Perfídia: O Livro das Traições
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Perfídia - Mailson Ramos
— 1 —
Morto ainda que vivo
D. Amora acendeu uma vela em frente ao retrato do falecido marido, João Cândido, a quem devotava as mais atenciosas orações duas vezes ao dia: na primeira hora da manhã, assim que se levantava; e no horário do Ângelus, ao anoitecer, quando dividia a veneração pelo marido com a Virgem Maria. Ajoelhada diante daqueles ícones de santos e do olhar pacífico do marido, um homem exemplar, ela buscava forças para cuidar da família e não sucumbir nas horas amargas de tristeza e solidão.
Enquanto a mulher se dedicava ao ofício de cuidar da imagem do falecido, a sogra, D. Sofia, contava diariamente a história de que João Cândido estava vivo e havia fugido para se amasiar com outra. Ninguém dava muita atenção aos murmúrios e resmungos da senhora, pois ela tinha a idade avançada e costumava revelar fatos dos quais não se podia comprovar a veracidade. Quando ela desatava a falar, entre sussurros e rompantes, os parentes enfiavam um pedaço de pão ou qualquer coisa que o valha em sua boca desdentada.
— Isso é um desrespeito — dizia atirando a comida longe com um sopro — Fazem assim porque sou velha e sei sobre a verdade. Meu filho não está morto. Fugiu com outra mulher. Não quis mais viver com Amora... O que se pode fazer?
Os seus netos, Joana e Tomás, ouviam aquela história desde a tenra idade. Em desagravo à mãe, eles preferiam acreditar ser somente um delírio da avó octogenária. E de modo algum poderiam duvidar da mãe, visto que ela ia ao cemitério no primeiro domingo de cada mês colocar flores no túmulo do finado. Sempre que se lembrava do passamento do marido, ela desatava em lágrima e corria para o quarto, onde se trancava. Para não emocioná-la, os filhos evitavam perguntar sobre a morte do pai.
— Ela chora é de tristeza pelo chifre que levou — D. Sofia não perdoava e vaticinava: — Vai chegar o dia em que ele virá aqui para me ver e ver os filhos. Aí ela não vai poder chorar ou dizer que Cândido está morto!
D. Amora voltava da igreja, vestida de preto, com os olhos apontados para o chão e se derretia em lágrimas diante do oratório, onde mais observava a foto do marido do que orava pelos santos. As mãos sempre justapostas e pressionadas sobre a boca eram uma referência da sua imagem: parecia que ela estava sempre rezando e pedindo uma intercessão divina para aplacar o sofrimento de viúva abnegada.
— Pedi ao padre para rezar uma missa pela alma do falecido. Será no próximo domingo!
— De novo? Tu vais mandar rezar outra missa pela alma de quem está vivo? — indagou D. Sofia.
— Há quinze anos o seu filho morreu e a senhora nunca se conforma. Fica aí inventando histórias para me espezinhar!
— Agora que os teus filhos não estão em casa, tu poderias dizer para mim... Por que esconde a verdade? Meu filho é um mequetrefe! Não pense que apoiei aquilo que ele fez! Não! Mas é hora de dizer a verdade antes que ele apareça um dia nessa porta com a cara mais sínica do mundo, te pedindo perdão e tentando capturar o amor dos filhos.
— A senhora não desiste mesmo, não é? É muito delírio! João Cândido foi para um lugar onde não tem volta! Não posso contar para os meus filhos aquilo que não aconteceu. A verdade é uma só: ele morreu e acabou!
— Isso! Meta a cabeça em um buraco e jogue terra por cima para não enxergar a verdade. Conheço o meu filho. Há quinze anos ele não dá as caras. Mas no dia que ele aparecer, tu vais se arrepender de ter fechado os olhos.
D. Amora seguiu ignorando os avisos da sogra. Não se falou mais sobre aquele assunto. Enquanto a viúva tratava de cuidar dos santinhos do seu oratório, a velha resolveu fazer um suéter de tricô para a neta. Quando uma passava o pano sobre a madeira para recolher a poeira — beijando o porta-retratos com a foto do marido —, a outra fazia a linha correr entre varas com habilidade para construção de perfeitos nós. E olhavam para a televisão com o mesmo encanto, assistindo às novelas antigas que tanto amavam.
Aquela paz durou até uma tarde de primavera, quando a campainha apitou. D. Amora se levantou lentamente para atender, com os olhos vidrados na televisão. Abriu a porta e soltou um grito. A sogra olhou assustada para a nora e, levantando-se para ver quem havia chegado, também não pode conter o espanto. Era João Cândido, mais vivo e corado do que nunca. Estava com os cabelos grisalhos, mas mantinha o olhar cafajeste de sempre. Antes que ele falasse algo, D. Amora correu e se trancou no quarto.
— Não vai me convidar para entrar? Mãe!
A velhinha não respondeu. Fez apenas um sinal para que filho avançasse. Ele carregava uma mala e não esperou um segundo convite para se sentar. Sentou-se olhando para a mãe que o encarava como um fantasma.
— Meu filho... Por onde tu andaste?
— Ora mamãe! Eu fugi com Diana! Não posso esconder isso de ninguém.
— E onde ela está?
— Nós fomos morar em Carpina. Lá ela conheceu um rapaz no trabalho e acabou fugindo com ele — disse e se aproximou da mãe com os olhos cheios de lágrimas — Aquela bandida me traiu com um moleque, mamãe!
D. Sofia se levantou do sofá, atirando o filho ao chão.
— Eu acho é pouco! Homem desavergonhado merece é muito mais! Pobre Amora ficou aqui se consumindo de dor e dizendo que tu