Engajamento e reflexão transversal em economia solidária
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Engajamento e reflexão transversal em economia solidária - André Ricardo de Souza
Engajamento e reflexão transversal em economia solidária
Logotipo da Universidade Federal de São CarlosEdUFSCar – Editora da Universidade Federal de São Carlos
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
Editora da Universidade Federal de São Carlos
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Facebook: /editora.edufscar
Instagram: @edufscar
Engajamento e reflexão transversal em economia solidária
André Ricardo de Souza
Isabela Aparecida de Oliveira Lussi
Maria Zanin
(Organizadores)
Logotipo da Editora da Universidade Federal de São Carlos© 2020, dos autores
Capa
Thiago Borges
Imagem da capa
Baskin Creative Studios
Projeto gráfico
Vitor Massola Gonzales Lopes
Preparação e revisão de texto
Marcelo Dias Saes Peres
Rebeca Mega
Editoração eletrônica
Alyson Tonioli Massoli
Editoração eletrônica (eBook)
Alyson Tonioli Massoli
Coordenadoria de administração, finanças e contratos
Fernanda do Nascimento
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar
E57e Engajamento e reflexão transversal em economia solidária / Organizadores: André Ricardo de Souza, Isabela Aparecida de Oliveira Lussi, Maria Zanin. -- Documento eletrônico. -- São Carlos: EdUFSCar, 2022.
ePub: 1.4 MB.
ISBN: 978-85-7600-526-1
1. Economia social. 2. Trabalho. 3. Autogestão. 4. Cooperativismo. I. Título.
CDD – 334.7 (20a)
CDU – 334
Bibliotecário responsável: Ronildo Santos Prado – CRB/8 7325
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema de banco de dados sem permissão escrita do titular do direito autoral.
Sumário
Apresentação
Parte 1
O desafio da INTERSECCIONALIDADE
Gênero, raça e classe: as controvérsias sobre o paradigma interseccional
Helena Hirata
Solidariedade, gênero e agroecologia: Aprendizados do Vale do Ribeira-SP
Isabelle Hillenkamp
A interseção das desigualdades de gênero e raça no campo da economia solidária
Eliene Gomes dos Anjos
Parte 2
Movimentos, fóruns e militantes
Desafios do movimento de economia solidária e ecossocialismo: Paul Singer, leitor de Rosa Luxemburgo
Isabel Loureiro
Os dois maiores militantes da economia solidária no Brasil
André Ricardo de Souza
O Fórum Brasileiro de Economia Solidária e os dilemas para seu futuro
Ademar de Andrade Bertucci, Jonas de Oliveira Bertucci e Haroldo Mendonça
Economia solidária como espaço de resistência: o caso do Fopes
Adolfo Saturu Homma
Parte 3
Moeda social e finanças solidárias
A experiência da moeda social La turuta na Catalunha: análise de seu circuito e de seus impactos no desenvolvimento local
Henrique Pavan Beiro de Souza
Caixa coletivo e rede de trocas como estratégia de finanças solidárias para coletivos culturais: o caso do Coletivo Fuligem de Ribeirão Preto-SP
Nathália Fernandes da Silva, Maria Zanin e Ioshiaqui Shimbo
Parte 4
Balanço de políticas públicas e contraponto ao neoliberalismo
A pesquisa em economia solidária e suas exigências próprias: diálogo Sul-Norte
Jean-Louis Laville, Genauto Carvalho de França Filho e Ana Dubeux
Promover a economia solidária popular: uma resposta ao neoliberalismo
José Luis Coraggio
Crise de paradigma? A política nacional de economia solidária no PPA-2016/2019
Sandro Pereira Silva
Quem controla quem? Discutindo o termo controle social
e o papel dos conselhos gestores de políticas públicas
André Misiuk Farah e Maria Lúcia Teixeira Machado
Parte 5
Diferentes olhares e saberes
As incubadoras, as narrativas e a análise cognitiva: um novo olhar para a articulação de saberes e a organização do conhecimento na economia solidária
Maristela Miranda Vieira de Oliveira e Maria Inês Corrêa Marques
Os saberes matemáticos nas relações de trabalho no cotidiano de empreendimentos econômicos solidários
Geisa Zilli Shinkawa da Silva e Renata Cristina Geromel Meneghetti
Processo de consolidação de EES do campo da saúde mental: panorama nacional
Lisabelle Manente Mazaro, Natalia Torres de Almeida Menezes e Isabela Aparecida de Oliveira Lussi
Sobre os(as) autores(as)
Apresentação
Este livro decorre do II Congresso de Pesquisadores de Economia Solidária (Conpes), evento ocorrido entre 26 e 28 de setembro de 2018 na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e que foi organizado pela Associação Brasileira de Pesquisadores de Economia Solidária (ABPES). O II Conpes foi apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), pelo NuMI-EcoSol (Núcleo Multidisciplinar Integrado de Estudos, Formação e Intervenção em Economia Solidária), pelas pró-reitorias de Extensão (Proex) e de Pós-Graduação (PROPG), bem como pelos programas de pós-graduação em Sociologia (PPGS), Terapia Ocupacional (PPGTO) e Ciência, Tecnologia e Sociedade (PPGCTS), todos da UFSCar.
O II Conpes contou com a participação de docentes dos referidos programas de pós-graduação da UFSCar e professores de instituições de ensino superior nas categorias de conferencistas, participantes de mesas-redondas, expositores e debatedores de grupos de trabalho. Participaram pesquisadores de diferentes universidades do Brasil, da Argentina e da França. Houve também a participação de técnicos de organizações não governamentais, órgãos de governos e ativistas de economia solidária. Esta coletânea reúne as principais contribuições apresentadas no congresso, distribuídas em cinco partes.
Na primeira parte do livro, O desafio da interseccionalidade
, há três textos. O primeiro deles, de Helena Hirata, discute algumas contribuições desde as teorias dessa temática até as relações de gênero e trabalho. Hirata afirma que, em convergência com as contribuições teóricas, o enfoque dos feminismos materialistas coloca em questão a proeminência da classe social sobre gênero e raça. A autora questiona ainda de que maneira tais teorias repercutem sobre as análises quanto ao lugar das mulheres no mundo do trabalho e que novas controvérsias elas suscitam no âmbito das ciências sociais. Já o segundo texto, de Isabelle Hillenkamp, apresenta uma abordagem complementar da relação entre gênero e outras economias
baseadas em relações de solidariedade, incluindo a economia feminista. Decorre de pesquisa feita em parceria com a entidade Sempreviva Organização Feminista (SOF) junto a uma rede de agricultoras agroecológicas da cidade de Barra do Turvo, região paulista do Vale do Ribeira. No texto, a agroecologia feminista é analisada como movimento nacional, observando a organização do trabalho produtivo e reprodutivo no referido município e apontando que a condição necessária para a consolidação de uma economia feminista, com base na solidariedade, é a formação de políticas específicas para as mulheres. Por fim, nessa parte, Eliene Gomes dos Anjos adota em seu trabalho a interseccionalidade como parâmetro analítico para compreender a complexidade das desigualdades, demonstrando a interação de diversas categorias que explicam a situação de vulnerabilidade dos trabalhadores de empreendimentos econômicos solidários. Avalia as desigualdades de gênero e raça no campo da economia solidária de modo a identificar as situações de desvantagens das mulheres, principalmente as negras, tomando o cenário da Região Metropolitana de Salvador e os dados do Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária (SIES).
A segunda parte desta coletânea abrange homenagens a dois célebres artífices da economia solidária no Brasil, bem como reflete sua perspectiva de transformação social, contemplando devidamente a dimensão ambiental e fazendo um balanço de duas instâncias de organização do movimento de economia solidária. O texto de Isabel Loureiro discute o modo como o falecido professor de economia da Universidade de São Paulo, Paul Singer – que foi homenageado no II Conpes –, recorre a ideias da revolucionária marxista Rosa Luxemburgo em relação à economia solidária. Em tal análise, Isabel Loureiro faz uma aproximação entre Luxemburgo e a questão ecológica. Singer é também abordado no texto de André Ricardo de Souza como um dos principais intelectuais brasileiros, além de notório educador com trajetória de vida marcada por intensa participação em relevantes processos de construção institucional e gestão pública. A homenagem se estende a Ademar de Andrade Bertucci, que faleceu dezessete dias depois de participar com destaque do II Conpes e exatos meses após Singer. Tendo sido assessor de importantes organizações não governamentais, sobretudo da Cáritas Brasileira, ele é apontado pelo autor como o maior militante da história da economia solidária no País, ao lado de Paul Singer, e Bertucci é também autor póstumo do sexto capítulo, cuja versão preliminar foi apresentada por ele próprio na UFSCar em 2018 e complementada posteriormente por Haroldo Mendonça e por seu filho, Jonas Bertucci. No texto, é analisada a trajetória e os desafios enfrentados pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), que surgiu em 2003 – no contexto inicial do governo de Luiz Inácio Lula da Silva – e foi fundamental para a instauração da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) no Ministério do Trabalho. Por fim, nessa parte do livro temos o texto de Adolfo Saturu Homma sobre algo semelhante, porém no contexto do estado de São Paulo: o Fórum Paulista de Economia Solidária (Fopes), que começou a ser formado também em 2003 por ocasião da plenária nacional que gerou o FBES. Contando com doze subdivisões regionais sediadas em grandes cidades, essa articulação paulista é analisada pelo autor, bem como algumas questões relacionadas a cooperativismo e desenvolvimento econômico.
A organização das finanças de modo alternativo ao padrão da economia capitalista é o tema que perpassa os dois trabalhos da terceira parte do livro, sendo o primeiro deles a respeito de uma experiência internacional. O capítulo de Henrique Pavan Beiro de Souza trata de uma moeda social que circula na cidade de Vilanova i la Geltrú, situada na região espanhola da Catalunha. Mais que o fluxo monetário, leva-se em conta a rede de relações sociais subjacentes às interações econômicas envolvidas no uso de tal moeda como algo que promove integração comunitária. Já o texto seguinte, de Nathália da Silva, Maria Zanin e Ioshiaqui Shimbo, aborda o Coletivo Fuligem, da cidade paulista de Ribeirão Preto, que presta serviços culturais e de comunicação e faz uso de duas ferramentas de finanças solidárias: o caixa coletivo e a rede de trocas solidárias. As informações daquela são extraídas da movimentação monetária do coletivo, enquanto as desta advêm das parcerias de serviços e produtos efetuados com trocas não monetárias.
Na quarta parte do livro há análises de políticas públicas e da contraposição da economia solidária ao neoliberalismo, sendo aberta pelo texto elaborado por Jean-Louis Laville, Genauto França Filho e Ana Dubeux. Os autores discutem a construção da economia solidária como objeto de estudo em dois contextos distintos, França e Brasil, abordando importantes conflitos e questões, bem como salientando os vínculos dela com referenciais conceituais em torno das chamadas epistemologias do Sul. No caso francês, destacam a reabilitação histórica do associativismo democrático e solidário, ao passo que em relação ao Brasil eles ressaltam as lutas de resistência próprias da organização popular, sobretudo no campesinato nordestino. O texto seguinte decorre da conferência inicial do II Conpes, proferida pelo professor argentino de economia José Luís Coraggio. Considerando aspectos de alguns governos latino-americanos existentes no início do século XXI, ele discute a necessidade de pensar um programa político da economia popular como forma de enfrentamento do neoliberalismo. Aspectos de viabilidade e alcance de tal proposta são apresentados, bem como os eixos possíveis da ação política concernente. De volta ao contexto brasileiro, no texto de Sandro Pereira Silva é analisado o ciclo orçamentário da política federal de economia solidária e sua execução pela Senaes. Considerando devidamente os diferentes Planos Plurianuais (PPA) do governo federal, desde 2014, o autor enfoca analiticamente o PPA 2016-2019, já no contexto governamental pós-Dilma Rousseff. Encerrando essa parte do livro, o texto de André Misiuk Farah e Maria Lúcia Teixeira Machado discute o significado de controle social exercido pela sociedade civil organizada no âmbito do Estado democrático de direito. Para isso, os autores tomam como foco os conselhos gestores.
A parte final apresenta três textos que contemplam diferentes olhares e saberes a respeito da economia solidária. No capítulo escrito por Maristela Miranda Vieira de Carvalho e Maria Inês Corrêa Marques, as incubadoras universitárias de cooperativas populares são avaliadas quanto à organização do conhecimento. Elas problematizam os processos educativos envolvidos apontando a importância da análise de narrativas como instrumento de produção cognitiva dos grupos acolhidos no processo de incubação. O texto seguinte, de Geisa Zilli Shinkawa da Silva e Renata Cristina Geromel Meneghetti, também aborda saberes relevantes aos integrantes de empreendimentos econômicos solidários (EES). Nesse caso, trata-se de conhecimentos gerais, sobretudo matemáticos, aprendidos em escola e sua utilização por membros de EES e de organizações de apoio, especificamente o NuMI-EcoSol-UFSCar. Por fim, no último texto, escrito por Lisabelle Manente Mazaro, Natalia Torres de Almeida Menezes e Isabela Aparecida de Oliveira Lussi, é abordado o processo de consolidação dos EES no campo da saúde mental em todo o território nacional e que foram cadastrados no SIES. As autoras fazem uma abordagem mais detida de 17 EES, buscando apurar seus desafios e potencialidades.
Enfim, como se pode observar, o livro trata de um considerável conjunto de trabalhos analíticos sobre facetas relevantes da economia solidária em suas intersecções com questões políticas e socioeconômicas maiores.
André Ricardo de Souza
Isabela Aparecida de Oliveira Lussi
Maria Zanin
(Organizadores)
São Carlos, inverno de 2020
Parte 1
O desafio da interseccionalidade
Gênero, raça e classe
As controvérsias sobre o paradigma interseccional
Helena Hirata
Gênero, trabalho e interseccionaldidade
Para apreendermos as contribuições das teorias da interseccionalidade à análise das relações entre gênero e trabalho, partimos de uma definição simples dessa categoria analítica, que se tornou também uma problemática de pesquisa. Entendemos interseccionalidade (ou consubstancialidade) na forma de interdependência das relações sociais de gênero, de raça e de classe como relações de poder. Essa definição de interseccionalidade como imbricação de relações sociais é próxima da definição de interseccionalidade de Patricia Hill Collins[1] ou da definição de consubstancialidade de Danièle Kergoat.[2]
As teorias da interseccionalidade (ou consubstancialidade) recusam a hierarquização em termos de preeminência de uma das dimensões sobre as outras, por exemplo, preeminência da classe sobre o gênero.
A não hierarquização dos diferentes aspectos da opressão se situa em oposição às categorias de contradição principal
e secundária
, infraestrutura
e superestrutura
do marxismo ortodoxo. A afirmação dessa não hierarquização e a afirmação da imbricação das diferentes relações de poder torna possível a utilização da interseccionalidade
ou de consubstancialidade
como sinônimos.
Convergindo com essas teorias da interseccionalidade, os enfoques dos feminismos materialistas colocam em questão a preeminência da classe social sobre o gênero ou a raça, pois também recusam a hierarquização que, nos enfoques marxistas tradicionais, colocam a classe social como determinação em última instância. A especificidade dessa corrente em relação às outras teorias feministas (diferencialistas, culturalistas etc.) é que para ela o trabalho é central em sua materialidade e como prática social. A divisão sexual do trabalho profissional e doméstico, subjacente à divisão sexual do poder e do saber, é também um conceito central para o feminismo materialista. Enfim, para Danièle Kergoat, o feminismo materialista postula a indissociabilidade, na análise teórica e na prática social, do trabalho e da exploração, da dominação e da emancipação.
As origens do paradigma interseccional: o black feminism
Patricia Hill Collins, Audre Lorde, Angela Davis, bell hooks[3] – todas teóricas e militantes negras representantes do black feminism –, bem como o movimento Combahee River Collective, afirmam, desde 1981-1982, a natureza interseccional da opressão das mulheres negras
,[4] mas é uma jurista negra, Kimberlé Crenshaw,[5] teórica da interseccionalidade, que utilizou esse conceito a partir do seu objetivo de melhor formular os termos da ação jurídica para defender as mulheres negras contra a discriminação de raça e de sexo.
O caso da General Motors, apresentado por Kimberlé Crenshaw, é um exemplo do interesse de uma perspectiva interseccional. As discriminações de raça e de sexo não eram reconhecidas pela empresa, que dizia recrutar mulheres e negros. O problema é que os negros recrutados pela GM não eram mulheres e as mulheres recrutadas não eram negras.[6] A GM dissociava a discriminação de gênero e de raça, discriminação que só se tornava visível pela perspectiva interseccional. A teoria de Crenshaw demonstra a necessidade política do enfoque interseccional e o interesse jurídico em articular sexo e raça.
A partir da afirmação da interdependência das relações de poder de raça, sexo e classe, o black feminism criticou o feminismo branco, originário das classes médias e heteronormativo. É a partir dessa herança do black feminism que a problemática da interseccionalidade foi desenvolvida nos países anglo-saxões, desde o início dos anos 1990, por pesquisadoras britânicas, americanas, canadenses, alemãs e, a partir de 2005, por pesquisadoras/es francesas/es. Kimberlé Crenshaw se interessa sobretudo pelas intersecções entre raça e gênero, trabalhando de maneira periférica ou parcial sobre a dimensão de classe.
Crítica à categoria de interseccionalidade
Tal crítica foi feita explicitamente por Danièle Kergoat no segundo congresso da Association Française de Sociologie (AFS) em Bordeaux, em 8 de setembro de 2006 (sob forma de artigo em 2009). Neste artigo ela critica a noção geométrica
de intersecção.
[…] pensar em termos de cartografia nos conduz a naturalizar as categorias analíticas […]. Dito de outra forma, a multiplicidade das categorias mascara as relações sociais […]. [As posições] não são fixas; por estarem inseridas em relações dinâmicas, estão em perpétua evolução e renegociação.[7]
Essa crítica é aprofundada em três pontos na introdução do livro Se battre, disent-elles:
1. A multiplicidade de pontos de entrada (casta, religião, região, etnia, nação etc., e não apenas raça, gênero, classe) conduz a um risco de fragmentação das práticas sociais;
2. Não é certo que todos esses pontos remetam a relações sociais e não seria talvez o caso de colocá-los todos no mesmo plano;
3. Os teóricos da interseccionalidade continuam a raciocinar em termos de categorias e não de relações sociais, privilegiando uma ou outra categoria, como, por exemplo, a nação, a classe, a religião, o sexo, a casta etc., sem historicizá-las, e, por vezes, não levam em consideração as dimensões materiais da dominação.[8]
Creio que a controvérsia central se refere ao que chamo interseccionalidade de geometria variável
. Para Danièle Kergoat, há três categorias transversais: gênero, raça e classe.[9]
Para Sirma Bilge,[10] os grandes eixos da diferenciação social são as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. Há portanto, aqui, uma controvérsia quanto às relações sociais fundamentais, transversais, necessárias (e não contingentes), que se imbricam. Crenshaw, que concede peso fundamental ao sexismo e ao racismo nas experiências das mulheres de cor
, diz que fatores […] como a classe ou a sexualidade contribuem de maneira tão decisiva quanto o sexo ou a raça para estruturar suas experiências
.[11]
Segundo os objetos de pesquisa ou os contextos, a geração, a etnicidade, ou a raça
ou ainda a localidade (segundo escalas diversas) podem constituir variáveis estruturantes centrais. Elas devem então ser articuladas de maneira pertinente. O caso da General Motors, citado acima, é um exemplo do interesse de uma perspectiva interseccional.
O tríptico classe/raça/gênero não cessou, assim, de se estender à análise de outras relações sociais cujo caráter estruturante, tanto do lado da formação das identidades quanto da cristalização de antagonismos coletivos, e é hoje amplamente posto em evidência, como mostraram os trabalhos centrados na relação de idade ou de sexualidade.[12] Um bom exemplo é a pesquisa que trata da interdependência entre gênero, classe, raça e nacionalidade, de Amélie le Renard, propondo conjugar interseccionalidade e pós-colonialidade a partir de suas pesquisas sobre gênero e trabalho na Arábia Saudita (Ryad e Dubai). Ela postula o gênero como hierarquia social não autônoma
contra o ponto de vista segundo o qual gênero poderia ser analisado de maneira isolada de outras hierarquias sociais. Segundo Amélie le Renard, o gênero (é) coformado com outras relações de poder
(classe, raça, estatuto nacional e região do mundo).[13]
Amélie le Renard também constata que os enfoques interseccionais parecem ser mobilizados unicamente quando se trata de estudar pessoas subalternizadas.
Para que serve a interseccionalidade?
Duas imagens que reduzem o feminismo ao gênero feminino
e mostram o interesse da crítica e desconstrução do gênero como única categoria explicativa e de ação podem ser apreendidas, uma no suplemento de moda do jornal Le Monde, de 8 de março de 2017 (datado de 03/03), onde se vê uma mulher branca, loira, burguesa, vestida por Valentino, Cristian Dior e Giorgio Armani, e outra na capa da revista Elle, de 8 de março de 2017 (datada de 03/03), cujo título é Féminisme, la nouvelle vogue
. Nessa capa aparece uma mulher branca, loira, jovem e descontraída, vestida com jeans Levi’s e camiseta Dior com as palavras We should all be feminists
. O título do dossiê Pop, leve, descomplexado… o novo impulso feminista
e o preço do exemplar, 2,20 €, cerca de 10 reais, mostram como essa imagem pode atingir camadas significativas de mulheres na França. A perspectiva interseccional, imbricando ao gênero a classe social e a raça, torna inoperante esta assimilação do feminismo a uma figura de mulher branca e burguesa.
O trabalho de cuidado e interseccionalidade
O paradigma interseccional é heurístico para analisar o trabalho de cuidado. Segundo Kergoat, o cuidado, no cruzamento das relações sociais de classe, de sexo e de raça, consiste num dos paradigmas possíveis da consubstancialidade.[14]
Nossa pesquisa comparativa Brasil-França-Japão[15] mostra que as cuidadoras são mulheres, de camadas sociais mais modestas, migrantes internas (Brasil) e externas (França). Elas são majoritariamente as mais pobres, as menos qualificadas, de classes subalternas, o que confirma as teses de Joan Tronto,[16] segundo a qual as cuidadoras são frequentemente mulheres pobres, migrantes, e de E. Nakano Glenn,[17] de que as care workers são, nos Estados Unidos, mulheres de camadas sociais subalternas, em particular negras e de origem hispânica. A divisão social, sexual e racial no trabalho do care aparece claramente a partir da minha pesquisa comparativa. Assim, estão envolvidas, majoritariamente, mulheres de estratos sociais modestos, imigrantes internos (Brasil) ou externos (França). As cuidadoras são em sua maioria as mais pobres, as menos qualificadas, de classes subalternas, imigrantes. São, na França, quase 90% mulheres; no Brasil, mais de 95%. No Japão, uma minoria significativa, mais de 35% são homens. Quanto à dimensão étnico-racial, na França, a maior parte dos cuidadores na região parisiense (Ile de France) é de imigrantes, em sua maioria da África Negra e da África do Norte. No caso do Brasil, metade da população das cuidadoras entrevistadas nasceu fora de São Paulo, estado onde realizamos nossa pesquisa nas Instituições de Longa Permanência de Idosos (ILPI). Trata-se, portanto, principalmente de imigração interna. Não encontramos nenhum trabalhador imigrante no setor de cuidados às pessoas idosas durante nossa pesquisa de campo. No caso do Japão, embora acordos