Remexer anotações: O trabalho de um arguidor antropólogo
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Remexer anotações - Luiz Henrique de Toledo
Remexer anotações
Logotipo da Universidade Federal de São CarlosEdUFSCar – Editora da Universidade Federal de São Carlos
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Editora da Universidade Federal de São Carlos
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Remexer anotações
o trabalho de um arguidor antropólogo
luiz henrique de toledo
Logotipo da Coleção Aracy Lopes da Silva Estudos em Antropologia SocialLogotipo da Editora da Universidade Federal de São Carlos© 2019, Luiz Henrique de Toledo
Capa
Letícia Paulucci
Projeto gráfico
Bianca Brauer
Preparação e revisão de texto
Marcelo Dias Saes Peres
Daniela Silva Guanais Costa
Taciana Menezes
Editoração eletrônica
Walklenguer Oliveira
Editoração eletrônica (eBook)
Alyson Tonioli Massoli
Coordenadoria de administração, finanças e contratos
Fernanda do Nascimento
Apoio
Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar
Toledo, Luiz Henrique de.
T649r Remexer anotações: o trabalho de um arguidor antropólogo / Luiz Henrique de Toledo. -- Documento eletrônico. -- São Carlos: EdUFSCar, 2022.
ePub: 1.0 MB.
ISBN: 978-85-7600-534-6
1. Antropologia. 2. Teses. 3. Pós-graduação. I. Título.
CDD – 301 (20a)
CDU – 39
Bibliotecário responsável: Ronildo Santos Prado – CRB/8 7325
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema de banco de dados sem permissão escrita do titular do direito autoral.
Sumário
Com a palavra, o arguidor
Sobre artes esquecidas
Igor José de Renó Machado
Arguições
José Paulo Florenzano
Democracia Corinthiana: práticas de libertação no futebol brasileiro. Tese de Doutorado em Antropologia Social, PUC-SP, orientadora Márcia Regina da Costa, 2003
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Macunaíma trágico: a modernização brasileira em Mário de Andrade. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, PPGCSo-UFSCar, orientador Marco Antonio Villa, 2004
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Revolução vascaína: a profissionalização do futebol e a inserção sócio-econômica de negros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro (1915-1934). Tese de Doutorado em História Econômica, FFLCH-USP, orientadora Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura, 2010
Raphael Piva Favalli Favero
O futebol de várzea no Campo de Marte: disputas e sentidos em torno de uma prática cultural urbana. Qualificação de Mestrado, PPGAS-USP, orientador José Guilherme Cantor Magnani, 2017
Arguindo o arguidor: uma arguição das arguições
José Guilherme Cantor Magnani
Mais uma vez, a palavra do arguidor
sobre o autor
Com a palavra, o arguidor
Defesas de trabalhos acadêmicos não escapam às definições mais canônicas de ritual.[1] Para aqueles que submetem seus textos à apreciação pública e crítica, os denominados arguidos, a defesa consiste num momento de passagem para uma posição social cujo projeto alentado por anos de estudos e pesquisas pode coroar um esforço bem empreendido ou tão somente formalizar uma aquisição instrumental de uma posição na carreira, ou ainda as duas coisas concomitantemente. A liminaridade do neófito o coloca numa situação em que o equilíbrio entre a atenção redobrada às falas dos arguidores e suas respostas dita um estado anímico, retesado na gestualidade pouco espontânea que a situação o confina. Amigos e parentes, não raramente, acompanham, um tantinho aflitos e sem direito à palavra e muitas vezes atônitos, o desenrolar das oratórias cuja dinâmica carregada de linguagem conceitual é precipitada da fala de cada arguidor dentro de um decoro esperado, tudo coordenado por um presidente da banca, geralmente o orientador do trabalho em tela.
Como estratégia discursiva, cabe ao arguido ou candidato, tal como já sugeriu o antropólogo, meu orientador e amigo José Guilherme Cantor Magnani, trazer a retórica dos arguidores para o seu campo de saber, fazendo-os jogar sob suas regras e conhecimento que acumulou na pesquisa, afinal, em tese, ninguém conhece mais o tema do que você
, frase muito ouvida nos momentos que antecedem ao ritual e que, na verdade, serve como placebo estimulante contra o nervosismo. Do contrário, correrá o risco de ser seduzido pelas armadilhas das arguições, às vezes severas, às vezes tão somente burocráticas e de pouca interlocução, outras vezes sedutoras.
Para os arguidores, também conhecidos como examinadores, o ritual tende a ser menos intenso nas suas consequências emocionais e imediatas, pois acolhem o formalismo do momento como colaboradores no final de um périplo solitário, nem sempre bem amparado pelo orientador. Formando um sistema de reciprocidade acadêmica de julgamento de mérito, as bancas de defesa espalham pesquisadores e os inter-relacionam numa rede cujo propósito é aferir resultados individuais e coletivos de pesquisadores e centros de excelência. Guardando ainda técnicas artesanais na sua feitura, esses trabalhos irão para os currículos tanto do arguido, denominado de autor, quanto dos arguidores, a compor o patrimônio comum quantificado por mecanismos de aferição de produtividade no interior dos programas de pós-graduação e das agências de fomento.
As defesas públicas às quais são submetidos esses trabalhos guardam algo da artesania e estilização daquilo que autores como Marcel Mauss identificam como sendo ecos persistentes de uma atividade mágica. Ao codificar o tempo, espaço e as atividades ali transcorridas, as defesas também delineiam a manipulação representacional de coisas e ideias cujo objetivo é atingir outro estado, impor outra condição. Se para os envolvidos a magia seria a arte das mudanças
,[2] uma arguição tende a promover o neófito à comunidade de pesquisadores, elevando seu status acadêmico.
Arguição consiste numa peça precária em relação à perenidade dos trabalhos lidos, que irão compor os bancos de dados e poderão ser acessados pelos mecanismos digitais de busca. Perecível, a arguição guardará na memória da defesa a pessoalidade de seu arguidor. E tomada como primeira leitura, que se espera que seja feita com alguma competência e esmero, todavia carece de maturação e não raramente é realizada de afogadilho, dadas as injunções burocráticas que confinam a fala do arguidor num terreno pantanoso das especulações às vezes sem muitos rendimentos futuros para o trabalho lido. A liberdade dessa fala e das esconsas anotações serve de método de exposição de cada arguidor, e, ao contrário dos modelos canônicos do texto da dissertação ou tese, que integram uma espécie de cadeia produtiva no processo de feitura que culmina na defesa, carrega a marca da perecibilidade. Tomadas como documentos informais da defesa (mas cruciais para que ela ocorra), as arguições não irão compor junto com as assinaturas comprobatórias dos arguidores o rol de documentos que seguirão juntamente com o trabalho a via crucis burocrática rumo à legalização do que ocorreu no ritual, chamada de homologação.
Dessa maneira, uma arguição tende a morrer
ali mesmo, deixada impressa ou escrita de próprio punho dentro da cópia do trabalho. Às vezes é entregue ao candidato, ou mesmo registrada em vídeo e áudio, outras tantas, deixada ou esquecida dentro do volume lido. Sugestões, juntamente com as críticas, performances, gestualidades, piadas, risos, broncas, choros, desabafos, desaparecem na condição inefável do ritual, para retornarem em outra oportunidade emoldurando outro trabalho.
O jogo de palavras, pontuadas por marcações escolhidas pelo arguidor dentro de seu tempo de exposição e campo de visão ad hoc do texto ou ainda escritas previamente como roteiro sugerido ou literalmente lidas publicamente na forma de um texto mais formal, marca o esforço da retórica que pode levar os argumentos por caminhos que extravasam o trabalho. Então, argumentos laterais, metáforas, coloquialismos, jocosidades, aproximações de toda ordem, compõem esse texto falado em aberto, igualmente sujeito às contraposições tanto de outros arguidores como, e sobretudo, do arguido e seu orientador. Porque uma arguição tem como intuito sugerir um ponto de vista e induzir alguma interlocução, e o sucesso ou o fracasso nesse diálogo travado muitas vezes ao vivo dependerá da performance e das escolhas que o arguidor, porventura, apresenta no momento.
Além do trabalho lido e celebrado como uma espécie de contiguidade metonímica da pessoa do autor, ao ritual de defesa não escapa uma avaliação informal, mas não menos legitimada, dos próprios arguidores, onde sucesso (ou fracasso) de seus feitiços retóricos produzirá especulações vindas do público. Uma boa arguição e suas contribuições, do ponto de vista do arguido, pode variar enormemente, igualmente os efeitos da sua recepção frente ao público geral. Pontuais, conceituais ou metodológicas, formais, excessivamente adjetivadas, laudatórias, divertidas ou sisudas, as arguições são consumidas numa dinâmica presentista com atenção variada, de certo modo reequilibrando a condição instável e frágil pela qual é submetido o protagonista, seu trabalho e por extensão simpática a sua plateia. Os cumprimentos aos arguidores ao final dos trabalhos da parte do público, sobretudo vindos das pessoas menos acostumadas ao ritual acadêmico, dependerão do grau de empatia produzido, da vontade de crer
[3] que o momento tenha induzido, no qual proximidade ou distanciamento na eficácia da relação construída entre arguidor e arguido vão muito além das expertises acadêmicas em jogo.
Todavia, este compêndio de arguições tem como propósito inverter a hierarquia expressiva e estrutura ritualística, pois está em causa menos a performance dos candidatos na defesa de seus trabalhos, o modo como ali e ao vivo se saíram ou enfrentaram os embates controlados, para focar mais no tipo de debate (teórico e metodológico) que suscitaram, ou melhor, até onde seus trabalhos levaram ou esgarçaram os argumentos da arguição, o que suscitaram como continuidade e perspectivas no interior do campo de debate no qual estão inseridos. Nesse sentido, então, tudo começa ainda num outro ritual prévio, que é a qualificação.
A qualificação é um momento preparatório para a redação do texto final (tese ou dissertação). Pessoalmente, por razões de estilo, procuro distinguir muito pouco minhas arguições feitas para a qualificação das arguições da defesa, o que será verificado com a inclusão de dois exemplos aqui. Geralmente, uma qualificação é tomada como momento oportuno para que o candidato a mestre ou doutor e seu orientador reavaliem a trajetória da pesquisa, repensem certas estratégias metodológicas vindas das sugestões da banca, somem mais bibliografia sugerida, interpelem até mesmo o título da pesquisa. Trata-se de uma ocasião preparatória para a defesa. E a defesa de uma qualificação tende a ser menos formalizada que a do trabalho considerado finalizado, bem como não atiça tanta curiosidade e nem mobiliza um público mais geral.
Segue uma seleção de arguições que produzi e que marcam a trajetória de um arguidor qualquer. Alguma novidade nessa empreitada reside tão somente em registrá-las formalmente por escrito, primeiro, lidas e muitas vezes entregues aos seus destinatários ao final das defesas na esperança de alguma interlocução e, segundo, talvez aqui resida o ineditismo ou raridade, reunidas num só volume. Algumas dessas arguições, quero mesmo dizer partes delas, subsidiaram outras publicações minhas, tais como artigos, projetos, prefácios. Então, de certo modo, foram além da crítica roedora dos ratos de estantes onde geralmente abandonamos as monografias lidas e suas arguições. Lamento aqueles trabalhos que mesmo sugeridos pela banca não chegaram a uma publicação, e fica aqui o convite para que os leitores visitem a integralidade dos textos que lhes possam interessar. Esse é mais um modo de dizer e renovar meus agradecimentos aos arguidos pela possibilidade de ter lido seus trabalhos.
Para finalizar, devo dizer algumas coisas sobre a estrutura do livro e precauções aos leitores em relação ao que veio das arguições para dentro desse compêndio. Cada arguição será precedida do resumo da dissertação ou tese oferecido por seus autores. Então, trata-se de um livro coletivo, nesse sentido. Obviamente os resumos não dão conta dos trabalhos, instigando os leitores ao tema e à pesquisa. Vou tomar deliberadamente as arguições dentro desse mesmo espírito atribuído aos resumos, mas, embora possam cumprir propósitos semelhantes, vão além deles pelo caráter mais analítico e menos expositivo. Na verdade, considero as arguições também como resumos expandidos, só que escritos por alguém de fora
e que toma a liberdade chancelada pela hierarquia dos rituais de defesa de teses e dissertações para ampliar a retórica e os efeitos persuasivos
que o texto original possa suscitar. Não creio também que arguições cumpram a mesma tarefa das resenhas porque parecem não atender o propósito muitas vezes panorâmico e de apresentação que estas muitas vezes possuem. Potencialmente críticas, às resenhas são observadas a economia interna dos textos, já as arguições nem sempre correm pela linha real ou imaginária dos sumários.
Quero enfatizar que não creio em arguições que tomem a forma de uma constelação ou amontoado de críticas pontuais sucessivas. Rapidamente o leitor perceberá que me afasto do estilo argumentativo que cultiva a sanha da exposição gratuita de seus autores, ou mesmo a ostentação de um rosário de elogios banais aos trabalhos lidos. No livro, procuro chamar a atenção e reacender interlocuções pretéritas, revisitar temas, arriscar correlações, lançar ideias ainda imaturas, mas tudo tendo como pressuposto a seriedade e o comprometimento coletivo acadêmico com os temas abordados. Não preciso repetir que as arguições são pontos de vista subjetivos e interessados de uma leitura muito particular que na banca esteve agregada a outros pontos de vista (não raramente melhores que os nossos), o que traz a esse livro um desvio incontornável, já que contempla uma única leitura solitária de cada trabalho. Opção um tanto autoritária
, uma vez que estão ausentes as outras arguições e as réplicas e reações dos próprios autores. Na verdade, não temos aqui uma etnografia das bancas, o que seria em si mesmo outro trabalho interessante. Mas como disse um dos autores convidados, o professor José Paulo Florenzano, num e-mail em que me indicava onde encontraria o resumo de sua tese e estimulando com certa benevolência essa publicação, suas arguições contêm sabedoria e ensinamento
.
Mas o que verdadeiramente pode despertar a curiosidade dos leitores será a visão do conjunto que a leitura dessas arguições possa sugerir, aí sim e talvez por isso reter algum ensinamento
ou sabedoria
, porque as arguições não raramente dialogam com minha trajetória intelectual, aliás, esta parece ser outra característica de uma defesa, escolher arguidores em estreito diálogo com o texto examinado. Então, uma leitura do conjunto está longe de revelar ingênua e liricamente algumas das minhas preferências e fronteiras temáticas, opções teóricas e estilo de arguição ou vida (por que diabos isso poderia interessar a alguém?), mas sim, acima de tudo, evidenciar pontos de vista mais gerais sobre alguns temas caros à trajetória de pesquisa de muitos intelectuais que gravitam em torno da antropologia pela qual mais milito, a antropologia das práticas esportivas e, de modo geral, uma antropologia urbana. Ao final do livro, quero aprofundar um pouco mais a relação entre essas duas antropologias. A leitura de um trabalho perspectiviza o nosso próprio trabalho, desloca-o da condição insular que muitas vezes é confinado, coloca à prova conceitos e métodos, renova o uso abusivo que fazemos de autores e ideias, daí, frequentemente, arguir alguém é também se autoarguir.
Os textos foram, na medida do possível, revisados, mas tentei evitar reescrevê-los para não perderem algum sentido saboroso da sua exposição original, embora deslocamentos de frase, supressão de outras, substituição de um ou outro termo, tenham ocorrido aqui e ali nessa leitura já demasiadamente distanciada. É possível que certas colocações tão pertinentes no momento da defesa já não façam muito sentido agora. Foram suprimidas também tanto as perguntas pontuais e muito presas à costura dos textos quanto os reparos formais que geralmente fazemos ou sugerimos aos arguidos. Mesmo assim, o leitor encontrará inevitáveis frases soltas, eclipsamento ou descontinuidade de argumentações, assuntos somente evocados e pouco desenvolvidos, coisas que na pressão do tempo da arguição são inevitáveis ocorrer, denunciando alguma falta de compreensão da parte da leitura do arguidor ou ainda má leitura das referências que levamos para o arguido.
Na dinâmica dos diálogos travados numa defesa não é raro arguidos refutarem os argumentos dos arguidores, algo até mesmo desejável e índice de boa defesa, aspecto a ser considerado ao final, quando, sozinhos, os arguidores discutem os méritos tanto do trabalho escrito quanto da defesa oral. Por fim, um conceito final é acordado, revelado posteriormente ao público tal como se revela o nome de um novo papa. Como escrevo previamente minhas arguições, por absoluta incapacidade que invejo em tantos outros colegas de improvisar suas falas a partir de fiapos de anotações, minhas arguições parecem se aproximar de textos, o que sobremaneira facilitou e tornou decisivo me embrenhar por esse projeto, mas devo salientar que somente parecem com textos. A bem dizer, parecem exprimir mesmo contextos a propriamente textos.
Evidentemente que para merecer essa condição textual deveriam passar por severas revisões conceituais e de apuro narrativo. Então, uma leitura criteriosa das arguições evidenciará a pressa e a desorganização na exposição como suas maiores características, afinal, produzidas um ou dois dias antes da defesa, trazem para o interior do texto inevitáveis (mas nem tanto compreensíveis) problemas de escrita e entendimento. Por isso os textos acabam abruptamente, inúmeras vezes enunciando um problema que precisaria de arremate, aproximando assuntos que nos trabalhos estão distantes, ou o inverso. Entregues à liberdade vigiada que nos concedem dentro do tempo de exposição, essas arguições prestam-se a verdadeiros alfarrábios. Há nelas pouca organização no sentido de oferecer à leitura algo que se aproxime de uma estrutura singela com começo, desenvolvimento e arremate. Acrescentei notas quando julguei necessárias em cima de argumentos mais ligeiros, obscuros ou demasiadamente cifrados, e autores citados aqui e acolá, mas não esgotei essa possibilidade, livrando as arguições das remissões excessivas. Isso variará de arguição para arguição.
As descontinuidades de um texto-arguição provavelmente também surpreendem (ou irritam) os próprios candidatos no momento em que tomam ciência dos argumentos ali contidos, mas tomo esses desencaixes na comunicação arguidor e arguido como mistérios ou elementos do ritual da defesa. Quase nunca se ouve ou se pode responder tudo, nem se compreende tudo inclusive por conta do hermetismo das manipulações discursivas ou cacoetes do arguidor, que muitas vezes falham ao tentar persuadir ou seduzir o arguido.
O leitor percorrerá um pequeno período que compreende o conjunto das 22 arguições (2003-2017), o qual pode servir de pista para que futuros balanços bibliográficos revelem alguns dos temas e problemáticas tratados na Antropologia urbana e na Antropologia das práticas esportivas. Embora notadamente ínfimo e estatisticamente pouco representativo do volume da produção acadêmica, alguma indicação e tendência ele pode revelar, servindo como testemunho do desenvolvimento dessas subáreas dentro da Antropologia.
Muitos colegas de profissão vêm há algum tempo estimulando a presente publicação. Não arriscarei nomeá-los sob o óbvio fatalismo do esquecimento. Aqui pedi a colaboração de dois deles, nomeadamente Igor José de Renó Machado, que escreveu uma apresentação muito pessoal, e José Guilherme Cantor Magnani, que argue o arguidor mais ao final do livro.
Por fim, digo e repito que arguições inauguram diálogos cujas consequências são imprevisíveis, podem ou não ser aproveitadas ao término de uma defesa, e o intento desse volume será reabrir algumas dessas discussões tendo como cavalo
a pessoa de um arguidor. Em relação aos arguidos, muitos aqui se tornaram amigos e/ou fraternos colegas e colaboradores de profissão, e agora também seguem no exercício da pequena arte acadêmica da retórica em bancas.
São Paulo, agosto de 2018
1 Chamaria de maneira mais cautelosa de ritualização acadêmica. Sobre definições e temas convergentes com a problemática dos rituais na história da Antropologia consultar o apanhado: A análise antropológica dos rituais
.
Peirano
, M. O dito e o feito: ensaios de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.
2
Mauss, M.
Esboço de uma teoria geral da magia. In:______. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
3 Id. ibid., p. 129.
Sobre artes esquecidas
Igor José de Renó Machado
As arguições de defesa (de mestrado, doutorado ou de monografias de graduação) são parte fundamental da produção do conhecimento em antropologia e muitas ciências, humanas ou exatas. Cada área de conhecimento estabelece, meio que informalmente, padrões de análise dos trabalhos, refletidos nos estilos de arguição. Quando se fala de arguições, não se fala da mesma coisa, há histórias de condensação de práticas e estilos em cada uma das áreas de conhecimento. De certa forma, é a arte das arguições uma parte fundamental da constituição das identidades científicas. São rituais modelados à feição dessas condensações de valores e expectativas em relação aos futuros profissionais. E sim, são rituais de passagem, pois as arguições produzem a mágica de transformar um neófito num mestre, num doutor, num agente efetivo e legítimo de uma comunidade de conhecimento.
E como ritual em sociedades estatais, é necessariamente referendado pelo estado na forma de reconhecimento de diplomas, de concessão de graus de escolaridade. Isso tudo faz da arguição um momento central na reprodução da estrutura da universidade: ela permite a emergência de novos profissionais e, portanto, a reprodução de si mesma ao longo do tempo. Embora central à própria existência da universidade, a arguição é um conhecimento em si exotérico: não se aprende a arguir, não há cursos de arguição, não há padronização dos processos de arguição. Não há formalização de qualquer ordem sobre a arguição.
Compare-se a arguição com outras formas de condensação de conhecimento legitimadas nas comunidades de conhecimento acadêmicas. O artigo, por exemplo, é um objeto absolutamente bem definido em termos de estrutura. Aprendemos a fazer artigos em aulas de métodos, com nossos orientadores, com nossos pares. Temos artigos corrigidos pelos nossos colegas (para quem apresentamos, ansiosos, versões primeiras), corrigidos pelos/as orientadores/as, escrutinados pelos pareceristas etc. Há uma conjugação de esforços para que o conhecimento na forma artigo
seja bem definido e compartilhado. O mesmo se pode dizer dos livros e seus capítulos, obviamente.
Os projetos são outro objeto de conhecimento fundamental a essas comunidades, as quais necessitam de instrumentos que possibilitem a divisão dos recursos reais efetivos e simbólicos distintivos para criar clivagens, hierarquias e estamentos. São os projetos parte fundamental nessa estruturação do campo acadêmico: é preciso um projeto para pedir a bolsa de produtividade CNPq, por exemplo, para solicitar recursos às agências de fomento, para concorrer às bolsas variadas que o sistema oferece. Sempre o primeiro objeto de conhecimento para iniciar esses processos de distinção é o projeto. Escrever projetos é uma arte importante para as comunidades de conhecimento acadêmicas: ele é um operador mágico da constituição de diferenças dentro das comunidades. Por isso, é parte efetiva dos processos de ensino acadêmicos, há disciplinas sobre método e escrita de projetos, há disciplinas inteiras de discussão de projetos dos alunos ingressantes em pós-graduação, cuja finalidade é justamente adequar os projetos ainda incipientes dos alunos aos moldes oficiais das agências de fomento, das avaliações competitivas por bolsas etc. Os projetos são instrumentos, objetos, artefatos de conhecimento com peso grande na vida acadêmica de qualquer professor universitário.
Assim, aprendemos a fazer artigos, capítulos de livros e projetos. Da mesma forma como aprendemos a fazer outros objetos-conhecimento fundamentais: as teses e dissertações. Essas são as formas mais densas de expressão do conhecimento. São essas peças que instituem a possibilidade de graus de conhecimento, por um lado, e são, por outro, o sustentáculo natural do conhecimento arquivado nas várias comunidades de conhecimento acadêmico. Produzimos teses. Produzimos dissertações. Elas provam ao mundo o desenvolvimento do conhecimento, elas são disponibilizadas gratuitamente em portais digitais, elas expressam o esforço dos programas de pós-graduação. Uma pós-graduação é, ao final das contas, o conjunto de dissertações e teses produzidas em seu seio.
Aprendemos a fazê-las nos mesmos cursos de métodos e na relação íntima com orientadores/as. Passamos muito tempo pensando em como apresentar esse objeto, como construí-lo, como deixá-lo vivo. Mas a tese e a dissertação em si não garantem o estatuto de mestre
e doutor
, esses só se obtêm com o ritual de defesa, permeado por esse outro objeto-conhecimento fugidio, escorregadio, tênue, esfumaçado, que é a arguição. Só após ser arguido e se defender é possível transformar os objetos-conhecimento tese e dissertação em títulos de distinção acadêmica. É um outro objeto-conhecimento o mediador dessa transição estatutária. Semelhante estruturalmente às escarnificações, rituais de provação, reclusão e ainda muitas outras formas em sociedades tribais, a defesa de tese e dissertação carrega o mesmo peso simbólico para as comunidades de conhecimento no Brasil. Ela muda a pessoa do arguido, muda seu estatuto perante a comunidade.
Como um objeto-conhecimento de transformação substantiva e simbólica, a arguição é ela própria um mistério quase insondável. Não há uma regra pré-fixada sobre sua estrutura. Não há uma expectativa sequer de seguir algum roteiro. Todas as formas que pode ter uma arguição são aprendidas apenas nos rituais em si. É apenas durante esses momentos específicos que temos contato com a arguição: assistimos alguém ser arguido. Somos arguidos. É, portanto, um conhecimento que se reproduz