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Engajamentos coletivos nas fronteiras do capitalismo
Engajamentos coletivos nas fronteiras do capitalismo
Engajamentos coletivos nas fronteiras do capitalismo
E-book399 páginas4 horas

Engajamentos coletivos nas fronteiras do capitalismo

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Sobre este e-book

Esta coletânea propõe pensar a etnografia como um engajamento coletivo que se conecta ativamente com experimentações que, expressas em lutas sociais, defendem a multiplicidade e coexistência de modos de vida e, assim, reagem aos efeitos do capitalismo. Alguns dos textos se engajam com as experimentações que resistem aos cercamentos no norte de Moçambique e de Minas Gerais, nos campos de Roraima e nos rios do Xingu. Ainda, outros fazem ver novas colaborações e alianças tecidas a partir da ocupação de ruínas capitalistas, no cerrado mineiro marcado pelo agronegócio, nas águas barradas do rio Iratapuru e nas terras dos quilombolas no Vale do Ribeira.
IdiomaPortuguês
EditoraEdUFSCar
Data de lançamento17 de ago. de 2022
ISBN9786586768732
Engajamentos coletivos nas fronteiras do capitalismo

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    Engajamentos coletivos nas fronteiras do capitalismo - Catarina Morawska

    Engajamentos coletivos nas fronteiras do capitalismo

    logo_ufscar_colorido

    EdUFSCar – Editora da Universidade Federal de São Carlos

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

    Editora da Universidade Federal de São Carlos

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    Instagram: @edufscar

    Engajamentos coletivos nas fronteiras do capitalismo

    Catarina Morawska

    organizadora

    Logotipo da Editora da Universidade Federal de São Carlos

    © 2021, dos autores

    Imagem da capa

    Adaptação da imagem de Harold Fisk, Cinturão dos meandros do rio Mississippi (1944), por Ion Fernandez de las Heras

    Projeto gráfico

    Vitor Massola Gonzales Lopes

    Preparação e revisão de texto

    Marcelo Dias Saes Peres

    Ana Paula Cavaguti

    Livia Damaceno

    Conferência de provas

    Maíra Vale

    Editoração eletrônica

    Alyson Tonioli Massoli

    Editoração eletrônica (eBook)

    Alyson Tonioli Massoli

    Coordenadoria de administração, finanças e contratos

    Fernanda do Nascimento

    Processo n. 2020/07751-5, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a visão da Fapesp.

    Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar

    E57e           Engajamentos coletivos nas fronteiras do capitalismo / organizadora: Catarina Morawska. -- Documento eletrônico. -- São Carlos: EdUFSCar, 2022.

    ePub: 9.7 MB.

    ISBN: 978-65-86768-73-2

    1. Antropologia social. 2. Antropologia da ciência e da tecnologia. 3. Antropologia do capitalismo. 4. Cosmopolíticas. I. Título.

    CDD – 306 (20a)

    CDU – 39

    Bibliotecário responsável: Ronildo Santos Prado – CRB/8 7325

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema de banco de dados sem permissão escrita do titular do direito autoral.

    Agradecimentos

    A capa do primeiro livro coletivo do Laboratório de Experimentações Etnográficas (LE-E) é criação de Ion Fernandez de las Heras, atualmente antropólogo na Universidad Complutense de Madrid e um dos pesquisadores mais ativos do LE-E nos seus primeiros anos, entre 2014 e 2017. Tendo por base o mapa do Rio Mississippi, publicado em 1944 pelo cartógrafo Harold Fisk, Ion reforça na imagem os traços de uma contínua transformação: a mudança do curso da água ao longo do tempo. Os meandros do rio registrados em mapas nos anos 1765, 1820, 1880 e 1944 associavam-se à ação humana dos colonizadores, com suas escavações, bloqueios, represas e sistemas de comportas. Mas a cada obstáculo, o rio buscava outros caminhos, impulsionado pelas chuvas e eventuais enchentes. Essa imagem de um movimento de curvas que desvia das réguas dos engenheiros, agrônomos e outros tecnólogos do desenvolvimento refere-se a muito do que este livro contém – a ideia de que nas fronteiras do capitalismo a destruição irremediavelmente abre novos caminhos de luta e outras possibilidades de vida.

    A imagem também retrata a constante transformação dentro do próprio LE-E, onde as reflexões desde sempre vêm sendo feitas de forma pouco dogmática, adaptadas às questões que emergem do engajamento, seja com teorias etnográficas das mais diversas, seja com as pessoas com quem dialogamos em campo, muitas das quais aparecem nas páginas a seguir. A elas agradecemos por nos inspirar a fazer dos experimentos etnográficos uma prática potente para a política da luta no mundo. As reflexões também vêm adquirindo novos contornos a partir das colaborações e diálogos com nossos pares antropólogos. Entre eles, agradecemos a Ana Claudia Marques, cujo trabalho é uma grande inspiração para o LE-E e que, para nossa alegria, gentilmente aceitou fazer a apresentação deste livro. A Jorge Mattar Villela, parceiro intelectual e coordenador do grupo mais próximo do LE-E, o Hybris. Aos pesquisadores de outras universidades que vieram aos Seminários do LE-E para debater nossos trabalhos, Mauro Almeida, Fernanda Peixoto, Valéria Macedo, Letícia Cesarino, Marko Monteiro, Diego Jair Vicentin, Rafael Alves, Deborah Bronz, Rosana Castro, Ana Flávia Bádue, Priscilla Vaz. A colegas que vêm estabelecendo um diálogo conosco, Iracema Dulley, Silvana Nascimento, Flávia Melo, Suzane Alencar Vieira, Fabiana Maizza, Lorena Avellar de Muniagurria, Natacha Leal, Marco Gavério, Yara de Cássia Alves, Geraldo Andrello, Antonádia Borges, Luiz Henrique de Toledo, Piero Leirner, Wagner Camargo, Gustavo Onto, Taniele Rui, Deborah Fromm, Gabriel Feltran, Omar Ribeiro Thomaz, Suely Kofes, Fabiana Bruno, Nashieli Loera, Daniela Manica, Soraya Fleischer, Guilherme Sá, Eliana Creado, Antonia Walford, Martin Fotta, Susana Viegas e Jessica Sklair.

    Aos integrantes do LE-E – para além dos que aqui estão nesta coletânea –, pelo diálogo, companheirismo e aprendizado conjunto ao longo desses anos: Ana Cecília Campos, Bruno Campos Cardoso, Ana Elisa Santiago, Carlos Paulino, André Guilherme Moreira, Tainá Souza Santos, Gabriel Henrique Lino de Almeida, Rebeca Hotops, Lucas Pereira de Melo, Barbara Gonçalves Moraes, Samuel Douglas Farias Costa, Fernando Lopes Mazzer, Jesser de Oliveira Ramos, Joaquim Pereira de Almeida Neto, Juliana Boldrin, Marina Evangelista Defalque, Rainer Miranda Brito, Renan Martins Pereira, Paula Cristina Corrêa Bologna, Filippo Yasson Ferreira Pugliesi, Guilherme Ubeda e Ion Fernandez de las Heras.

    Às amigas do imuê – Instituto Mulheres e Economia –, que vêm construindo com o LE-E projetos conjuntos que recusam a antropologia que frequentemente se aprende na academia, com suas violências, hierarquias e exclusões, e nos ajudam a reimaginá-la como engajamento coletivo. À Adla Viana Lima, Ana Cecília Campos, Bianca Moniche, Bruna Mendonça, Chirley Mendes, Cíntia Engel, Deisiane Barbosa, Gabriela Acerbi Pereira, Graciela Froehlich, Luísa Tui, Márcia Nóbrega, Mariana Lima, Marina Defalque, Vilênia Aguiar e, em especial, a Michele Wisdahl, que nos provocou a experimentar uma antropologia com afeto. A Elisângela Maranhão, pela parceria de uma vida toda. A Maíra Vale, pela revisão cuidadosa deste livro e pela inspiração que vem da delicadeza de sua escuta, sua escrita e seus sabores. Às nossas famílias, nosso chão em tempos de pandemia.

    A quase totalidade das pesquisas do LE-E foi financiada por agências como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Dos sete artigos apresentados na coletânea, três foram fruto de pesquisas financiadas pela Capes (Código de Financiamento 001) e quatro foram fruto de pesquisas financiadas pela Fapesp (Processo n. 2017/02557-3, Processo n. 2016/11081-0, Processo n. 2011/02654-2, Processo n. 2011/21513-0). Agradecemos também à Fapesp pelo apoio para a publicação deste livro pela EdUFSCar (Processo n. 2020/07751-5).

    No LE-E sempre dizemos que nossos textos não são a palavra final sobre nada, como parecem querer as grandes teorias. São composições analíticas que se pretendem provisórias, cheias de lacunas e sempre abertas a outras conexões. E são também composições que não se fazem como fruto de um labor estritamente individual. Neste livro, a introdução busca enfatizar o caráter coletivo de nossas reflexões por meio de um argumento costurado a muitas mãos. Finalizada em meio à pandemia da Covid-19, a introdução tornou para nós ainda mais evidente a importância de se trazer para a antropologia aquilo que aprendemos há tempos em campo: ninguém anda só. O desafio de uma reflexão coletiva é em si uma experimentação dentro do nosso campo disciplinar, uma maneira de tentar cada vez mais fazer da prática antropológica também um engajamento coletivo, uma prática de conhecimento que, como um processo de criação, articula-se com as experimentações daquelas e daqueles que forjam novas potências de agir, sentir, imaginar, pensar.

    Sumário

    Apresentação: Por uma antropologia atingida por projetos de existência

    Ana Claudia Marques

    Introdução: Antropologia e engajamentos nas fronteiras do capitalismo

    Catarina Morawska, Thais Mantovanelli, Magda Ribeiro, Vanessa Perin, Alessandra Regina dos Santos, Jacqueline Ferraz de Lima e Pedro Henrique Mourthé de Araújo Costa

    1. Nas texturas da terra: movimentos e práticas de conhecimento entre os quilombolas do médio vale do ribeira

    Alessandra Regina Santos

    2. Projeções sobre espaço, circulação e moradia no modo de vida dos castanheiros do Iratapuru, Amapá

    Magda Ribeiro

    3. Reunião enquanto artefato da política dos brancos

    Thais Mantovanelli

    4. A política dos documentos

    Vanessa Parreira Perin

    5. Sem papel não dá para fazer nada

    Pedro Henrique Mourthé de Araújo Costa

    6. Rizicultura corporativa e pecuária extensiva na Raposa Serra do Sol

    Catarina Morawska

    7. Abelha é criação sem cerca

    Jacqueline Ferraz de Lima

    Referências

    Documentos

    Sobre o/as autor/as

    Apresentação

    por uma antropologia atingida por projetos de existência

    Ana Claudia Marques

    Universidade de São Paulo

    Os artigos reunidos nesta coletânea se encaixam na linhagem das etnografias das populações atingidas por projetos de desenvolvimento. O volume reúne textos sobre grupos culturalmente muito distintos, de ribeirinhos, indígenas, quilombolas, camponeses, residentes em áreas rurais e periferias urbanas. Como antropólogos, seus autores não apenas se interessam em compreender os impactos desses projetos na vida coletiva, como também estão atentos aos modos como seus interlocutores elaboram e reagem a tais adventos. Ao mesmo tempo empenhados na investigação de práticas e conhecimentos tradicionais e sensíveis às causas e às lutas dessas pessoas junto a quem realizaram suas pesquisas de campo, eles desenvolvem uma antropologia que recusa a oposição entre academia e militância. Por todos esses aspectos, a publicação dessa obra merece louvor. Mas sua originalidade e ambição nos reservam maior razão para sua celebração.

    As pesquisadoras e pesquisadores do Laboratório de Experimentações Etnográficas (LE-E) desenvolvem metodologias etnográficas que se ajustam aos propósitos de descrever dispositivos, aparatos, saberes técnico-burocráticos, em suas incidências locais, seus projetos e redes de agentes. As situações que acompanham durante o trabalho de campo se enovelam em tramas urdidas em espaços e tempos vários e muitas vezes estranhos ao recorte empírico da pesquisa, e, no entanto, atuantes no presente etnográfico. Em paralelo, para que sejam compreendidas as transformações vivenciadas por aqueles sobre os quais incide esse enredo heteróclito, a investigação de suas práticas e conhecimentos costumeiros não se deve dar em separado das formas de enfrentamento empreendidas para lidar com o encontro adverso nas franjas do capitalismo. As diversidades dos modos de vida não se expressam menos nas lutas pela sua afirmação.

    Essa metodologia conduz a uma proliferação de camadas etnográficas que articulam estruturas e conjunturas locais e processos mais amplos e globais. Esse é o objetivo de uma antropologia que rejeita a redução de sua pertinência às esferas micro de vida social, mera ilustração ou reflexo de macrodeterminantes. Essa antropologia pretende estender o enfoque próprio da disciplina a toda sorte de fenômenos e processos, qualquer que seja seu alcance e sua escala, de modo a iluminar planos de composição, em geral obscurecidos e, assim, conferir-lhes uma inteligibilidade inusitada. Que não se confunda esse propósito com a intenção de fazer da totalidade objeto. A abordagem antropológica se dá em perspectiva, parcial em mais de um sentido. Perspectiva e parcial, mas não incompleta.

    Irrepreensível cientificamente, os objetivos da antropologia praticada nesta coletânea são também ousados, fundamentais e urgentes. Trata-se de tomar parte na luta pela perseveração e multiplicidade de modos de vida nas fronteiras solapadas do e pelo capitalismo. Essa intenção não se traduz adequadamente nos termos de indicadores de resultados e de impactos socioeconômicos, decerto aplicáveis. Tampouco na mediação de denúncias em esferas de participação menos acessíveis aos interlocutores do campo, na prestação de trabalhos técnicos do interesse da comunidade ou na transferência de tecnologias – sem prejuízo dessas formas atuais e importantes de contraprestação e colaboração das pesquisas antropológicas. A ideia é ir ainda mais longe e ficar ainda mais perto.

    A proposição declarada deste livro é fazer da etnografia uma prática de conhecimento e de luta, que só pode resultar de uma composição tão criativa quanto rigorosa de saberes antropológicos e nativos. Cada artigo que compõe esta obra elege aspectos e momentos em que uma comunidade, um povo ou segmento de uma população vê seu lugar invadido por agentes humanos e não humanos de uma ordem estranha e implacável. Para esses invasores, os modos de vida entretecidos nesses territórios através dos tempos, por vezes imemoriais, devem dar lugar a formas mais racionais e rentáveis de aproveitamento de recursos. Ao contrário deles, os habitantes desses territórios sabem-no desde sempre povoado de alteridades irredutíveis e não apropriáveis enquanto recurso. Seus modos de habitá-lo implicam respeito, composição e construção de alianças mais ou menos precárias com elas. Decerto essa expertise informa as respostas às novas presenças.

    Parte significativa do trabalho etnográfico reunido aqui consiste em descrever os termos pelos quais cada lado do embate travado traduz em seus termos a ontologia do outro, ponderada a diferença de motivações desse interesse mútuo e assinalada a formidável disparidade na correlação de forças. Nesse sentido, as traduções operadas nesse campo de batalha ontológica são fontes daquelas produzidas pelos pesquisadores. Outra parte diz respeito ao entendimento daquilo a que se prestam esses exercícios de interpretação. As assimetrias correspondem, aqui, a diferentes estratégias de luta e de níveis de aprendizado. Aos invasores basta deter os rudimentos do idioma local para persuadir o outro e a si mesmo de sua superioridade. Mas os antigos habitantes precisam atingir grau muito mais avançado de conhecimento não só da língua como também da linguagem estrangeira, de forma a apropriar-se delas para conter o avanço inimigo tomando de empréstimo suas próprias armas suas próprias armas. Mesmo reconhecendo o risco de sucumbir a elas, eles precisam aprender a manejá-las. Trata-se, como se vê, de um aprendizado bastante mais complexo.

    A despeito de inquestionáveis diferenças, o pensamento antropológico guarda considerável afinidade com esses modos de conhecimento nativos. De certa forma, e conforme a melhor tradição da disciplina, os autores desta obra se dispuseram a aprender sobre seus interlocutores nas cartilhas desenvolvidas por eles, cujos métodos compreendem seu entendimento tanto de si mesmos quanto dos outros, assim como seu ponto de vista da relação entre eles, inseparavelmente. Tais condições não se aplicariam à própria antropologia? Despojado da ilusão de tornar-se nativo, a afetação do antropólogo pelo outro prescinde de toda hierarquia entre saberes e presume levá-los a sério e às últimas consequências. Esse é o engajamento defendido neste livro, que torna a produção do conhecimento antropológico parte do aprendizado, das práticas e das lutas pelas (r)existências. Ao assumir e afirmar o caráter implicado do conhecimento, os engajamentos etnográficos dos pesquisadores aqui reunidos ocorrem em uma zona de intersecção de lógicas e agências distintas, divergentes, eventualmente irredutíveis, mas, ainda assim, como dizem eles, um ‘nós’ compósito e em luta.

    Introdução

    Introdução

    Antropologia e engajamentos nas fronteiras do capitalismo

    a experimentação etnográfica como aliança técnico-política

    Catarina Morawska

    Thais Mantovanelli

    Magda Ribeiro

    Vanessa Perin

    Alessandra Regina dos Santos

    Jacqueline Ferraz de Lima

    Pedro Henrique Mourthé de Araújo Costa

    Entre os esforços das pesquisadoras e dos pesquisadores do Laboratório de Experimentações Etnográficas (LE-E) em seus primeiros anos, entre 2013 e 2018, estava a tentativa de desenvolver trabalhos atentos ao debate contemporâneo sobre cultura de auditoria e documentos como artefatos etnográficos do conhecimento moderno. [1] Em nossos contextos de pesquisa, isso implicava considerar o modo como tais artefatos atravessavam a vida de indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pequenos agricultores e moradores de periferias urbanas com quem trabalhávamos, sobretudo quando se viam diante de projetos de desenvolvimento estatais e corporativos.

    Tratava-se de tema caro à literatura, que toma corpo desde o final da década de 1970, voltada particularmente às remoções forçadas de moradores de favelas, aos processos de expropriação e restrição territorial em fronteiras agrícolas e aos efeitos socioambientais da implementação de políticas energéticas, principalmente a construção de estradas e barragens em territórios indígenas, camponeses e ribeirinhos.[2] A partir da década de 2000, essa produção passa a incorporar problemáticas que envolvem os processos de licenciamento ambiental.[3]

    Esses estudos ora explicitavam os efeitos devastadores de grandes empreendimentos em corpos e territórios, ora revelavam como as pessoas resistiam ao aniquilamento decorrente de projetos desenvolvimentistas, que invariavelmente dependem de uma forma de imaginação estrangeira que Anna Tsing chamou de fronteiras do capitalismo.[4] A fronteira conjura uma regionalidade selvagem, um translocalismo autoconsciente, comprometido com a obliteração de lugares locais:

    Uma característica distintiva dessa regionalidade da fronteira é sua visão mágica; ela pede que seus participantes vejam uma paisagem que não existe, ao menos não ainda. Ela deve continuamente apagar os direitos dos antigos residentes para criar seus espaços vazios e selvagens, onde descobrir recursos, não roubá-los, torna-se possível. Para fazê-lo ela deve esconder as condições de sua própria produção.[5]

    É a partir de um ato de conjuração que emerge a figura de exploradores e pioneiros heroicos, que descobrem recursos em um espaço fantasiado como vazio até então. Com tal visão mágica, o que se mantém fora de vista são as muitas camadas de histórias locais e os agenciamentos que viabilizam esbulhos, invasões e genocídios, como é o caso das relações entre grandes corporações do agronegócio, elites burocráticas e militares, colonos, mineradores e madeireiros ilegais. Uma articulação da tríade identificada por Isabelle Stengers[6] como Estado, Ciência e Empresários, estes últimos marcados pela radical irresponsabilidade de transformar tudo e qualquer coisa em recurso, mesmo que sua busca por oportunidades de lucro implique uma ameaça a um futuro comum, não bárbaro.

    Enquanto um laboratório de experimentações etnográficas, desejávamos ir além da denúncia a empreendimentos estatal-corporativos que forjam incessantemente tais fronteiras do capitalismo. Limitar-se à crítica, lembra-nos Stengers, poderia levar à busca de um passado idílico, a sombra do que tinha tido importância, tinha feito viver e pensar,[7] e assim renunciar à produção de novas questões e novos possíveis a partir de um engajamento experimental. Para a autora, aqueles que se restringem à crítica portam-se como herdeiros-beneficiários das Luzes e correm, assim, o risco de se transformar em pedagogos, os que devem proteger os outros, aqueles que sabem, enquanto os outros acreditam.[8] A pergunta que o LE-E lançava à sua própria prática antropológica ressoava um dos desafios colocados pela filósofa belga a cientistas e pesquisadores em geral: como articular-se num processo de criação com as experimentações daquelas e daqueles que já estão engajados em criar uma vida que explora conexões com novas potências de agir, sentir, imaginar, pensar.[9] Dito de outro modo: como transformar a etnografia em uma experimentação que se conecta ativamente com as experimentações em curso no mundo? Essas que, expressas em lutas sociais que defendem a multiplicidade e a coexistência de modos de vida, reagem aos efeitos planetários do capitalismo, nomeados por Stengers como uma implacável e inevitável intrusão de Gaia.

    Tomar a experimentação etnográfica como um engajamento com outras experimentações em curso no mundo demandava respostas procedimentais, em geral tateantes e errantes. Diante disso, nosso foco inicial foi aprofundar discussões sobre a escrita etnográfica, tal como proposto por Marilyn Strathern,[10] e identificar trabalhos que tornavam explícitas as ferramentas conceituais mobilizadas em analogias entre a antropologia e outras práticas de conhecimento.[11] Tratava-se de explorar as possibilidades abertas por uma abordagem procedimental que opera por analogias, criando formas singulares a cada descrição etnográfica a depender do que se coloca em relação, isto é, do engajamento que emerge caso a caso. Se cada uma das experimentações no mundo busca reagir a problemas específicos levantando novas questões e vislumbrando novas possibilidades de vida, as experimentações etnográficas correspondentes devem fazer jus a esses esforços particulares e se conectar a eles, agenciando para isso autores e conceitos nos termos do engajamento vivenciado em campo. A pergunta primeira que nos servia de guia, portanto, não era a partir de qual autor ou modelo deveríamos falar sobre o mundo, mas como, em que termos, agenciando quais conceitos, nossos textos etnográficos podem estabelecer conexões parciais e provisórias[12] com os engajamentos coletivos daquelas e daqueles que reagem aos avanços das fronteiras do capitalismo.

    Tratava-se, portanto, de fazer coro a uma tendência crescente na antropologia, largamente inspirada por uma discussão filosófica sobre a ecologia das práticas na paisagem discordante das ciências modernas,[13] que passa a considerar central o reconhecimento da coexistência da prática antropológica com uma miríade de outras práticas de conhecimento. Como Stengers esclarece:

    […] o problema não é o dos saberes articulados, mas da pretensão que redobra esses saberes: […] [a pretensão daqueles que se julgam] capazes de conhecer de um modo independente de sua situação ‘ecológica’, independente do que o seu oikos [seu hábitat] lhes obriga a levar em conta, ou, ao contrário, lhes permite ignorar.[14]

    Considerar como ponto de partida que a antropologia atua em meio a uma ecologia das práticas permite enfrentar o que a filósofa chama de a maldição da tolerância, que confere ao cientista o direito de perguntar e descrever o outro por meio de categorizações, classificações e generalizações, colocando-o a serviço da Ciência.[15] Contra a maldição da tolerância é preciso tornar constantemente visível o problema do privilégio de um lugar neutro e o oikos a partir do qual pesquisadores produzem conhecimento, algo que vem sendo discutido na antropologia em termos de objetividade relativa ou relacional e saberes corporificados e localizados.[16]

    Do reconhecimento de uma ecologia das práticas emerge uma questão cosmopolítica inescapável, expressa pela máxima calculemus de Leibniz: a criação de um nós que assume a radical heterogeneidade que precede a sua criação e que não partilha de qualquer medida ou acordo preexistente.[17] No parlamento cosmopolítico, é como praticantes, colegas que também dominam práticas de conhecimento das mais variadas, que novas questões e problemas comuns podem ser formulados, ainda que de forma hesitante. Se transposta para a antropologia, essa ideia implica considerar que, a cada interação em campo, potencialmente pode emergir um nós que não precede a relação, que não partilha de medida ou acordo preexistentes, mas que cria obrigações e restrições mútuas. E esse nós emergente importa não apenas no sentido das recorrentes discussões sobre a interação com os chamados nativos em campo – as quais frequentemente carregam a sombra da maldição da tolerância –, mas sobretudo quanto a seus efeitos na etnografia como prática de conhecimento. Para nós do LE-E, portanto, essa discussão na filosofia da ciência reverbera procedimentalmente: o reconhecimento do engajamento da etnógrafa e do etnógrafo com outras práticas de conhecimento produz efeitos sobre a sua própria prática.

    É importante insistir nesse ponto para esclarecer de que maneira entendemos a transposição da discussão filosófica sobre cosmopolítica para a antropologia. Stengers explicitamente afirma que a cosmopolítica é uma questão especulativa que, para os filósofos, prescinde de interação. Isto é, no pensamento especulativo, há um descolamento, ainda que não uma indiferença, aos calculs particulares que se efetivam na história:

    Como o matemático ‘esquece’ o triângulo material, ele [o filósofo especulativo] deve esquecer as línguas particulares ou, mais precisamente, os privilégios particulares que essas línguas conferem às suas razões. É por isso que o pensamento especulativo está presente no Parlamento das coisas, mas presente sem interação. Pode ser comparado à ‘alma’ unida ao corpo cosmopolítico por um vinculum leibniziano, porque deve fabricar os conceitos que atualizam o que, a cada época, realiza-se no conjunto díspar dos Calculemus dos quais somos capazes. Ele sozinho pode dizer minha época.[18]

    Ao contrário do filósofo especulativo atento ao conjunto dos Calculemos que potencialmente podem ser atualizados numa época, e portanto descolado – ainda que não indiferente – a calculs particulares, a etnógrafa ou o etnógrafo que se dispõe a levar adiante a proposição cosmopolítica se abre a uma experimentação calcada na interação de sua prática com outras a partir de obrigações e restrições mútuas. Ela, portanto, nunca está descolada de calculs particulares, daí a ênfase ao longo deste texto na ideia de interação, sobretudo na de engajamento, que se torna coletivo na medida em que um nós provisório toma forma. Parece-nos, assim, que a principal contribuição da questão especulativa da cosmopolítica para a antropologia não é no sentido de estabelecer um problema

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