Consequências Epistemológicas da Eugenia na Gênese da Educação Especial no Brasil
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Sobre este e-book
Aborda-se a história da Eugenia, porque suas consequências ainda persistem, mediante a naturalização da ideia de superioridade humana sobre outros da mesma espécie, visão esta que impede a valorização das diferentes habilidades e potencialidades do ser humano por meio do pensamento de inferioridade e por um posicionamento capacitista dos dirigentes dessas sociedades. Demarcou-se o período histórico, anterior à primeira publicação importante do eugenista Francis Galton, justamente para mostrar que o termo Eugenia cunhado em 1883, representando os "bem-nascidos ou raça pura", encontrava-se em debate bem antes dessa data. Esse pensamento respaldou a naturalização da dualidade, entre humanos fracos e fortes, produzindo e sendo produzida historicamente pelas matrizes: subsistência/sobrevivência, sociedade ideal e normalidade/anormalidade.
A base epistemológica em que se embasa a análise dos dados teóricos e documentais, descritos historicamente, parte da teoria desenvolvida por Ludwik Fleck, chegando às consequências epistemológicas da história do conceito de Eugenia e sua influência na gênese da educação especial no Brasil.
No período estudado, aborda-se a tendência brasileira à linha da Escola Ativa e ao modelo médico/biológico e de testes psicológicos. Em contrapartida, foi implementada a Instituição Pestalozzi, com equívocos na interpretação do fio condutor, a educação por meio da vida social e a relação direta com os conhecimentos de mundo. Desmarca-se a adesão à educação funcional, sob uma interpretação eugênica, e ainda, o desconhecimento ou falta de afinidade com os preceitos de Vygotski, conterrâneo de Helena Antipoff (1929). A cultura eugênica falou mais alto no Brasil e interferiu no modo de interpretar as teorias e práticas na reorganização escolar brasileira.
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Consequências Epistemológicas da Eugenia na Gênese da Educação Especial no Brasil - Eloisa Barcellos de Lima
Consequências Epistemológicas
da Eugenia na Gênese da Educação
Especial no Brasil
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2022 da autora
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
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Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
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www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Eloisa Barcellos de Lima
Consequências Epistemológicas
da Eugenia na Gênese da Educação
Especial no Brasil
AGRADECIMENTOS
A vida proporcionou-me muitos momentos de luz e bem querer. E nesta trilha incessante em busca do conhecimento, encontrei pessoas muito importantes, que estiveram presentes ou muitas vezes apenas na lembrança.
Primeiramente agradeço a Professora Eleonora Cresto, minha amiga e orientadora nos temas de Eugenia e ao amigo e professor Héctor Palma, por ter acreditado no potencial deste livro, e com isso fortaleceu minha vontade de compartilhar com todos e todas que se interessam pela temática.
Ao meu filho, Eduardo, e minha nora, Nicole, pelo amor e orgulho que expressam ao falar de minha jornada profissional. Meus amores para sempre.
A minha filha, Thaiane, agradeço a parceria, o amor e amizade que dedica a mim. Minha melhor amiga, meu amor.
Aos meus familiares, meu carinho e gratidão pela amizade sincera que me apoia e me faz feliz. Em especial à minha amiga irmã, Lucelene Lima.
Às colegas e amigas de trabalho, pelo apoio e aprendizagens que fizemos juntas, unidas pela ética da profissão e o propósito de educar a todos/as.
Àqueles que colaboraram na leitura e discussão do conteúdo do livro durante a escrita, minha gratidão a: Helen, Luana, Lucas, Milena, Simone, Tarcísio, Daiele, Violeta e ao grupo do LEdi/UDESC, pela acolhida e possibilidade de discussão do tema no grupo de estudos da deficiência. Obrigada, Geisa Bock e Solange da Silva, pela oportunidade de fazer parte do Laboratório de Educação Inclusiva.
Sou grata ao professor Adriano Nuemberg, por apresentar-nos os Estudos sobre Deficiência e à professora Marivete Gesser, pela continuidade destes, no Ned/UFSC.
Meus sinceros agradecimentos a minha amiga e companheira, Simone Ferreira, por todos os dias de escrita, estudos e reflexões conjuntas.
A todos/as amigos/as, pela força e o carinho que demonstraram nestes longos anos de convivência.
PREFACIO
Las aspiraciones de sir Francis Galton, hacia fines del siglo XIX, de desarrollar una ciencia que tratara sobre todas las influencias que mejoran las cualidades innatas de una raza, y de implementar una selección artificial que las potenciara, se fueron concretando hasta constituir un clima de época en las primeras décadas del siglo XX, fundamentalmente en el periodo de entreguerras. Hacia la década del ’30 la mayoría de los países había implementado políticas eugenésicas aunque, claro está, con diverso grado de eficacia y de intervención en los cuerpos de las personas con el objetivo de controlar y dirigir la reproducción humana. Así, el movimiento eugenésico se desplegó en un extendido y complejo programa biopolítico en el cual estuvieron comprometidos importantes sectores de la comunidad científica, política y cultural internacional, cuyo objetivo era el mejoramiento/progreso de la raza, la especie o la población a través de una selección artificial que promoviera la reproducción de determinados individuos o grupos humanos considerados mejores y redujera la reproducción de otros grupos o individuos considerados inferiores o indeseables. Las principales tecnologías biomédicas y sociales que proponían eran: el Certificado Médico Prenupcial, el control diferencial de la natalidad, la esterilización forzada, el aborto eugenésico, los controles a la inmigración indeseable, los tests de Cociente Intelectual (en algunos países como la Argentina, reemplazados por las fichas biotipológicas de la línea italiana de Nicola Pende).
Lejos de estar restringido al nazismo alemán o al fascismo italiano, el movimiento eugenésico se ramificó por todo el mundo; lejos de ser un burdo y oscuro producto pseudocientífico se apoyó en la comunidad científica casi en pleno; lejos también de asociarse exclusivamente a las derechas políticas, incluyó casi todo el abanico ideológico de la época; lejos, finalmente, de ser un proceso similar al que enfrentamos actualmente a partir de nuevas tecnologías reproductivas que de alguna manera seleccionan
o modifican embriones (por ejemplo a través del diagnóstico preimplantatorio y muy recientemente CRISPR-Cas9) la eugenesia se basó en las políticas públicas, implementadas autoritariamente y con una finalidad evolutiva, es decir modificar la composición promedio de la población. Por todo ello debe quedar claro que fue un fenómeno circunscripto a la primera mitad del siglo XX.
En las últimas décadas, vienen a sumarse a los estudios previos sobre la eugenesia en los EEUU y Europa una buena cantidad de trabajos sobre el movimiento eugenésico en América Latina (Brasil, Argentina, Colombia y Chile principalmente). Los estudios locales en un primer momento pasaron revista de las particularidades de cada país derivadas del contexto social, cultural, poblacional y económico y de las características específicas de la comunidad científica y cultural que recogió e introdujo estas ideas. Pero inmediatamente emergió un problema nuevo: el papel que tuvieron los eugenistas locales en el escenario internacional, en el establecimiento de redes interinstitucionales, federaciones internacionales, y su participación en las reuniones científicas que se sucedieron, sobre todo, durante la década del ’30, y que configuraron un cuadro de múltiples interacciones.
Sin embargo, aún queda para los historiadores de la medicina, y para los filósofos e historiadores de la ciencia, mucho trabajo por realizar. En este contexto el libro de Eloísa Barcellos que aquí se presenta adquiere una gran importancia porque analiza una de las tantas influencias de las ideas eugenistas, en este caso en Brasil y en el área de la discapacidad. En el marco general eugenésico analiza sus reflejos en la constitución misma de la Educación Especial en Brasil, de las representaciones sociales sobre la discapacidad y su permanencia en la actualidad.
Dos aspectos más deben destacarse del excelente trabajo de Barcellos. En primer lugar el exhaustivo análisis del corpus jurídico acerca del tema (las constituciones federales de Brasil de 1934, 1937 y 1946 y leyes educativas de la época) además de las obras de los principales impulsores de la eugenesia en Brasil y otras fuentes relevantes. En segundo lugar el uso, como marco teórico, de la obra del médico, biólogo y sociólogo Ludwig Fleck, un tanto olvidado injustamente y que con su historia sobre la sífilis publicada en 1935, intentó romper con un estilo de hacer historia de las ciencias como un simple depósito de anécdotas
al decir, muchos años después, de Th. Kuhn.
No dudo que su aporte constituirá un insumo de gran valor a futuros estudios comparados entre los diversos países latinoamericanos y a los aspectos institucionales y las ramificaciones que estableció el movimiento eugenésico.
Héctor A. Palma
Profesor titular de Filosofía de las Ciencias
(Universidad Nacional de San Martín, Argentina)
LISTA DE SIGLAS
Sumário
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1
UMA RETROSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA: GÊNESE DO PENSAMENTO EUGÊNICO
CAPÍTULO 2
O SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DA EUGENIA NA MODERNIDADE E CONTEMPORANEIDADE: ESBOÇOS HISTÓRICO-EVOLUTIVOS
A Eugenia de Galton: esboços histórico-evolutivos da teoria de hereditariedade e gênese na compreensão sociocognitiva
A genética e a nova Eugenia
As consequências epistemológicas da história do conceito de Eugenia
CAPÍTULO 3
O COLETIVO DE PENSAMENTO E A INSTITUIÇÃO DA EUGENIA COMO PROGRAMA SOCIAl
Coletivos de pensamento e reflexos da Eugenia nos Estados Unidos por Davenport e seus aliados
Coletivos de pensamento e gênese da Eugenia brasileira: concepções que atravessaram séculos
Teoria da hereditariedade galtoniana e o mendelismo: incomensuráveis do ponto de vista metodológico, mas ajustáveis
na Eugenia
CAPÍTULO 4
REFLEXOS DA EUGENIA NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA, POR RENATO KEHL E SEUS ALIADOS, NAS TRÊS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX
Gestão política e social da concepção eugênica, determinante para a origem da concepção da educação especial brasileira
I Congresso Brasileiro de Eugenia (1929): a educação como veículo de propagação e institucionalização da Eugenia
A discriminação social e educacional das pessoas com deficiência nos dados do Censo (1929): estatísticas sob critérios biológicos e médicos
A concepção eugênica respaldada com a biologia e o mendelismo: efeitos sobre a gênese da educação especial brasileira
Origem da concepção da educação especial: a supremacia dos conhecimentos médicos e biológicos em detrimento da educação
CAPÍTULO 5
PENSAMENTOS COLETIVOS DE ORDEM TEÓRICA E EUGÊNICA QUE SE CRUZAM: A ESCOLA NOVA DOS NORMAIS
Estilos de pensamento que se cruzam: o Manifesto dos Pioneiros da Educação
Estilos de pensamento que se cruzam: a administração pública da educação escolar dos normais
Estilos de pensamento que se cruzam: a educação funcional para normais
em escolas públicas
Pensamentos coletivos de ordem teórica e eugênica que se cruzam: a educação funcional dos anormais
Estilos de pensamento que se cruzam: a Eugenia nos laboratórios experimentais no Brasil
Os objetivos originais da Escala de Binet
Goddard identifica os débeis mentais: a inteligência como gene mendeliano
A Escala de Stanford-Binet, por Levis Terman: uma invenção de classificação coletiva
Os testes e a reorganização escolar no Brasil
Formações conceituais para a educação de pessoas com deficiência: primeiras iniciativas de educação especial brasileira
Conhecimento e teoria integrante no pensamento da Instituição Pestalozzi
CAPÍTULO 6
EDUCAÇÃO EMENDATIVA, A PRIMEIRA VERSÃO DA EDUCAÇÃO ESPECIAL: EUGENIA E INFLUÊNCIAS DESTA NO PENSAMENTO EDUCACIONAL BRASILEIRO
O lugar da educação especial na legislação brasileira até 1961
Resultados e discussões
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Este livro estuda a origem da Eugenia, considerando a trajetória do pensamento eugênico e seus reflexos nas representações educacionais da pessoa com deficiência. O objetivo principal visa analisar o surgimento da eugenia e o exercício desta na educação brasileira na primeira metade do século XX. Ao interligar o pensamento histórico da Eugenia e os primeiros atos legais para a educação nacional, vê-se indicativos da ideologia eugênica e o entrelaçamento com a institucionalização da educação especial no Brasil. Utiliza-se fonte documental para investigação histórica, desde as Constituições Federais de 1934, 1937 e 1946 até a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n.º 4.024/61.
Faz-se uma análise epistemológica quanto à gênese da Eugenia e sua influência na origem da educação para as pessoas com deficiência no Brasil, no período dos documentos citados anteriormente. Aborda-se a história da Eugenia, porque suas consequências ainda persistem, mediante a naturalização da ideia de superioridade humana sobre outros da mesma espécie, visão esta que impede a valorização das diferentes habilidades e potencialidades do ser humano por meio do pensamento de inferioridade e por um posicionamento dos dirigentes dessas sociedades.
Demarcou-se o período histórico, anterior à primeira publicação importante do eugenista Francis Galton¹, justamente para mostrar que o termo Eugenia cunhado em 1883, representando os bem-nascidos
, encontrava-se em debate em média há 23 anos. Neste tempo, nomeou-se um posicionamento ideológico que vinha sendo aderido e administrado por muitos dirigentes sociais, em diferentes tempos e espaços, ao longo da historicidade da vida humana. Com a emergência da era da ciência, essa ideologia ganhou credibilidade científica pela teoria de hereditariedade a qual se dedicou, alicerçada sob o ponto de vista filosófico da teoria inatista. Teoria esta que respaldou a naturalização da dualidade, entre humanos fracos e fortes, produzindo e sendo produzida historicamente pelas matrizes: subsistência/sobrevivência, sociedade ideal e normalidade/anormalidade.
Aprofundou-se os estudos quanto à Eugenia de Galton², com um esboço histórico-evolutivo da sua teoria da hereditariedade e gênese da compreensão sociocognitiva de sua obra. O pensamento Eugênico influenciou
diferentes nações em sua organização social, política, educacional e econômica. Entre as nações que aderiram a essa postura discriminatória, arrola-se neste livro: Estados Unidos da América, Inglaterra e Brasil. A linha de Galton seguiu por caminhos da ciência, buscando confirmação para seus pressupostos de gênio hereditário, que tinha como premissa a inteligência e genialidade como sendo transmitida por herança familiar, baseando-se em preceitos biológicos e estatísticos para analisar suas experiências com famílias inglesas.
Há uma linha de Galton que se aprecia claramente nos textos dos brasileiros Renato Kehl e Otávio Domingues no início do século XX, que prima pela interferência social e de Estado nas decisões sobre pessoas consideradas, na época, degeneradas. Os autores defenderam a restrição à procriação dos considerados degenerados, aconselhando e criando estratégias para minimizar ou impedir tais reproduções e ainda, demonstraram concordância com o incentivo às uniões de pessoas consideradas de boa estirpe, as quais gerariam boas proles e assim, garantiriam a higiene da raça brasileira para alcançar o ideal de branquitude da população.
Nas Atas do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia e no livro de Renato Kehl publicado em 1929, sob o título de Lições de Eugenia, vê-se a intencionalidade deste e de seus seguidores, em uma organização semelhante à de Galton, para instituir a educação higiênica e eugênica na nação brasileira. Essa influência atravessou um período importante para a educação brasileira, que compreendeu a primeira metade do século XX, especialmente as décadas entre 1930 a 1960. Nesse período houve a reorganização escolar e sua institucionalização em bases legais, como forma de legitimar os tratados internos sob uma legislação, antes inexistente.
Tais concepções de educação, atravessadas pela Eugenia, entraram em vigência posteriormente, em documentos como: a Constituição Federal de 1934, que oficializou a educação eugênica como prioritária; e, mais tarde, a Constituição Federal de 1937, em que foi demarcado o lugar das pessoas com deficiência, embora não esteja explícito, reconduz à continuidade da mesma ideologia na constituição de 1934, a qual mantém educação adequada às suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais
, o que será aprofundado no Capítulo 5 deste livro.
A seleção e classificação por níveis de inteligência estão intrinsecamente ligadas a esse modelo de educação, mantendo-se na Constituição Federal de 1946. Mesmo com o avanço nesta última, que institui a educação como direito fundamental para todos os cidadãos brasileiros, sendo dever do Estado e da família garantir uma vida digna, ainda assim, prossegue estabelecendo critérios de classificação de estudantes por testes de inteligência, determinando assim uma escola separatista, criando divisões por meio de testes de aptidão.
Após a análise das Constituições promulgadas até a metade do século, entende-se os efeitos das práticas teóricas da Educação Ativa
voltadas para o trabalho e a utilidade, que culminaram com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em 1961. Esta, em sua redação, criou um capítulo separado do corpo do ensino primário e secundário, colocando os artigos referentes ao trabalho/atendimento dos estudantes com deficiência em um espaço exclusivo dos excepcionais
. A referida lei veio a consolidar as ideias debatidas e implementadas durante 30 anos de discussões e lutas para a reforma educacional, no sentido de garantir o direito à educação popular. Nesses tempos, a educação especial foi vista primeiramente como desnecessária, pela crença anterior de inferioridade e inaptidão. Acrescido a isso, a visão capitalista e utilitarista que operou com descrédito no aproveitamento desses estudantes, quanto aos investimentos educativos, já que na visão eugênica de incapacidade inata por fatores biológicos, por má herança (prole degenerada, fora dos padrões eugênicos), tais estudantes não teriam aprendizagem e produtividade.
No segundo momento, ocorreu a criação do Pavilhão-Escola Bourneville, o primeiro espaço nomeado como escolar, criado para crianças consideradas doentes/deficientes mentais, tidas como anormais, em uma ala do Hospício Nacional de Alienados (HNA) e a seguir, com a criação de outras instituições semelhantes, elas passaram a ser encaradas como pessoas de educação e cuidados, em instituições de isolamento da sociedade comum, direcionando-as para coletivos conforme suas características. Surge nesse tempo os estudos de caracterologia e o ensino emendativo para as pessoas com deficiência.
Tais estudos e a psicologia experimental foram implantados no Brasil e passaram a fazer parte do sistema criado para classificar e selecionar os chamados normais e anormais
. Com isso, instituiu-se a classificação de estudantes aptos e não aptos ao ensino popular comum. Passou a ser reservado o direito à educação popular àqueles que se adaptaram ao sistema educacional comum. Para os degenerados
, termo utilizado na época para referir-se às pessoas deficientes, à institucionalização, por meio de internatos, ou escolas e classes especiais destinadas a cada especificação de deficiência classificada na época: visual, surdez e todos os outros como deficientes mentais, os quais eram diagnosticados por meio de testes de quociente de inteligência (Q.I.), considerados como inteligência inferior.
Os testes de inteligência marcaram época na educação brasileira, produzindo um pensamento de normalização da separação de estudantes em níveis de inteligência, e a formação de turmas e grupos de acordo com padrões estabelecidos por estes, os quais priorizavam apenas algumas habilidades acadêmicas e consideravam outras como inferiores e de menos valia, tendo assim classificado muitos como incapazes de cursar salas de aula comum. Esse pensamento baseado em diagnóstico e prognóstico médico, biológico e psicológico produziu consequências vistas e sentidas até a atualidade, alicerçado nas crenças da supremacia da ciência biológica, médica e psicológica sobre a ciência da educação, sendo que a última se colocou no lugar de submissão histórico-científica, como parte das ciências humanas. A consequência do poder do conhecimento científico atravessado pela herança ideológica da Eugenia produziu equívocos sociológicos, experimentados na contemporaneidade. Pode-se ver essas ocorrências e consequências nas Atas do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, nos livros de Renato Kehl.
A base epistemológica em que se embasa a análise dos dados teóricos e documentais, descritos historicamente, parte da teoria desenvolvida por Ludwik Fleck³. Considera-se seu conceito quanto aos estilos e coletivos de pensamento, sobre como se produz o estado de conhecimento de determinado fato científico, neste caso a Eugenia e a herança desta na legislação educacional brasileira de 1917 até 1961. Essa base explica o que se pretende decifrar sobre a produção do pensamento eugênico, que perpassa por mais de um século e que permanece vivo, em diferentes situações e documentos públicos, controladores de corpos, na nação brasileira.
Apresenta-se o conceito da epistemologia de Fleck, com o propósito de situar os princípios que seguiram na sua abordagem de caráter filosófico e sociológico quanto à ciência e sua história. Inicia-se por caracterizar estilo de pensamento⁴, que para o autor denota como é o estado de conhecimento de uma época. E quando há identificação e adesão por diferentes grupos, que se constituíram em diferentes tempos históricos, Fleck designou como pensamento coletivo⁵.
Considera-se como elementos fundamentais da epistemologia de Fleck, a possibilidade de compreender os estilos de pensamentos, e a produção do pensamento coletivo à disposição da comunidade circundante e diversos tempos e espaços históricos, que favorece o perceber orientado⁶. Ao longo do estudo, busca-se evidências factuais a respeito das preocupações dos povos quanto às características biológicas, potencialidades físicas e mentais das pessoas com deficiência. Sob a análise epistemológica baseada em Fleck⁷, pode-se dizer que se formou um coletivo, a partir das adesões de muitos cientistas e outros profissionais, cujos estilos de pensamento convergem com as ideias eugênicas de Galton⁸. Esse autor estava convicto quanto às suas descobertas na época, sob influência de sua concepção de homem e de mundo, a qual estava estruturada de tal modo, que o colocava como detentor da verdade, na qual as concepções são tidas como estruturas independentes impregnadas por um estilo
⁹ ¹⁰.
As crenças da época, relacionadas à superioridade de algumas pessoas, generalizaram o valor da inteligência herdada¹¹ em muitas gerações, cujos hábitos convergiram com tais crenças, tendo como resultado a organização externa e estatizada das experiências sociais. Esse pensamento influenciou muitas ações sociais discriminatórias no que se refere à ideia de inferioridade daqueles, cujas experiências ocorreram em ambientes afetados por desvantagens sociais, higiênicas e principalmente quando havia um histórico familiar de deficiência, chamado na época de degeneração, defeitos irremediáveis ou características indesejáveis.
O encaminhamento anteriormente comentado busca, segundo Fleck¹², a tendência da persistência dos sistemas de opinião e a harmonia das ilusões. Galton reunia uma credibilidade em sua comunidade científica, constatando-se
uma tendência de naturalização de determinados pensamentos, por meio daquilo que Fleck¹³ esclarece como uma concepção impregnada de um coletivo de pensamento, de tal forma que penetra na vida diária e nos usos linguísticos e, em consequência, converte-se em um ponto de vista. Quando isso ocorre em uma comunidade, uma contradição parece impensável e inimaginável, e passa a ser aderida por grupos sociais, cujo estilo de pensamento é convergente.
Torna-se relevante elucidar o estabelecimento do círculo esotérico e exotérico que se observou na historicidade da instituição da ideologia eugenista, apresentado por Fleck¹⁴. Esse autor denominou esotérico como sendo aquele conhecimento científico que se distingue dos não iniciados naquele campo, criando assim o primeiro núcleo de identidade do coletivo de pensamento ao entorno de Galton. Que posteriormente se estabeleceu como círculo Exotérico maior, formado por laicos, que participaram e participam desse saber científico.
Para Fleck, o saber exotérico se dá pela competência e confiança no primeiro núcleo de identidade do coletivo de pensamento. Nas palavras de Fleck¹⁵, é a confiança na competência dos especialistas esotéricos
¹⁶. Esse saber à margem detalha e generaliza com o fim de se fazer compreensível ao leigo e a opinião popular representa e lhe serve como fonte de legitimação, compreende-se como o saber que se forma ao entorno do primeiro núcleo de identidade do coletivo de pensamento que passa a ser considerado como base para ação de um grupo que nele confia a segue.
Por meio do processo de configuração e estabilização como entidade social, os coletivos de pensamento como a Eugenia, formam sistemas de ideias, que aspiram a clarificação do seu campo objetal, de significados intrínsecos àquela comunidade, então passa a ser construída a manutenção da estrutura coletiva. Como todo o experimento realizado pelos cientistas da época, conduz a uma confirmação e com isso o reforço do estilo de pensamento, os eugenistas lançaram mão da comunicação por meio de congressos, escritas publicadas, propagandas, concursos, entre outras formas de divulgação.
Os conhecidos pensadores da época utilizaram-se da linguagem para legitimar seus pensamentos nas primeiras décadas do século XX, no Brasil, com a pretensão de validar as ideias. Apostaram na circulação Inter Coletiva do pensamento eugênico, isto é, a circulação das ideias entre outros membros dos coletivos de pensamento científico e não científico, que convergiram quanto ao significado dos signos que estavam sendo difundidos como verossímil. Nesse caso, a informação recebida passa a ser assimilada e produz estímulos necessários para a transformação do estilo de pensamento. De acordo com Fleck¹⁷, toda circulação intercoletiva de ideias tem por consequência um deslocamento ou transformação dos valores dos pensamentos
¹⁸.
Assim, ao analisar as divulgações do pensamento eugênico nas primeiras décadas do século XX e a Legislação Brasileira, quanto às pessoas com deficiência, até a promulgação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional em 1961, faz-se usos dos estudos de Fleck sobre o funcionamento da linguagem sobre a relação entre enunciados linguísticos e seu significado. Para o autor, o sentido da linguagem é uma instituição que possibilita uma comunicabilidade, por meio de seu correto entendimento, como também a reprodutividade do conhecimento científico, mas também tem interpretações e reprodução de equívocos por seus mal-entendidos. Assim, é importante ponderar as publicações orais e escritas dos estilos de pensamento que podem e geralmente estão acompanhando os fatos com estilos técnico e literário do sistema de saber, legitimando-o em currículos esotéricos e exotéricos¹⁹.
Com uma breve abordagem sobre as civilizações mais antigas até um enfoque mais pontual na eugenia do final do século XIX e início do século XX, buscou-se ao longo do livro elucidar a Eugenia como projeto social ideológico e demonstrar as lacunas para que se tornasse ciência, principalmente no que se refere às pesquisas e aos resultados da hereditariedade humana no período de pesquisas de Galton, bem como o rumo que tomou a Eugenia nas primeiras décadas do século XX. Com isso, analisou-se as consequências epistemológicas da história do conceito de Eugenia.
O significado da história do conhecimento sobre Eugenia carrega em sua gênese dois equívocos importantes: um teórico e o outro de base metodológica científica, os quais estão aprofundados no Capítulo 1. Porém, adianta-se aqui que os equívocos não incorrem em erro global, assim como diz Fleck²⁰, levando a se perceber que este constituiu-se em processo de produção de dado pensamento. Fleck faz-nos refletir quanto à Eugenia, que não há nenhum erro total e nem tampouco verdades absolutas. Não se pode libertar do passado e de seus erros, muitas vezes, tendo-se que recorrer a ideias e situações vistas e experimentadas de eventos de sucesso ou redefinir os eventos de insucesso, para ir adiante.
O coletivo de pensamento eugênico teve erros sérios, produzindo discriminações e um modelo segregacionista, amparado pelo equívoco de inferioridade humana, porém produziu discussões que levaram a formulações de códigos de ética com vistas aos Direitos Humanos. Foi um estímulo para o estranhamento e a defesa do direito à vida e à qualidade desta no processo de desenvolvimento da genética humana como ciência. O contraponto entre a Eugenia negativa e a busca pela melhoria da qualidade de vida foi uma consequência positiva perante esses erros.
Outro ponto crucial a demonstrar, diz respeito à influência do pensamento eugênico perante o percurso da expressão e significado do conceito de deficiência no contexto dos atos