de um pensamento rígido e hierarquizado tão ao gosto da teologia natural dos séculos anteriores, o que proporcionou a introdução da ideia de transformação ou mudança ao longo do tempo, criando as condições para a formulação de teorias evolucionistas. (Mayr, 1998)

    A compreensão desse processo de mudança ou transformação marcou os trabalhos de cientistas naturalistas ao longo dos séculos XVIII, XIX e início do XX. Saber se a mudança seria direcionada ou aleatória e quais as forças em ação formaram um ambiente de debate pautado pela formulação de várias teorias que procuraram oferecer uma explicação satisfatória para os mecanismos da evolução e da hereditariedade. (El-Hani & Videira, 2000; Bowler, 1989).

    As ideias de um mundo inserido em um processo de mudança ou transformação, ao contribuírem para a formação de um modo evolucionista de conceber a vida no planeta, confrontaram-se com a concepção de um mundo estático e criado segundo os desígnios de um Ser Superior. O que significou, em um primeiro momento, a superação de um importante debate entre fixistas e criacionistas de um lado, e evolucionistas ou transformacionistas de outro. (Mayr, 1998; Farral, 1975)

    As primeiras ideias formuladas sobre a existência de um processo de mudança ou transformação podem ser encontradas, segundo Ernst Mayr (1998), nas obras de Anaxímenes (555 a.C.), Xenófanes (500 a.C.) e Parmênides (475 a.C.); contudo, aceitava-se, como princípio explicatório, de modo geral a concepção de que houvesse uma espécie de geração espontânea, a partir do limo ou da terra úmida (Mayr, 1998, p. 342). Essas primeiras explicações filosóficas consistiam em tentativas de separar explicações sobrenaturais de explicações humanas e racionais. Nesse sentido, não se desenvolveu entre os gregos algo que possa ser descrito como um pensamento evolucionista, pelo menos nos moldes do evolucionismo desenvolvido no século XIX. Para Mayr, a razão de não se ter, entre as filosofias clássicas, o desenvolvimento de um pensamento evolucionista consistente com o mundo biológico, pode estar tanto na falta de um conceito de tempo histórico sequencial, visto que a ideia comum era a de que o Cosmos obedeceria a um processo de constância cíclica, retornando sempre ao princípio, quanto na força exercida historicamente pelo pensamento essencialista platônico. Mayr, citando Toulmin e Goodfield, procura esclarecer essa noção da seguinte forma:

    Uma vez aceito o axioma de que todas as mudanças temporais, observadas pelos sentidos, eram meramente permutas e combinações de ‘princípios eternos’, a sequência histórica dos eventos (que constituíam uma parte do ‘fluxo’) [a variação individual sendo outra parte] perdeu todo sentido fundamental. Seu único interesse residia na medida em que pudesse oferecer pistas para a natureza das realidades duradouras... os filósofos se preocupavam muito mais com assuntos relativos ao princípio geral –o plano geométrico do firmamento, as formas matemáticas associadas aos diferentes elementos materiais... Tornavam-se cada vez mais obsessivos com a ideia de uma ordem universal imutável, ou o ‘cosmos’: o eterno e infinito esquema da Natureza – a sociedade inclusive – cujos princípios básicos eles tinham a particular incumbência de descobrir. (Mayr, 1998, p. 344)

    Ao longo da Idade Média, sob a forte influência de uma visão de mundo cristão, não parece ter havido algo que pudesse contribuir para a formação de um pensamento evolucionista. Na realidade, as posições desenvolvidas pelos pensadores durante o predomínio do pensamento teológico católico dificultaram e até inviabilizaram o surgimento de uma forma de pensar em termos de evolução. As razões para compreender este fenômeno podem ser encontradas de modo particular na defesa cristã de um ato inicial de criação e na ideia de que, no momento primevo, o Criador Criou as coisas e os organismos como eles são; o que estabelecia os pressupostos básicos tanto do fixismo quanto do criacionismo. Noções que inviabilizavam qualquer possibilidade de desenvolvimento das espécies em termos evolucionistas. (Mayr, 1998)

    O pressuposto de que os seres vivos sempre foram como são, ou melhor, de que são espécies bem determinadas, sem nenhum tipo de mudança ao longo do tempo, sendo consequentemente fixas, conciliava-se muito bem com uma visão mecanicista e ordenada do universo. Somente em um universo regido por leis de validade universal é que se poderia perceber a manifestação do Criador. Desta forma:

    Para os teólogos naturais do final do século XVIII e começo do século XIX, a ordem e a diversidade vistas na natureza era, acima de tudo, uma prova da sabedoria e benevolência do Criador (El-Hani & Meyer, 2005, p. 17).

    Tal forma de pensamento levou ao desenvolvimento de uma postura intelectual que buscava encontrar na natureza os desígnios de Deus. O estudo da natureza revelaria a ordem natural dos fenômenos, pois estes obedeceriam a um plano Superior, isto é, um desígnio Divino. Na expressão de Richard Dawkins (2001, p. 21), quase todas as pessoas ao longo da história, ao menos até a segunda metade do século XIX, acreditaram firmemente (...) na teoria do Designer Consciente. Haveria, portanto, segundo a teoria do designer consciente, uma espécie de intencionalidade na natureza, e esta intencionalidade, perceptível na fina adaptação e nas estruturas dos órgãos naturais, constitui prova definitiva da existência de um ato de criação, pois não poderia haver intencionalidade sem que houvesse quem intencione; e por onde quer que olhemos, dizia-se de modo geral, enxergamos intencionalidade na natureza (Dawkins, 2001).

    O trabalho do Rev. William Paley (1743-1805) é um bom exemplo quando se quer exemplificar o raciocínio presente na defesa da existência de uma intencionalidade consciente; sua obra Teologia natural ou evidências da existência e atributos da divindade coletados através da natureza (1802), revela já no título a defesa da ideia de que o estudo da natureza e da harmonia e adaptação de órgãos e estruturas constituem prova definitiva da existência do Criador, isto é, de Deus. Nas palavras de G. Hardin:

    O argumento principal já está indicado no título: que a adaptação de estruturas e órgãos naturais constitui prova da existência de Deus. Para onde quer que olhemos, diz Paley, enxergamos a ‘intenção na natureza’: na estrutura das flores, concebida de forma maravilhosamente projetadas para tal fim, no arranjo dos músculos e ossos no homem, possibilitando o movimento, na estrutura dos pulmões para garantir os benefícios do ar e acima de tudo, na criação do olho –nesse caso, é claro, trata-se de uma intenção consciente. ‘Não pode existir intenção sem que se tenha quem intencione’; logo, Deus existe. O exame desse órgão estupendo, o olho, disse Paley, é cura certa para o ateísmo. (Hardin. 1969, p. 52)

    A teologia natural, com sua ênfase na existência de uma intenção consciente subjacente aos fenômenos naturais, dificultava sobremaneira o desenvolvimento do pensamento evolucionista; contudo, como indivíduos dedicados à prática de coletas e registros de dados dos organismos e da descrição de sua perfeita adaptação na natureza, os teólogos naturais contribuíram para a formação de uma série de pensadores preocupados com o estudo dos fenômenos naturais. A obra de William Paley, por exemplo, contribuiu para a formação de importantes naturalistas, Charles Darwin certamente foi um deles. Como diz G. Hardin:

    Todos no século dezenove, na Inglaterra, conheciam os trabalhos de Paley. Darwin certa vez escreveu: ‘Não creio ter admirado tanto um livro como a Teologia natural de Paley. De início, sabia-o quase de cor’. Uma das ideias que Darwin tirou da obra é a que podemos chamar de princípio de Paley: as estruturas e funções de um organismo devem ser explicadas em termos de benefício ao próprio organismo – e não às necessidades de outra espécie, sem excluir o homem. (Hardin. 1969, p. 52-53)

    A crença na existência de um mundo criado em seus mínimos detalhes por desígnio de um Criador inteligente, associada à ideia de que este mundo seria estático, imutável e de constituição limitada, isto é, de uma visão de mundo fixista, constituía-se no principal empecilho para o desenvolvimento do pensamento evolucionista. Contudo, a partir do século XVIII, o pensamento fixista começou a ser questionado por um número crescente de naturalistas. A forma de ver dos fixistas cada vez mais não se sustentava frente aos inúmeros problemas provenientes das descobertas de fósseis, que sugeria a hipótese de que algumas espécies desapareceram durante a história de vida na terra, e por questões oriundas da anatomia comparada e da biologia do desenvolvimento, que, de forma geral, contribuíram para colocar em xeque os pressupostos fixistas. (Bowler, 1989)

    Ao comparar estruturas anatômicas, aparentemente tão diferentes, quando eram olhadas com mais atenção, revelavam-se semelhanças surpreendentes, por exemplo:

    Os ossos que formam as patas dos animais terrestres, as nadadeiras de mamíferos aquáticos e as asas de morcegos são essencialmente os mesmos. (El-Hani & Videira, 2000, p. 153-154)

    Ainda, de acordo com El-Hani e Videira (2000, p. 154), por que será que um Criador reaproveitaria estruturas pré-existentes? Se esse for o caso, isso não revelaria uma limitação para a criação? Considerando os órgãos vestigiais, aparentemente desprovidos de função específica num organismo, como, por exemplo, apêndices que são encontrados em algumas espécies de cobras, que, como é sabido não precisam e não possuem pernas para se locomoverem, qual seria a razão da existência desses pequenos ossos semelhantes aos da bacia e das pernas de animais que possuem patas? Tais casos não revelariam a existência de estruturas imperfeitas na natureza? (El-Hani & Videira, 2000)

    Seguindo El-Hani e Videria (2000), da paleontologia, podemos citar os casos dos fósseis a revelar que haveria um desenvolvimento histórico dos seres e que ao longo desta história alguns organismos simplesmente desapareceram. Se estivermos em um mundo estático e imutável, como explicar a existência de formas de vida antepassadas e não mais existentes? Por que haveria a necessidade de repetidos atos de criação, se há, segundo os fixistas e criacionistas, uma ordem perfeita na natureza? Por fim, os fixistas e criacionistas não conseguiam dar conta da diversidade de espécies existentes e de sua distribuição no planeta, o que hoje é denominado de biogeografia. As semelhanças e diferenças entre os animais podiam ser registradas levando-se em consideração barreiras e proximidades geográficas, desse modo, como explicar este arranjo? Teria o Criador sido tão caprichoso na distribuição das espécies pelo planeta?

    O que estava acontecendo com os naturalistas nos séculos XVIII e XIX refletia um movimento que envolvia, de certa forma, um amplo espectro das ciências e da sociedade. Por todos os lados se notava o espírito de um pensamento de mudança e transformação. O mundo estático, perfeito e ordenado começava a se deparar com a crescente onda do sentimento de mudança e transformação. A ideia de mudança não contaminava apenas as ciências físicas e naturais, também as condições sociais e políticas estavam se transformando, como movimentos religiosos, literários e revolucionários, que, na revolução francesa de 1789, promoveram o embate de duas concepções sócio-políticas que se antagonizavam, o direito divino dos reis e o despertar da ideia do Estado liberal de direito (Bemvenuti, 2015). E, assim, firmava-se, cada vez mais, a ideia de que o mundo tanto não correspondia às concepções estáticas dos criacionistas e fixistas, como também tinha uma história de desenvolvimento e mudança. Como diz Mayr:

    "Os cem anos, entre 1740 a 1840, foram cruciais para a história do evolucionismo, pois foi nesse período que o conceito de evolução irrompeu na mente dos pensadores mais avançados. Foi um período de mudanças, não apenas na geologia e história natural, mas também no pensamento político e social. A erosão, nas ciências naturais, da crença num mundo estável-contínuo era acompanhada, nas ciências políticas, e mesmo no mundo prático dos governos e da sociedade, por um questionamento da crença nas dinastias de direito divino e nas hierarquias feudais, com ênfase no status quo. Tudo isso era ameaçado pelo conceito de ‘progresso’, tema dominante, ao que parece nos escritos dos filósofos do Iluminismo. É óbvia a correlação

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