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Qual o Caminho do Brasil? Instituições, Cultura e Política no Século XXI
Qual o Caminho do Brasil? Instituições, Cultura e Política no Século XXI
Qual o Caminho do Brasil? Instituições, Cultura e Política no Século XXI
E-book774 páginas10 horas

Qual o Caminho do Brasil? Instituições, Cultura e Política no Século XXI

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Sobre este e-book

As dificuldades que estamos vivenciando no Brasil não são nenhuma novidade. Desde a colonização e a formação do Estado brasileiro que convivemos com uma estrutura econômica basicamente de exportação de matérias-primas aliada à subalternidade internacional e à colonialidade de um poder dirigido por elites econômicas e políticas que retroalimentam as nossas desigualdades sociais estratosféricas por meio do DNA de uma mentalidade escravocrata, autoritária, reacionária e conservadora. Como resultado, temos um total desleixo com a coisa (res)pública (educação, saúde, ciência e demais equipamentos sociais) que são gerenciados pelo patrimonialismo, fisiologismo, clientelismo e tantas outras gramáticas perversas que se prolongam em nossa história. Dessa forma, este livro conclama a todos a questionar: qual o trilho preciso para o Brasil, neste século XXI? O livro é divido em três partes, que se interconectam: "Estado e Economia"; "Democracia, Direito e Ideologia"; e "Cultura, Saberes e Inquietações". Os autores problematizam o cenário que está posto e os dilemas a enfrentarmos, sob várias dimensões. Nesses trajetos, convidamos os leitores a pensar o caminho necessário ao Brasil, pois, caso contrário, vem um gato e diz: "se você não sabe onde quer ir, qualquer caminho serve" (CARROLL, Alice no País das Maravilhas, 1865).
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de set. de 2021
ISBN9786525007113
Qual o Caminho do Brasil? Instituições, Cultura e Política no Século XXI

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    Qual o Caminho do Brasil? Instituições, Cultura e Política no Século XXI - Maria Alice Nunes Costa

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Para

    Carolina, Bruno, Camilla e Valentin.

    Aos netos,

    Henrique, Isadora e Olivia,

    que me deram a ilusão da imortalidade e o sabor de recomeçar a aprender no século XXI.

    Ao meu companheiro de força e afeto,

    Paulo Mello Luz.

    Todo caminho da gente é resvaloso. Mas também, cair não prejudica demais. A gente levanta, a gente sobe, a gente volta!… O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. 

    (Riobaldo Tatarana, Guimarães Rosa,

    Grande Sertão: Veredas)

    APRESENTAÇÃO

    A decisão de organizar este livro foi tomada, em março de 2020, em pleno cenário da pandemia de Covid-19. As notícias passaram a ser assustadoras e eu imaginava o caos em que o Brasil poderia se afundar. Temi pela minha família, meus amigos e pelo Brasil. Como iremos enfrentar este tufão? Qual destino nos está reservado? Qual o caminho do Brasil, para dar fim às nossas mazelas sociais, políticas e econômicas? Perguntas que me inquietavam e, por isso, nada melhor do que procurar cientistas sociais para pensarmos juntos os atropelos e os caminhos a enfrentar. A organização deste livro sinaliza esse momento.

    As dificuldades que estamos vivenciando não são nenhuma novidade, tampouco foram gestadas apenas por um governo ultraliberal e conservador. A pandemia permitiu uma maior acuidade sensorial dos nossos problemas estruturais e, assim, requer buscarmos novos caminhos. Desde a colonização e a formação do Estado brasileiro que convivemos com uma estrutura econômica basicamente de exportação de matérias-primas, com a colonialidade de um poder dirigido por elites econômicas, com a subalternidade da política externa, com desigualdades estratosféricas, com um DNA de uma sociedade escravocrata e racista, com o autoritarismo e a violência, com uma cultura hegemônica reacionária e conservadora, com uma total desconsideração com a ciência, a educação, a cultura e a saúde, com a impunidade, com o patrimonialismo, clientelismo, fisiologismo e tantas outras gramáticas perversas que se prolongam em nossa história. Portanto, clamo a todos a questionar: qual o trilho preciso para o Brasil?

    Os autores deste livro problematizam o cenário que está posto e os dilemas que precisamos enfrentar, sob várias dimensões. São pesquisadores multidisciplinares que vêm, há alguns anos, pensando o Brasil. Companheiros que percorrem o caminho da ciência e do afeto, alicerces que se fundam nas relações de troca e de incentivo, que inspiram e dão firmeza e segurança para crescermos e continuarmos em frente. Cada um com o seu olhar contribuiu para elaborar um universo teórico, construído por meio de diversas vivências e experiências, que nos permite compreender como é importante a troca de saberes nesse ambiente em que convergem interesses pessoais, intelectuais e profissionais.

    O livro é divido em três partes, que se interconectam. Na primeira parte, Estado e Economia, são apresentados seis capítulos. No Capítulo 1, Brasil XXI: Eterno Retorno ou Avanços Institucionais?, o autor Gilvan Luiz Hansen realiza uma interessante trajetória histórica do Brasil analisando, de maneira crítica, a formação do Estado brasileiro e suas instituições. O autor indaga sobre o risco de um eterno retorno às velhas práticas de ruptura institucional e imposição de governos autoritários que utilizam do Estado brasileiro para fazer valer seus interesses políticos e econômicos.

    Nos capítulos seguintes, temos importantes traduções propositivas sobre a economia do Estado brasileiro. No Capítulo 2, Brasil Rumo à Catástrofe: Desmonte do Estado e Condições para Superação Positiva da Crise, o economista José Celso Cardoso Jr. identifica e analisa importantes dimensões do processo de desmonte do Estado brasileiro e da própria Constituição Federal de 1988, alertando para o caráter disruptivo da economia e da sociedade brasileira se levado a termo a agenda retrógrada liberal-fundamentalista, em curso. No Capítulo 3, Um Caminho para o Brasil: Abandonar a Austeridade e Sustentar Mais e Melhores Gastos Públicos, os autores Fernando Augusto Mansor de Mattos e Tiago Oliveira discutem os efeitos econômicos e sociais da atual crise pandêmica gerada pelo alastramento da Covid-19 no Brasil, demonstrando ser de suma importância uma nova conduta do Estado brasileiro acerca da natureza da execução das políticas públicas no país, que venham a atender com qualidade o duplo objetivo estratégico: melhorar a saúde pública e redinamizar a industrialização do país. No Capítulo 4, Acordo comercial Mercosul / União Europeia: muitas sombras e poucas luzes para o futuro do Brasil, o economista Stefano Palmieri realiza uma avaliação do acordo estratégico entre os países do Mercosul e os Estados-membros da União Europeia. O autor examina os efeitos econômicos, sociais e ambientais do acordo comercial, assinado em junho de 2019, entre o Mercosul e a União Europeia e destaca uma série de problemas para o Mercosul, em particular para o Brasil.

    No Capítulo 5, A minério-dependência econômica do Brasil, os autores Maria Geralda de Miranda, Márcio Souza e Denise Vieira apresentam uma análise sobre a indústria primária de mineração no Brasil, a dependência de seus recursos por parte dos municípios em que ela se insere e os impactos dessa indústria no ambiente. No Capítulo 6, Marcos Vinício Chein Feres analisa, por meio de uma abordagem institucionalista crítica, o processo de normatização e construção da regulação de empresas privadas, ressaltando que neste novo cenário econômico de Estado Regulador, exige-se uma nova postura do jurista brasileiro no século XXI.

    Na segunda parte do livro, enfrentamos os temas Democracia, Direito e Ideologia. No Capítulo 7, Democracia e Linguagem: Notas sobre o Sentimento de Justiça no Brasil do Século XXI, os autores Marcus Fabiano Gonçalves, Marília Lima e Laércio Martins realizam uma análise do paradigma da democracia contemporânea e as implicações do sentimento de justiça por meio do uso da linguagem nos espaços público e privado, com base nos pressupostos de Habermas e Tugendhat. No Capítulo 8, Conferências e Conselhos Nacionais de Participação: a luta pela sobrevivência num governo autoritário, os autores Sheila Holz, Giovanni Allegretti e Alfredo Ramos analisam a criação dos conselhos e as conferências do Brasil como um dos modelos mais estudados para o scaling-up da participação e questionam as atuais tentativas de sua eliminação, por meio do Decreto 9.759/2019, por exemplo, e os possíveis impactos da sua extinção para a sociedade brasileira.

    No Capítulo 9, Sociedade da Informação no Século XXI: Ensaio para se pensar a proteção do sujeito de direito virtual no Brasil, o autor Eder Fernandes Monica analisa propostas para se pensar a proteção do sujeito de direito virtual no Brasil, dentro do conceito de sociedade da informação. Ao constatar o fato de que esse campo de investigação é muito novo, propõe uma discussão entre o direito brasileiro e internacional e levanta hipóteses para futuras investigações do direito virtual. No Capítulo 10, o autor Afonso de Albuquerque, em Quem vigia os vigias? O Combate às Fake News na Pós-Democracia Brasileira, argumenta que a agenda sobre as fake news é um discurso hegemônico com um forte viés ideológico, que associa a democracia ao correto funcionamento das instituições de controle, funcionando como um instrumento de repressão da liberdade de expressão.

    No Capítulo 11, "The grip of ideology/A Pegada da Ideologia, os autores Gisálio Cerqueira Filho e Gizlene Neder realizam uma análise ensaística de interpretação interdisciplinar em relação à pandemia do novo coronavírus, para demonstrar que as ciências humanas (Humanidades) não fogem à sua responsabilidade com o planeta Terra. Afirmam que a compreensão da relação entre instituições e política passa necessariamente pela compreensão das subjetividades implicadas para a tomada de decisão do caminho e as escolhas necessárias que o Brasil precisa enfrentar, neste século XXI. No Capítulo 12, Polarização Identitária e a Pulverização Programática no Brasil", a autora Maria Alice Costa realiza uma inflexão sobre a recente trajetória de polarização ideológica que se instalou no Brasil, fragmentando a sociedade em polos identitários rivais, gerando reivindicações difusas que acabam por aprofundar a pulverização programática das políticas públicas, fragmentando-as e as tornado mais frágeis.

    Na terceira e última parte, tratamos de assuntos fulcrais: Cultura, Saberes e Inquietações. Essa parte é aberta com o Capítulo 13: Incertezas e Desafios de uma Trajetória em Movimento, de autoria de Marcelo Neder Cerqueira. O autor realiza um ensaio transdisciplinar nas ciências sociais, utilizando o "afeto como método". Marcelo Cerqueira nos mostra as suas inquietudes, traçando as suas possibilidades de futuro, seus avatares utópicos ou distópicos, seus flashbacks e flashfowards entre cultura, música e as humanidades.

    No Capítulo 14, Desafios Brasileiros Contemporâneos: Discutindo Cultura e Território, o autor Luiz Augusto Fernandes Rodrigues tensiona aspectos culturais da produção e do uso do território, com a perspectiva sobre a necessidade de buscarmos novas formas de estarmos em contato mais diretos entre nós mesmos e com nossas práticas culturais e territoriais.

    No Capítulo 15, a autora Maria Alice Rezende Gonçalves analisa em Aquarela do Brasil: sobre o samba e a presença da dádiva o papel da dádiva como motor das ações das velhas guardas das agremiações carnavalescas cariocas dedicadas ao samba. Para a autora, o samba, para além de ser o gênero musical nacional e étnico, tem desempenhado funções socializadoras, de lazer, de entretenimento e profissionalizante, unindo pessoas e agremiações em redes capazes de promover o entretenimento e formas de convivência que possibilitam a resolução de diferenças e rivalidades. No Capítulo 16, Cidade e Política: Disputas de Narrativas no Carnaval de Rua Carioca, a autora Marina Bay Frydberg afirma que o carnaval é construído por meio de disputas, atuando como espaço de reivindicações políticas. Destaca o carnaval de rua carioca como espaço onde se discute o direito à cultura e à cidade e identifica as disputas em torno dos significados e das representações do carnaval.

    Para finalizar, nos Capítulos finais, 17 e 18, Fotografia como Arqueologia de Olhares e Saberes e "Quem decide? Foto-Elicitação sobre o Aborto", respectivamente, a autora Maria Alice Costa, como fotógrafa, apresenta a fotografia como estética e alternativa epistêmico-metodológica, envolvendo-a de maneira transdisciplinar, por outros pontos de vistas analíticos e a colocando como um poderoso meio de comunicação visual e social, capaz de revelar um caminho repleto de conhecimentos, que vai além do ponto de vista individual.

    Nesses trajetos, convidamos os leitores a pensar o Brasil que precisamos, pois, caso contrário, vem um gato e diz: Se você não sabe onde quer ir, qualquer caminho serve (CARROLL, Alice no País das Maravilhas, 1865).

    Maria Alice Nunes Costa

    Itaipava, agosto de 2020

    Sumário

    INTRODUÇÃO GERAL

    Coesão Social no Brasil do Século XXI: Responsabilidade e Solidariedade 19

    Maria Alice Nunes Costa

    PARTE I: ESTADO E ECONOMIA 51

    CAPÍTULO 1

    BRASIL XXI: ETERNO RETORNO OU AVANÇOS INSTITUCIONAIS? 53

    Gilvan Luiz Hansen

    CAPÍTULO 2

    BRASIL RUMO À CATÁSTROFE: DESMONTE DO ESTADO E CONDIÇÕES PARA SUPERAÇÃO DA CRISE 77

    José Celso Cardoso Jr.

    CAPÍTULO 3

    UM CAMINHO PARA O BRASIL PÓS-PANDEMIA: ABANDONAR A AUSTERIDADE E SUSTENTAR MAIS E MELHORES GASTOS PÚBLICOS 121

    Fernando Augusto Mansor de Mattos

    Tiago Oliveira

    CAPÍTULO 4

    O ACORDO COMERCIAL MERCOSUL–UNIÃO EUROPEIA: MUITAS SOMBRAS E POUCAS LUZES PARA O FUTURO DO BRASIL 147

    Stefano Palmieri

    CAPÍTULO 5

    A MINÉRIO-DEPENDÊNCIA ECONÔMICA DO BRASIL 181

    Maria Geralda de Miranda

    Márcio Araújo de Souza

    Denise Moraes do Nascimento Vieira

    CAPÍTULO 6

    DIREITO, EMPRESA E REGULAÇÃO: UMA ABORDAGEM INSTITUCIONAL CRÍTICA 205

    Marcos Vinício Chein Feres

    PARTE II: DEMOCRACIA, DIREITO E IDEOLOGIA 225

    CAPÍTULO 7

    DEMOCRACIA E A LINGUAGEM: NOTAS SOBRE O SENTIMENTO DE JUSTIÇA NO BRASIL DO SÉCULO XXI 227

    Marcus Fabiano Gonçalves

    Marília Freitas Lima

    Laércio Melo Martins

    CAPÍTULO 8

    CONFERÊNCIAS E CONSELHOS NACIONAIS DE PARTICIPAÇÃO: A LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA NUM GOVERNO AUTORITÁRIO 245

    Sheila Holz

    Giovanni Allegretti

    Alfredo Ramos

    CAPÍTULO 9

    ENSAIO PARA SE PENSAR A PROTEÇÃO DO SUJEITO DE DIREITO DIGITAL NO BRASIL 279

    Eder Fernandes Monica

    CAPÍTULO 10

    QUEM VIGIA OS VIGIAS? O COMBATE ÀS FAKE NEWS NA PÓS-DEMOCRACIA BRASILEIRA 299

    Afonso de Albuquerque

    CAPÍTULO 11

    THE GRIP OF IDEOLOGY/A PEGADA DA IDEOLOGIA 321

    Gisálio Cerqueira Filho

    Gizlene Neder

    CAPÍTULO 12

    POLARIZAÇÃO IDENTITÁRIA E PULVERIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL 343

    Maria Alice Nunes Costa

    PARTE III: CULTURA, SABERES E INQUIETAÇÕES 367

    CAPÍTULO 13

    INCERTEZAS E DESAFIOS DE UMA TRAJETÓRIA EM MOVIMENTO 369

    Marcelo Neder Cerqueira

    CAPÍTULO 14

    DESAFIOS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS: DISCUTINDO CULTURA E TERRITÓRIO 393

    Luiz Augusto F. Rodrigues

    CAPÍTULO 15

    AQUARELA DO BRASIL: SOBRE O SAMBA E A PRESENÇA DA DÁDIVA 417

    Maria Alice Rezende Gonçalves

    CAPÍTULO 16

    A CIDADE E A POLÍTICA EM DISPUTAS NO CARNAVAL DE RUA CARIOCA 439

    Marina Bay Frydberg

    CAPÍTULO 17

    FOTOGRAFIA COMO ARQUEOLOGIA DE OLHARES E SABERES 457

    Maria Alice Nunes Costa

    CAPÍTULO 18

    QUEM DECIDE? FOTO-ELICITAÇÃO SOBRE O ABORTO NO BRASIL 479

    Maria Alice Nunes Costa

    SOBRE OS AUTORES 487

    ÍNDICE REMISSIVO 491

    INTRODUÇÃO GERAL

    Coesão Social no Brasil do Século XXI: Responsabilidade e Solidariedade

    Maria Alice Nunes Costa

    INICIANDO O CAMINHO...

    A pandemia de Covid-19 escancarou para a sociedade brasileira os efeitos perversos do desemprego, da renda mal distribuída e da inexistência ou precarização do investimento em ciência, em tecnologia e em equipamentos de consumo coletivo para o bem-estar social. Mostrou-nos que as ameaças não afetam mais indivíduos isolados, mas sim populações inteiras. Os riscos sociais, antes temporários, tornaram-se de longo prazo, constantes ou permanentes.

    Desde o final do século XX, a sociedade vem sendo caracterizada pelo aumento da densidade de uma pluralidade de agentes e atores sociais disputando, convergindo e divergindo quanto à responsabilidade sobre a produção do bem-estar humano e social. Uma conjunção de fatores ambíguos e ambivalentes tem trazido à discussão os valores éticos, como a responsabilidade e a solidariedade entre Estado, indivíduos e sociedade civil.

    No limiar do século XXI, vemos que o Estado, o mercado, o trabalho, a cultura, a família, a nação, as igrejas e as classes sociais não são como dantes. Estamos vivendo as influências globalizantes e, diante do multiculturalismo, convivendo com uma variedade de diferentes estilos de vida e valores. A responsabilidade centrada no Estado tornou-se mais diluída. O Estado tornou-se mais fluido e seu poder compartilhado tornou as relações sociais mais flexíveis e precárias.

    As mudanças de valores impactam sobre as instituições, as atitudes e o comportamento da sociedade. As soluções, que antes pareciam eficazes para diagnosticar e resolver os dilemas da ação coletiva, hoje parecem frágeis e demandam por um novo ethos, uma nova compreensão do mundo e do ser humano. Isso significa que o esforço de pensar um novo modelo de convivência e coesão social é um desafio e uma necessidade.

    É necessário levarmos em conta que as transformações que vêm ocorrendo no cenário de grave crise econômica e geopolítica, traduzindo-se nos atuais fluxos globais da revolução tecnológica, dos ajustes econômicos e da financeirização do capital, produzem alterações das condições sob as quais se organizavam e se desenvolviam as atividades dos indivíduos e das coletividades. Diante de tantos dilemas, a humanidade sente-se em crise.

    Esse cenário emerge diante dos inúmeros desafios que imperam na contemporaneidade. Não existe ainda um denominador consensual capaz de definir adequadamente a época que estamos vivendo. Estamos diante de uma transição histórica do capitalismo, em que as incertezas dos processos da globalização criaram uma tensão nas relações entre Estado, capital e sociedade. Podemos observar o reajustamento estatal e societário e, até mesmo, vislumbrar a emergência de um novo contrato social que busque compensar os desequilíbrios contemporâneos da coesão social, que tem produzido uma percepção de que ela é menos previsível.

    No Brasil, a redemocratização trouxe a expectativa de aumentar o papel do Estado nas questões sociais. O anseio democrático levou à suposição de que formas descentralizadas de prestação de serviços públicos, em especial na assistência social, saúde e na educação, seriam mais democráticas e fortaleceriam a democracia, na medida em que seriam mais eficientes e elevariam os níveis de bem-estar da população. O desenvolvimento da capacidade gestora do Estado passou, então, a se dar por meio de duas novas proposições: a descentralização e a parceria. Sua viabilização requer um aporte de redes humanas e organizacionais que permitam agregar diferentes competências e recursos. Implica uma estruturação descentralizada do sistema de gestão, fundado na cooperação e na partilha de informações.

    Os instrumentos e as informações assimétricas que cada um dos agentes sociais possui e leva para ocupar o espaço público é o dilema. É problemático se atingir o bem comum se não houver compatibilização de interesses mútuos. Cada um vai querer sobrepor sua visão da realidade, que não levará a nenhum ponto de equilíbrio. Dessa forma, nossa atenção deve ser redobrada, já que novos dilemas e desafios são colocados e múltiplos interesses aparecem como responsáveis pela responsabilidade e solidariedade social, antes confiadas ao Estado.

    A estratégia de compartilhar responsabilidades tem sido avaliada, na maioria das vezes, por duas vertentes. Uma que enfatiza as virtudes da vitalidade das comunidades, do desenvolvimento da responsabilidade e da solidariedade como aumento do estoque do capital social de uma sociedade, e outra que analisa os efeitos perversos desse fenômeno que, na verdade, reduz a real responsabilidade estatal, encobrindo ideologicamente a proposta neoliberal de reforma do Estado, que pretende desmontar as suas atividades sociais.

    1. Responsabilidade de quem?

    A responsabilidade na modernidade ocidental foi uma categoria com pouca visibilidade, seja no discurso social ou em argumentos teóricos. Não teve a centralidade comparável às outras categorias, tais como a liberdade, a igualdade e a solidariedade. O conceito só surgiu no dicionário filosófico no século XVIII, sendo proveniente do Direito. Etimologicamente, responsabilidade deriva do latim respondere (responder), que significa ser capaz de comprometer-se, mostrar-se digno ou à altura de algo. Sob o ponto de vista jurídico, em geral, o termo é delimitado no campo da responsabilidade civil (a obrigação de reparar os danos ou prejuízos causados a outros); e, pela responsabilidade penal (a obrigação de sofrer a punição pelos delitos ou crimes praticados). Uma e outra são aplicadas de acordo com a lei estabelecida e pode-se ver o lugar atribuído à ideia de obrigação: obrigação de indenizar ou de sofrer a pena. Para Ricoeur (1995), isso tudo é bastante claro no plano jurídico; contudo, é de causar estranheza o termo ser tão recente na tradição filosófica, na medida em que a proliferação e dispersão do termo vão muito além dos limites assinalados pelo uso jurídico.

    A partir do século XIX, o erro e o risco foram fundamentados pela responsabilidade civil: somos responsáveis pelos danos que causamos não apenas pelos nossos atos, mas também pela nossa negligência ou imprudência. Somos responsáveis também por aquele dano causado por pessoas por quem devemos responder ou por coisa que temos à nossa guarda. Conforme Ricoeur (1995), somos responsáveis pelas consequências de nossos atos, mas também pelos outros, na medida em que estão ao nosso cargo ou ao nosso cuidado e, eventualmente, muito além dessa medida. Ou seja, temos obrigações com tudo e por todos. Para o autor, é esse sentido que deve ser transbordado para a filosofia moral. E questiona:

    Responsável de quê? Do que é frágil. Hoje é isto que nos inclinamos a responder [...] numa época em que a vítima, o risco de acidentes, o prejuízo sofrido, ocupam o centro da problemática jurídica da responsabilidade. Não é de estranhar que o vulnerável e o frágil sejam igualmente no plano moral tidos como o verdadeiro objeto da responsabilidade por aquilo que se é responsável. [...] Esta deslocação do objeto da responsabilidade [...] promoveu o outro à condição de objeto de cuidado [...] nos tornamos responsáveis pelo prejuízo porque, em primeiro lugar, somos responsáveis pelo outro (RICOEUR, 1995, p. 63, tradução nossa).

    Sob o ponto de vista filosófico ou moral, a responsabilidade é a capacidade e a obrigação de assumirmos os nossos atos e, portanto, responder por eles, suportando as suas consequências. No entanto, é sempre difícil e muito problemático sabermos até aonde vão e aonde terminam os limites de nossa responsabilidade. Dessa forma, o conceito de responsabilidade liga-se à ideia de culpabilidade e do poder dos agentes e atores sociais na sua relação com o outro. A maior parte dos nossos atos tem efeitos em cadeia. Os efeitos podem ser ínfimos ou perdurarem no tempo e, muitas vezes, não fazemos qualquer ideia da dimensão desses efeitos. Essa é a complexidade de nosso século XXI. Quanto à distribuição da responsabilidade, Santos (2000) afirma que toda a responsabilidade é corresponsabilidade e deve ser centrada na solidariedade com o futuro. O problema é saber como determinar a correspondência entre a cota-parte de responsabilidade partilhada e a cota-parte das consequências a partilhar. Para o autor, essas cotas raramente coincidem, visto que as consequências mais negativas tendem a atingir prioritariamente as populações e os grupos sociais com menor responsabilidade na concepção das ações que a provocaram.

    A crescente demanda de seguros contra os riscos é resultado da convicção de um sintoma decisivo que demarca as aceitações do direito civil e da moralidade: quando a responsabilidade é de natureza moral, é impossível segurá-la. Foram os novos acidentes (de trabalho, ambiental e de fluxo e circulação) que deram os argumentos para a tese do risco. Com o sistema de seguros, a preocupação passou a ser com a indenização das vítimas. Nesse sentido, a responsabilidade jurídica perde toda a dimensão moral, isto é, o vencedor é aquele que tem o melhor advogado (ETCHEGOYEN, 1993, p. 44). Conforme esse autor, o desvio da dimensão moral da responsabilidade acentuou-se por meio da extensão da dimensão do fenômeno dos seguros/sinistro em nossa sociedade, que nos fez esquecer a noção da responsabilidade moral, pois o seguro apaga o erro e o risco nas dimensões de reparação.

    De acordo com Ricoeur (1994), ocorre uma desmoralização das raízes da imputação, que chega a cancelar a obrigação, em seu sentido de constrangimento social, até do constrangimento social interiorizado. Hoje, estaria ocorrendo uma reformulação jurídica da responsabilidade, em que a ideia do erro tem sido substituída pela ideia de risco e de perigo, de maneira que a penalização da responsabilidade civil não envolve a responsabilização e a culpa. Portanto, estaríamos vivendo uma responsabilidade sem erro, em que a vítima não mais procura exigir a reparação, mas passa a querer a indenização. O autor aponta que existe também uma visão restrita de responsabilidade até uma visão mais ampla de responsabilidade ilimitada. Assim, a responsabilidade é de todos e acaba sendo de ninguém. Nesse sentido, devemos encontrar uma justa medida desta arbitragem: nem fugir da responsabilidade, nem tampouco inflacionar uma imagem de responsabilidade infinita.

    Segundo o filósofo alemão Otto K. Apel (1991), não existe, propriamente, uma responsabilidade moral coletiva. O que existe é uma partilha individual de responsabilidades de várias pessoas envolvidas numa mesma responsabilidade, ou seja, uma corresponsabilidade ou uma responsabilidade solidária. Para Apel, perante os avanços tecnocientíficos que ameaçam a espécie humana, só resta um caminho: o da responsabilidade solidária. Cada indivíduo, com seus argumentos, deve cooperar na fundamentação das normas morais e jurídicas suscetíveis de consenso. Essas normas, uma vez submetidas à crítica da opinião pública, serviriam como um horizonte normativo no qual cada indivíduo poderia encontrar os critérios para decidir em que situações e casos tem a obrigação moral de assumir essa responsabilidade solidária e, consequentemente, agir em conformidade com ela.

    A responsabilidade toma o sentido de dimensão moral quando o agente responsável (seja individual ou institucional) é confrontado com um olhar que ultrapassa os limites de seu próprio território. O outro ou a imanência do outro volta-se à sua própria consciência. Por isso não existe moralidade possível sem a solicitação da consciência. Portanto, a responsabilidade não é definida em absoluto a priori, mas revela-se como fruto do próprio processo de relação mútua entre atores. É nessa interpelação que são colocadas as questões: que relações de poder estão em jogo, como se negociam as tarefas, quais as regras em construção, que modalidades de comunicação são utilizadas, como evoluem as práticas ao longo do tempo, qual o peso da parte afetiva e do sentimento de obrigação? (CHARBONNEAU; ESTÈBE, 2001).

    Quanto a esses processos de interdependência da responsabilidade, Michel Métayer (2001, p. 23-26) denomina de "práticas de mútua interpelação, por se tratarem de sequências de trocas em que as funções de quem interpela (questiona ou requisita) e de quem responde (pelos seus atos) vão se intercambiando. Em outras palavras, aquele que imputa uma responsabilidade a outro tem também, por sua vez, contas a prestar" em função de compromissos que assumiu e que se sente mais ou menos obrigado a cumprir. Ser responsável por si se constrói e se solidifica na articulação com outros, na resposta ao outro e às suas interpelações.

    Para Ulrich Beck (1998), a sociedade atual não é apenas pós-moderna, globalizada, individualizada, mas é também uma sociedade do risco. O autor afirma que a incerteza e a precariedade se instalaram no seio da ordem social e na vida de cada um de nós. As mudanças profundas ocorridas nas instituições basilares da solidariedade tornaram os resultados das decisões individuais, em certos domínios da vida quotidiana, menos previsíveis e aumentaram a noção de risco. Antes os riscos e os acidentes eram sensorialmente evidentes, hoje são globais, impessoais e escapam à percepção humana. Para Beck, a sociedade do risco é uma sociedade catastrófica (p. 30). Enquanto que nas sociedades de classe, a solidariedade era realizada para rechaçar a miséria, o movimento que se põe em marcha na sociedade do risco é a da solidariedade do medo, que acaba por se converter em força política. Quanto a esse aspecto, o autor acrescenta, questionando-se:

    Segue sem estar nada claro como opera a força decisiva do medo. Até que ponto podem resistir as comunidades do medo? Que motivações e energias de atuação as põem em movimento? Como se comporta esta nova comunidade solidária dos medrosos? Fará saltar a força social do medo o cálculo individual do benefício? Até que ponto as comunidades ameaçadas pelo medo estão dispostas ao compromisso? Em que formas de atuação se organizam? Impulsa o medo ao irracionalismo, ao extremismo, ao fanatismo? O medo não havia sido até agora uma base de atuação racional. Tampouco já vale esta suposição? Será o medo, ao invés da miséria material, uma base muito instável para os movimentos políticos? Poderá ser dividida a comunidade do medo pela fina corrente de ar das contrainformações? (BECK, 1998, p. 56, tradução nossa).

    1.1 Responsabilidade individual e coletiva

    O conceito de responsabilidade possui inúmeras variações e projeções, as quais durante a modernidade contrapuseram o indivíduo e o Estado. De um lado, pela via liberal, a tendência é focalizar a responsabilidade individual como fator decisivo para o conforto material da sociedade. Nesse caso, enfatiza-se que a propensão para a resolução dos problemas sociais estaria a cargo dos indivíduos. Eles próprios assumiriam a responsabilidade para com suas próprias vidas. Portanto, se os indivíduos são incapazes e inábeis para cuidar de sua própria vida, não poderão cuidar do bem-estar de outros.

    No momento em que os indivíduos internalizam a responsabilidade pelo seu próprio bem-estar, pelo seu futuro e pelas consequências de suas ações, terão, então, capacidade de aceitar a responsabilidade pelo outro. A responsabilidade individual internalizada tomará forma coletiva quando os membros do grupo estiverem aptos e dispostos a ter responsabilidade consigo e com seus dependentes, como um grupo (SCHMIDTZ, 1998).

    Como a responsabilidade moral não pode ser imposta, nem delegada ou estabelecida arbitrariamente por legislação, acaba por sugerir que ela é uma iniciativa individual, ou seja, é de foro íntimo. Somos moralmente responsáveis quando, conscientemente, reconhecemo-nos autores de nossos próprios atos, cabendo a nós, respondermos por eles perante o tribunal interior de nossa consciência. Essa consciência dependerá da habilidade cultural de cada sociedade e da capacidade de suas instituições de inculcar expectativas e valores de responsabilidade individual. Logo, algumas sociedades possuem uma história que possibilita às pessoas a terem responsabilidade consigo próprias, como um grupo, e outras não (SCHMIDTZ, ١٩٩٨). Assim, as preocupações com a vida social acabam recaindo sobre a responsabilidade dos cidadãos, como indivíduos.

    Outra vertente teórica dirige sua atenção para a responsabilidade coletiva visando o bem-estar social (GOODIN, 1998). Aqui, não se nega a importância da responsabilidade individual para com a coletividade. A diferença está na ênfase dada à coletivização da responsabilidade moral individual e, no efeito que isso causa para a criação de políticas de bem-estar social. Goodin acredita que, pelo fato de a sociedade não ser uma entidade metafísica, e sim um agregado de indivíduos interagindo entre si (em família, por exemplo), o bem-estar será derivado das interações e interrelações entre esses indivíduos. Dessa forma, a consciência moral da responsabilidade – sobre cada um – é a coletivização moral para com o bem-estar dos outros. A responsabilidade individual seria apenas um instrumento, não sendo um fim em si mesmo, mas sim um meio de se alcançar o senso de responsabilidade moral coletiva, na medida em que não existe responsabilidade individual sem a responsabilidade coletiva, compartilhada moralmente. A questão é: o que devemos fazer coletivamente e não individualmente. Ou seja, que políticas sociais devem ser elaboradas quando os indivíduos falham em promover a sua própria responsabilidade? Segundo o autor, a individualização da responsabilidade coletiva tem limite, logo, a responsabilidade coletiva nesse caso é aquela que é distribuída para cada um dos membros do grupo de indivíduos que a compartilham: a mesma responsabilidade cai sobre cada um deles (GOODIN, 1998).

    Para Amartya Sen (1999), qualquer afirmação de que a responsabilidade social deve substituir a responsabilidade individual é contraproducente. Segundo o autor, não existe substituto para a responsabilidade individual, na medida em que qualquer divisão da responsabilidade que ponha o fardo de cuidar do interesse de uma pessoa sobre os ombros de outra pode acarretar a perda de vários aspectos importantes, como motivação, envolvimento e autoconhecimento. Se um indivíduo não possui as liberdades substantivas¹³, estará privado não só de seu bem-estar, mas do potencial para levar uma vida responsável, pois esta depende do gozo das suas liberdades básicas. Para Sen, toda responsabilidade requer liberdade (SEN, 1999, p. 322). A liberdade está diretamente ligada à responsabilidade, caso contrário, uma maneira individualista radical pode vir a conduzir à falta geral de responsabilidade e inclusive à negação da responsabilidade.

    Assim, o argumento do apoio para expandir a liberdade das pessoas pode ser considerado um argumento em favor da responsabilidade individual e não contra ela. Logo, o caminho entre liberdade e responsabilidade é de mão dupla. Sem a liberdade substantiva e a capacidade para realizar alguma coisa, a pessoa não pode ser responsável por fazê-la. A liberdade é necessária e suficiente para a responsabilidade.

    Para Amartya Sen, o comprometimento social com a liberdade individual, para além do Estado, deve envolver também outras instituições: organizações políticas e sociais, disposições de base comunitária, instituições não-governamentais e o entendimento público. Segundo o autor, a visão arbitrariamente restrita de responsabilidade individual deve ser ampliada reconhecendo-se não meramente o papel do Estado, mas também as funções de outras instituições e agentes (SEN, 1999).

    Segundo Domingues (2002), a abordagem funcionalista de Talcott Parsons sobre responsabilidade é importante para compreendermos a relação entre o Estado e a responsabilidade na teoria sociológica, na medida em que as expectativas morais intimariam a um senso de responsabilidade e criaria uma solidariedade entre aqueles orientados para valores comuns, conformando, assim, uma coletividade. Ao discutir responsabilidade, Parsons tem em mente a dupla tarefa do Estado frente ao bem-estar dos cidadãos. A primeira diz respeito à responsabilidade do Estado em manter a integridade da sociedade contra ameaças generalizadas. A segunda é o papel do Estado em responder ao interesse público, incluindo aqui a defesa do território e a manutenção da ordem pública. Nesses dois sentidos, a liderança efetiva e responsável não poderia operar sem autoridade e uma considerável concentração de poder.

    Diante da atual complexidade social, quando a liberdade é envolvida por uma pluralidade de valores e o Estado parece impossibilitado de atender a todos os riscos sociais, fica difícil adotarmos a concepção centralizadora da ordem pelo Estado, ainda que tenhamos em mente que um Estado democrático deva zelar pela paz e responder adequadamente aos deveres que lhe cabem.

    Diante de outro quadro referencial, encontramos o enfoque para a responsabilidade voltada para uma ética comprometida com os destinos do planeta, para uma ética solidária e fraterna, baseada na visão ampla do sujeito responsável (MORIN, 1998). Sendo a responsabilidade um problema complexo, Edgar Morin prevê que a parcela de nossa responsabilidade parte do pressuposto de estarmos, todos, no mesmo destino planetário. O que está em jogo refere-se à concretude de nossas relações, àquelas que nos ligam, efetivamente, uns aos outros. A ideia do sujeito responsável está atrelada à perspectiva da generosidade, na medida em que percebemos e compreendemos o outro e a diferença do outro, em relação a nós próprios. Essa compreensão permite conhecer o sujeito enquanto sujeito e, tende sempre a reumanizar o conhecimento político [...] tornando as relações menos imbecis e ignóbeis (MORIN, 1998, p. 73). Pressupõe-se, aqui, uma relação de alteridade e magnanimidade, na qual o outro é tão sagrado quanto eu. O ser responsável é o sujeito que comporta uma ética política baseada na ideia de que todo ser humano é dotado de dignidade pelo simples fato de ser vivo. Não só o ser humano está em questão, mas engloba o planeta, senão o universo, por meio do que Morin chama de ecologia da ação, a qual deve nos conduzir a uma luta para modificar nossas ações empreendidas, que acabaram por sacrificar princípios e vidas.

    Importa, no cenário atual, concebermos uma nova forma de pensar a responsabilidade, que supere a polarização entre responsabilidade individual e a responsabilidade coletiva capturada pelo Estado, típica do pensamento moderno. Para Domingues (2002), essa nova forma de responsabilidade, de tradução coletiva, só poderá ser alcançada por meio de mudanças hermenêuticas e institucionais abrangentes para a promoção da igualdade e da liberdade, na direção de relações mais democráticas, isto é, nem manipulativas, nem hierárquicas.

    O desafio está em encontrar um consenso entre as diferentes visões de responsabilidade aqui apontadas, ou seja, a perspectiva ligada à motivação individual para uma ética solidária; e, a da responsividade do Estado face aos cidadãos, criando oportunidades de escolha e decisões substantivas para as pessoas, num ambiente que potencialize as forças associativas voltadas à responsabilidade e à solidariedade com o bem comum.

    2. Solidariedade

    Uma vez ouvi um caso, o qual não lembro o nome do país, mas era um escandinavo e, o exemplo é para mostrar o nível de solidariedade dos indivíduos de um país com alta intensidade de bem-estar. Dessa maneira, cito o ocorrido com um brasileiro que iria participar de um congresso científico na Finlândia. Ele ficou hospedado na casa de um professor finlandês. Acordaram bastante cedo e resolveram passear de carro pelo campus universitário, onde seria realizado o Congresso. Ao avistar o prédio onde seria realizado o Congresso, o brasileiro disse: Que ótimo que chegamos cedo, assim você pode estacionar bem em frente ao prédio. Para espanto do brasileiro, o finlandês respondeu: Pelo contrário! Já que chegamos cedo, podemos parar mais distante do prédio do Congresso, pois teremos tempo para ir caminhando. Outras pessoas precisarão se atrasar e necessitarão estacionar perto do prédio. Essa lógica de raciocínio pragmático não tem nada de caridade. É resultado de uma trajetória civilizacional de confiança e reciprocidade estratégica, incorporada histórica e culturalmente. Condiz com a velha máxima de Adam Smith (1996, p. 74): não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelos próprios interesses.

    A solidariedade é uma relação de responsabilidade sustentada em bases sólidas de simpatia, empatia e alteridade, supondo o reconhecimento do outro, seja qual for a sua condição de necessidade, perigo ou vulnerabilidade. Ela vincula o indivíduo à vida, aos interesses de um grupo social, comunidade, de uma nação ou da humanidade. Ser solidário significa colocar-se conscientemente no lugar do outro, identificar-se com o destino do outro. Solidariedade também é a relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo sinta a obrigação moral de apoiar seus membros.

    Contudo, não é suficiente que a solidariedade se apresente, unicamente, como consciência moral. Ela precisa ser institucionalizada em reais possibilidades de comportamento, na medida em que ela é um produto cultural, social e fruto do processo civilizatório. Solidariedade significa, assim, a responsabilização coletiva pela garantia de uma vida digna e, para tanto, precisa ser operacionalizada institucionalmente. No caso do Estado, a solidariedade é compulsória e destina-se a criar uma cooperação obrigatória da população, com capacidade contributiva para gerar e redistribuir bens de consumo coletivo que atendam aos princípios dos deveres do Estado e dos direitos fundamentais de cidadania, como educação, saúde, moradia e transportes públicos, bem como à execução de políticas sociais às populações mais vulneráveis. Portanto, são os impostos, que nos é imposto – pelo contrato social entre Estado e sociedade –, que devem financiar a materialidade do bem-estar social. O problema é que o Estado não é autônomo. Ele é dirigido por governantes que operam a partir de determinada cultura política. No Brasil, as escolhas públicas das elites governantes são, historicamente, em sua maioria, governadas para atender aos interesses das elites econômicas, demonstrando a sua aporofobia que contribui para corroborar a manutenção das desigualdades sociais.

    No cenário da pandemia, o Ministério da Economia anunciou em março de 2020 um pacote emergencial de R$ 147,3 bilhões para estados e municípios² reagirem ao impacto do novo coronavírus, inclusive para a compra de suprimentos médicos sem licitação. Resultado: foi necessária uma série de operações da polícia federal e do ministério público para apurar as inúmeras irregularidades de fraudes e corrupção envolvendo o dinheiro público que, em junho de 2020, totalizava um valor investigado de 1,07 bilhão de reais. Foram pelo menos 18 operações³ — uma a cada três dias, em média. As ações atingiram os governos estaduais de oito unidades da federação: Amapá, Amazonas, Distrito Federal, Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia e Santa Catarina. Os governadores suspeitos poderão responder pelos crimes de fraude, formação de cartel, lavagem de dinheiro, organização criminosa e corrupção ativa e passiva.

    O questionamento sobre a solidariedade não é novidade para a nossa época. As reflexões sobre solidariedade tiveram como marco teórico no ocidente as ideias de Durkheim no século XIX, caracterizadas pela instabilidade política e por guerras civis (Terceira República Francesa –1870/1904). A sociedade europeia mostrava-se aos olhos de Durkheim pouco integrada e cheia de contradições. A família e a religião acusavam sinais de enfraquecimento de suas antigas funções. As ideias e valores da velha ordem social foram destruídos pelo vendaval revolucionário de 1789, e, portanto, era necessário criar um novo sistema científico e moral que se harmonizasse com a ordem industrial emergente.

    Quando numa sociedade as relações sociais não estão regulamentadas ou as relações são precárias e as regras que as equilibram são indefinidas e vagas, torna-se difícil ou impossível chegar a situações de equilíbrio. É o que Durkheim denominou de sociedade em estado de anomia (DURKHEIM, 1967). Quando a sociedade é perturbada por uma crise, ela torna-se momentaneamente incapacitada de exercer sobre seus membros o papel de freio moral, de uma consciência superior à dos indivíduos. Estes deixam, então, de ser solidários, e a própria coesão social se vê ameaçada porque

    [...] as tréguas impostas pela violência são provisórias e não pacificam os espíritos. As paixões humanas não se detêm senão diante de um poder moral que respeitem. Se toda autoridade desse tipo faz falta, é a lei do mais forte que reina e, latente ou agudo, o estado de guerra é necessariamente crônico (DURKHEIM, 1967, p. 8).

    Durkheim diz que solidariedade é um conceito abstrato, essência, é um princípio que não existe. O que existe são formas concretas de solidariedade. Como formas concretas de solidariedade são da mesma ordem, ela pode ser classificada em mecânica e orgânica. Quando os vínculos que ligam o indivíduo à sociedade baseiam-se na similitude, no alto grau de homogeneidade interna de dada sociedade, a solidariedade é mecânica. Quando ocorre o aumento da densidade material (demográfica e das vias de comunicação e transmissão rápidas) e, consequentemente, do aumento da densidade moral, surge o problema da coesão social, na medida em que aumenta a competitividade entre os membros da sociedade. Para diminuir a competição, acaba ocorrendo a divisão do trabalho. Ela surge para repor a solidariedade e aumentá-la, na medida em que a divisão social aumenta a interdependência. Dessa maneira, a função da divisão do trabalho é a de integrar o corpo social, assegurar-lhe unidade. É, portanto, uma condição de existência da sociedade organizada, uma necessidade (solidariedade orgânica).

    De acordo com o sociólogo francês, a integração social realiza-se por meio da aceitação de um conjunto de normas e regras, expressas como condicionantes do comportamento do indivíduo em sociedade. Ser parte da sociedade implica necessariamente aceitar e cumprir essas normas sacralizadas na sociedade. O mundo do trabalho seria capaz de exercer sobre os membros de um grupo profissional uma regulamentação moral capaz de refrear certos impulsos e pôr fim aos estados "anômicos", quando eles se manifestassem.

    Na perspectiva da teoria marxista, os trabalhadores criariam uma nova forma de solidariedade a partir da revolução. A teoria marxista não pode ser confundida com as teorias utópicas e libertárias, porque não se baseia na miséria, na infelicidade e na injustiça em que estão submetidos os trabalhadores. A revolução proposta por Marx e Engels se fundamentava na análise científica do capitalismo e nela encontrava as maneiras pelas quais os trabalhadores, conscientes e organizados, realizariam sua própria emancipação. No Manifesto Comunista (1848), Marx e Engels conclamam os proletários do mundo todo a se unirem e a se organizarem para a longa luta contra o capitalismo. Portanto, na tradição marxiana, a solidariedade provém do interesse comum de classe que imprime em cada um de seus membros a obrigação moral de responsabilizar-se pelo destino do outro. Esse é o sentido em que o termo solidariedade foi empregado nas lutas dos trabalhadores, em que o destino do outro é decorrência do pertencimento comum de classe.

    Segundo Rosanvallon (1997), o verdadeiro desafio contemporâneo está na busca de um novo contrato social entre indivíduos, grupos e classes para que se produza maior densidade da sociedade civil, no desenvolvimento de espaços de troca e de solidariedade voluntária. Para ele, a perda da clareza sobre as finalidades do Estado gerou uma crise no sistema de solidariedade social, antes desenvolvido com a intermediação do Estado. As relações sociais tornaram-se opacas, não conduzindo a uma solidariedade completa, mas a uma situação de guerra de todos contra todos (ROSANVALLON, 1997, p. 34). Para superar as alternativas estatistas e de mercado, Rosanvallon propõe reinserir a solidariedade na sociedade. Assim, a sociedade tornar-se-á mais densa, voltada para si mesma, com indivíduos inseridos voluntariamente em redes de solidariedade direta (ROSANVALLON, 1997, p. 90).

    3. Redes sociais de solidariedade

    No Brasil, pelo fato de o Estado ser limitado e excludente criou, em várias situações, um estado de natureza em sentido hobbesiano, em que cada qual administra seus problemas por conta própria. Dessa forma, a limitação da providência estatal, em alguma medida, foi sendo sublimada pela existência de solidariedades primárias geridas, exatamente, para compensar a insuficiência do Estado. São relações e práticas sociais que, por via de trocas não mercantis de bens e serviços, asseguraram o bem-estar e a proteção social que, em sociedades mais desenvolvidas, foram asseguradas pelo Estado de Bem-Estar Social. Essa solidariedade vinda da família, dos vizinhos, da caridade das igrejas, dos laços de proximidade, de comunidades afetadas pela falta da providência estatal é definida por Boaventura de Sousa Santos como sociedade-providência, que significa:

    [...] redes de relações de interconhecimento, de reconhecimento mútuo e de entreajuda baseadas em laços de parentesco e de vizinhança, através das quais pequenos grupos sociais trocam bens e serviços numa base não mercantil e com uma lógica de reciprocidade semelhante à da relação de dom estudada por Marcel Mauss (SANTOS, 1999, p. 46).

    Para Santos (1993; 1995), a sociedade-providência é baseada em redes comunitárias, de proximidade e de reciprocidade. Em vez do cálculo distributivo da ideia de cidadania, baseia-se no investimento emocional, em compromissos e cumplicidade que não fazem parte da arena da obrigatoriedade e, sim, da disponibilidade dos membros em ajudar. São sociabilidades modernas desenvolvidas, exatamente, a partir dessa relação entre Estado e comunidade. Elas são encontradas tanto em comunidades rurais como em comunidades urbanas e surgem como uma alternativa complementar de proteção em situações de risco e de vulnerabilidade social.

    Santos (1995) observou que a sociedade-providência se desenvolve mais em países onde o Estado de Bem-Estar Social (Estado-Providência) é fraco. Nessa medida, trata-se de um conceito parcial, que necessita de seu par complementar: o Estado-providência. E cada país desenvolve um modo de produção de providência particular a partir dessa relação. É da fraqueza do Estado-Providência que a sociedade-providência se fortalece. Para o autor, o deficit do papel do Estado não gera turbulências de ruptura social e política, exatamente pelo fato de que essa sociedade compensa com outros modos de produção de providência. No entanto, Santos (1993) enuncia várias limitações da sociedade-providência na provisão do bem comum, na medida em que ela não carrega os atributos progressistas de cidadania. Ela é apenas um arranjo provisório e compensatório, na medida em que: os recursos materiais, científicos e técnicos à disposição das comunidades são quantitativa e qualitativamente diferentes dos acionados pelo Estado e não permitem formas de intervenção comparáveis às deste; os princípios da universalidade e da igualdade dos cidadãos não são respeitados pela solidariedade própria da sociedade-providência que, sendo baseada em relações sociais construídas em torno da reciprocidade, move-se por uma lógica particularista; a proteção da sociedade-providência não pode ser exigida como um direito, não existindo sequer mecanismos que garantam a proteção naqueles casos em que o costume já consagrou essa prática; as situações de dependência e de controle social que a cidadania pretendeu eliminar são visíveis onde predomina o modelo de sociedade-providência, pelo fato que a necessidade de ajuda reforça as formas locais de clientelismo; a relação espacial e territorial da dimensão da sociedade-providência é de relevância puramente local e as suas redes de ajuda mútua tendem a gerar rígidas distinções espaciais; e, a sociedade-providência distribui as obrigações e os encargos de sua proteção social de maneira desigual, patriarcal e clientelística, penalizando as mulheres e os mais dependentes.

    Domingues (2002) acredita que as redes de relações sociais tendem a responder à atual complexidade, como meio de tecer a solidariedade entre os membros da sociedade, na medida em que solidariedade significa estar aberto ao outro, atingir alguém, engajar-se com outras pessoas, com outras coletividades, ao menos em certo grau em seus próprios termos (DOMINGUES, 2002, p. 240). Por essa razão, Domingues acredita que a coordenação por redes pode gerar bons frutos, quando induzir a relações colaborativas, democráticas e emancipatórias.

    A rede social envolve também a reflexão sobre o paradigma da dádiva. A dádiva é um fenômeno total que implica a criação de vínculos sociais não só no plano das relações interpessoais (amigos, vizinhos, família). A teoria da dádiva formulada por Marcel Mauss, em 1924, no Ensaio sobre a Dádiva, procurou demonstrar que os fenômenos do Estado e do mercado não são universais, não havendo evidências da presença destes nas sociedades tradicionais, mas apenas em sociedades mais complexas como as modernas. Esse sistema aparece necessariamente como um fenômeno total que atravessa a totalidade da vida social, por meio da tríplice obrigação coletiva de dar, receber e devolver bens simbólicos e materiais. É a partir desse sistema de reciprocidades que se cria o vínculo social.

    A teoria da dádiva foi resgatada por intelectuais franceses que criaram o movimento MAUSS (Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais), em 1981. Esse movimento fez uma crítica antiutilitarista da teoria da dádiva, procurando demonstrar ser um equívoco a ambição do pensamento utilitarista e econômico em colocar o mercado como variável central na construção da vida social. Na discussão sobre os novos modos de regulação na sociedade contemporânea, a teoria da dádiva pode contribuir no sentido em que abarca o debate sobre a emergência das novas possibilidades de solidariedade associativas, de uma nova relação de sociabilidades que não envolve a centralidade no modelo dicotômico típico da modernidade (Estado e mercado).

    Um dos aspectos destacados pelos intelectuais do movimento MAUSS é o princípio do paradoxo da teoria da dádiva, que está subjacente à teoria das redes sociais. Esse princípio permite superar a construção dicotômica entre obrigação/liberdade e interesse/desinteresse, na medida em que esses valores estão intrinsecamente desenvolvidos na ação coletiva, principalmente por meio das redes sociais. Para a teoria da dádiva, esses valores não são contraditórios, são elementos de um paradoxo existente no círculo da troca de bens simbólicos e materiais. São expressões polares da realidade social complexa e elementos constituintes

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