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Simplesmente o acaso
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Simplesmente o acaso
E-book630 páginas8 horas

Simplesmente o acaso

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Sobre este e-book

A vida é imprevisível e o amor é muito mais.Assim, com esses ingredientes que não se podem controlar, fez-se a lenda e se escreveu a história em que dois personagens se encontram ao redor de outros e vivem o que o acaso tornou real.Inquestionavelmente, este é o romance do ano. Ele é um retrato convincente, porque é impossível resistir ao fascínio de homens e mulheres tão reais e de cenários tão mágicos.O autor domina, de forma magistral, esse contar ao biografar cada um dos seus personagens, fazendo-o com peso, fascínio e, muitas vezes, por obediência, porque é por eles regido ao longo deste denso romance.“Simplesmente o Acaso” é um livro magnífico, que prende o leitor em suas centenas de páginas ao narrar as grandes aventuras da qual passaremos a fazer parte.Ler esta história é mergulhar no mágico universo dos contos e mitos do Egito, nas vidas dos deuses, dos faraós e, principalmente, dos homens comuns.
IdiomaPortuguês
EditoraLitteris
Data de lançamento29 de dez. de 2022
ISBN9786555731583
Simplesmente o acaso
Autor

Heverson Costa e Souza

Heverson Souza e Costa nasceu numa pequena cidade do interior de Minas Gerais, chamada Tupaciguara, mas desde cedo descobriu nas viagens o seu grande amor. Formado em Direito, após anos no exercício da profissão, passou a se dedicar a outra grande paixão: o ensino de idiomas. Conciliando o estudo das línguas estrangeiras com a vontade de conhecer e explorar o mundo, o autor já visitou 32 países, assimilando-lhes a cultura e fazendo novas amizades, criando vínculos que se estendem por toda parte. A partir da experiência conquistada nessas aventuras, deu asas à sua imaginação colocando no papel histórias criadas a partir de fatos verídicos e ideias surgidas da própria inspiração. O autor já participou das antologias de conto “Só queria te dizer” e “Não saia agora”, além da antologia de poemas “Enquanto espero”, publicadas, respectivamente, pela Editora Litteris e pela Editora Courier Brasil. “Antes que o sol se ponha” é o seu primeiro trabalho solo.

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    Simplesmente o acaso - Heverson Costa e Souza

    PRÓLOGO

    SIMPLESMENTE O ACASO...

    Raios cruzavam o horizonte enegrecido e carregado por pesadas nuvens e eram a única luz naquele cenário de trevas e escuridão. As janelas do quarto estavam abertas e se debatiam freneticamente, enquanto as cortinas balançavam de modo alucinado, como se buscassem fugir daquele lugar, e grossos pingos da tempestade invadiam o ambiente, inundando todo chão.

    Não havia luz ali dentro e o pouco de vida que restava se esvaía aos poucos. Seu corpo estendido sobre a cama parecia adormecido, mas lentamente desprendia-se dos fios da vida, sendo engolido pela escuridão eterna da morte.

    Do lado oposto, entre as sombras que se avolumavam, duas formas etéreas assistiam a tudo, impotentes para fazer qualquer coisa. Uma delas, a menor, o pálido fantasma de uma criança entre sete e oito anos, estendia seus bracinhos como se pudesse alcançar o corpo estirado sobre a cama cuja vida se apagava devagar.

    – Não adianta, já é tarde demais... – O outro fantasma, uma bela mulher de olhos e cabelos negros, abraçava o menor, tentando consolá-lo.

    – Mas se ela partir agora, desapareceremos para sempre!

    Não havia o que lhe dizer, e mesmo naquele limbo em que viviam, a dor e a tristeza daquela verdade eram fortes demais para enfrentá-los. Percebendo que realmente era tarde demais, o pequeno fantasma abraçou o outro e escondeu o rosto contra seu peito.

    – Sinto muito...

    Raios continuavam a cortar a noite, e a luz que se projetava pela janela aberta deu lugar a uma sombra que se espalhava pelo chão molhado, cobrindo tudo de escuridão. Seria o anjo da morte chegando? Abraçaram-se com mais força, pois não tinham certeza se haveria dor, de toda forma, logo tudo desapareceria e seriam engolidos pela escuridão e pelas trevas eternas.

    Entretanto, a misteriosa sombra que invadiu o ambiente assumiu a forma de um gigantesco corvo e em seguida de uma maligna mulher, que soltou uma gargalhada estridente e profana que atravessou a noite.

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    PARTE 1

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    1. MANAZIL

    Na cidade, havia um velho ditado: caso o mundo acabasse, restariam apenas três coisas, as pirâmides, as baratas e o velho prédio da família Z. Z porque todos os nomes daquela família começavam com essa letra, desde o mais remoto antepassado até os sete irmãos que compunham a nova geração, ou melhor, cinco, porque a bela Zuma havia morrido e desde que Zoroastro partira para o Egito, haviam perdido contato com ele.

    Mas ali estavam os outros cinco membros daquela estranha família: Zica, Zarina, Zyon, Zana e Zelda, essa última considerada a chefe do clã e quem habitava a cobertura do antigo e imponente prédio que se destacava entre novas e modernas construções que se espalhavam ao seu redor no centro da cidade.

    Porém, nada era capaz de tirá-lo do seu ponto fixo. Inúmeros empresários e construtoras já haviam tentado comprar o imóvel e o terreno, porém eram praticamente enxotados pela líder da família, que jamais consideraria aquela hipótese. Por tudo isso, ela assumira na cidade o título de megera oficial e dez entre dez pessoas detestavam estar em sua presença. Além disso, corria na boca pequena o fuxico de que o imóvel era amaldiçoado e nunca alguém seria capaz de modificá-lo. O lugar carregava as maldições e pragas dos seus ancestrais.

    Sabia-se que havia sido construído no início do século XX, pelos antepassados da exótica família que havia chegado do Egito, e fora por muitos anos o maior prédio da cidade, o primeiro arranha-céu, considerando-se os padrões daquela época. De toda forma, o tempo, com sua imperdoável passagem, mudou a paisagem ao redor da inovadora construção e o que outrora fora o esplendor da modernidade e da riqueza de uma família abastada deu lugar a um edifício arcaico e clássico, perdido entre gigantes de aço e de vidro que pareciam querer engoli-lo.

    No decorrer de décadas, o lugar foi ocupado apenas pela tradicional e fechada família, que se distribuía entre os sete andares da construção. Geração após geração, sucedendo-se em cada andar do prédio, até chegar aos sete irmãos que ocupavam os sete andares. E tudo indicava que a saga daquela família terminaria ali, já que nenhum deles tinha filhos. A única que daria um herdeiro à família morrera enigmaticamente na gravidez, deixando uma série de especulações, bem como o segundo andar desocupado. Logo em seguida, o quarto andar também se desocupou com a partida sem volta de mais um irmão.

    Assim, dos sete andares, via-se luz em apenas cinco deles, embora muitos afirmassem ver luzes no segundo andar à noite, principalmente no dia do aniversário de morte de sua antiga moradora. Verdade ou não, falar sobre aquela família era um passatempo que também atravessara épocas e, embora a cidade tivesse crescido num ritmo vertiginoso, os mais antigos transmitiam aos mais jovens suas memórias, mantendo aquelas lendas eternas.

    Nathalia crescera ouvindo as assustadoras histórias contadas pelo avô, mas, ao contrário dos primos e dos irmãos, que se sentiam amedrontados por toda aquela fantasia de fantasmas e mistérios, ela sentia-se fascinada por tudo e seus olhos brilhavam diante das narrativas. Quando pequena, pedia para os pais a levarem até a rua onde estava o velho imóvel e ficava a observá-lo, absorvida pelas velhas paredes e dando vida às histórias que ouvira.

    Seu querido nonno havia partido para a eternidade, mas todos aqueles contos permaneciam vivos na sua memória e, já adulta, ela caminhava até as imediações do velho prédio para continuar a olhá-lo e imaginar desfechos para as narrativas que seu avô não tivera tempo de completar.

    Além disso, enquanto todos na cidade maldiziam a reservada família, Nathalia nutria uma sincera admiração, embora nunca houvesse tido a oportunidade de estabelecer contato com nenhum deles. Achava maravilhoso o fato de terem sido capazes de manter uma unidade familiar tão sólida que atravessara gerações vivendo no mesmo prédio, fazendo-a se lembrar de quando sua família também se reunia na casa dos avós nos feriados e jantares de domingo. Porém, eram apenas lembranças de um tempo passado que lhe causava muita saudade e nostalgia, já que todos foram aos poucos se afastando e se tornando atarefados demais para terem tempo de se ver e estar juntos, e assim os dias deram lugar a semanas, que se converteram em meses e, logo, em anos. Só lhe restavam as doces memórias de tempos passados que terminaram de forma trágica...

    Nathalia tentou afastar aquelas lembranças que poderiam trazer à tona antigas cicatrizes e, desviando a atenção, recordou-se de uma estatística que havia lido e que mostrava que o ser humano estava cada vez mais solitário, havendo, ao longo das décadas, cada vez menos seres humanos morando próximo uns dos outros em áreas urbanas.

    A antiga construção de tom acinzentado era uma sólida edificação de estilo clássico, na qual o hall de entrada ligava-se à calçada por uma imponente escadaria de mármore negro e o interior do edifício separava-se do mundo externo por uma pesada porta de ferro oxidado, através da qual poucos tiveram o privilégio de atravessar ao longo das décadas.

    Ninguém sabia muito a respeito dos cinco irmãos remanescentes que viviam naquele prédio. Mantinham-se com a fortuna construída pelos antepassados, deixada como herança e que era pessoalmente administrada pela chefe do clã, Zelda. Fora isso, Zyon e Zana possuíam uma excêntrica loja de antiguidades no bairro antigo da cidade, e pouco se sabia quanto a Zarina e Zica, que raramente eram vistas e diziam as más línguas que a última não era mentalmente sã. De toda forma, eram pessoas reclusas do convívio social e que despertavam a curiosidade alheia tanto quanto falatórios e fofocas sobre eles, o que invariavelmente lhes parecia indiferente.

    Era uma manhã de domingo quando Nathalia cruzou a rua observando mais uma vez o fascinante imóvel, sem imaginar o que ocorria no seu interior. Lá dentro, na ampla sala do sétimo andar, os irmãos se reuniam atendendo ao pedido, que mais era uma ordem, de Zelda.

    Não havia dúvida que aquele era o maior de todos os apartamentos. Quando construído, fora escolhido como a residência do patriarca da família e ao longo de gerações fora ocupado por todos que exerceram essa posição de líder do clã, até chegar a Zelda, a primeira matriarca ao longo de décadas a desafiar a supremacia masculina. Zyon era frágil demais para ocupar esse posto, enquanto Zoroastro aparentemente deixava-se corromper por suas aventuras e instabilidades. Desde o início seu pai vira nela a força necessária para substituí-lo.

    Ela era prática e objetiva, talvez por isso a magia fluísse mais facilmente por intermédio dela, mas, ao contrário do pai, ela era má, essencialmente má. E não hesitava em utilizar seu conhecimento das artes secretas em benefício próprio, mesmo que para isso tivesse que machucar ou até mesmo matar pessoas.

    Porém, por mais forte que esses poderes ocultos fossem, havia forças que eram ainda mais poderosas do que eles, e o dinheiro era uma delas. Mesmo corrompendo negócios a seu favor, Zelda não fora capaz de impedir que a família fosse atingida pela crise econômica que corroía o país, e se tudo continuasse como estava, em pouco tempo teriam que vender o maior patrimônio de todos: o antigo edifício.

    Caso isso ocorresse, representaria não apenas a ruína econômica da família, mas também o fim de todos os seus poderes, pois a base de toda a magia egípcia transmitida de geração em geração fora assentada nas ruínas daquele prédio. Desfazer-se dele significava tornar-se uma simples mortal. Uma simples e falida mortal.

    Alegando esse motivo, Zelda reuniu os quatro irmãos remanescentes naquela manhã. A decisão final seria invariavelmente sua, entretanto pregava a tradição que a palavra só teria força se o elo entre eles fosse mantido e a decisão, tomada em conjunto.

    A sala possuía um estilo clássico, com um grande sofá acompanhado por poltronas de estilo vitoriano, todos de couro negro. Acima deles, um luxuoso lustre de cristal iluminava com imponência o ambiente, enquanto abaixo um espesso tapete de pele recobria o assoalho. As paredes eram pintadas num tom de verde-musgo e emolduradas por arabescos que compunham um mosaico de formas geométricas por toda sua extensão.

    Zica foi a primeira a chegar e sentar-se em silêncio numa das poltronas individuais. Como de costume, seu olhar parecia perdido e suas feições não demonstravam simpatia e muito menos desejo de estar ali; sentia-se como se tivesse sido obrigada a deixar seu impenetrável casulo para estar ali na companhia dos irmãos.

    Logo em seguida, foi a vez de Zarina entrar no ambiente, inundando-o com sua exótica fragrância de sândalo e o farfalhar de sua saia indiana multicolorida que, aliada aos longos cabelos cacheados e colares, pulseiras e anéis que portava, compunham o visual de uma hippie nova era vinda diretamente do início da década de 1990.

    Sentaram-se em lados opostos e Zarina cumprimentou a irmã, que simplesmente a ignorou, talvez por estar alheia à realidade circundante ou por considerar irrelevante aquele gesto de atenção. Alguns minutos depois, Zana e Zyon chegaram juntos, como era de praxe, ocupando o sofá central.

    Iniciaram um diálogo com Zarina, conversando sobre amenidades, enquanto Zica permanecia imparcial a todo o assunto, ignorando-o por completo. Zelda sempre seria a última a chegar, e a inevitável espera por ela fazia parte do protocolo dos encontros familiares.

    O ambiente não possuía uma energia acolhedora, e no íntimo os quatro irmãos desejavam sair daquele lugar, voltando para a rotina dos seus dias, mas a interminável espera encerrou-se após um instante, quando o sombrio gato negro de Zelda entrou na sala, anunciando a aproximação de sua dona.

    Para Zelda aquela era Bastet, em homenagem à Deusa Gato egípcia, mas para os irmãos o gato era conhecido como Caolho, porque era cego de um olho, e eles nutriam sincera aversão pelo animal, que parecia detestar todos, exceto sua dona, na qual se esfregava e ronronava em êxtase.

    Ignorando-os, o animal caminhou imponente até a cadeira de espaldar dourado que se encontrava diante dos assentos e de costas para as vidraças e esparramou-se aos pés do móvel à espera de sua ocupante. Logo em seguida, ela entrou na ampla sala, sempre ereta e com ares de superioridade, sapatos de salto alto e bico fino, impecavelmente lustrados e negros, bem como seu tailleur de corte reto e milimetricamente ajustado ao seu corpo. O cabelo fora esculpido num corte Chanel perfeito e no pescoço estava a brilhante corrente de ouro com o grande pingente da cruz Ankh, destacando-se como uma estrela incandescente.

    Em seus lábios, um sorriso simétrico, realçado pelos lábios vermelhos, poderia facilmente ser considerado como simpatia ou afeto, mas quem a conhecia tão bem quanto os irmãos sabia tratar-se de um mero disfarce para ocultar intenções ou assuntos ásperos de se discutir. Zelda poderia ter sido uma típica rainha sádica, que se banqueteava com seus súditos antes de executá-los calculadamente.

    Aproximou-se da sua cadeira e sentou-se, enquanto Caolho levantava-se ronronando para esfregar-se entre suas pernas. Sustentando o sorriso, ela olhou para cada um antes de começar a falar. Zarina, como de costume, encolheu-se na poltrona diante do seu olhar.

    – Sinto muito por tê-los convocado para essa reunião num domingo de manhã... – Todos sabiam que a elegância contida naquele pedido de desculpas era premeditada. – Mas nossa situação requer uma decisão imediata! – Foi incisiva na última frase.

    Todos permaneceram em silêncio, aguardando a próxima. Pareciam prender a respiração à espera do que seria dito. Propositalmente, ela permaneceu calada por algum tempo, enquanto Caolho aproximava-se da sua mão em busca de sua carícia. Aos poucos, o lânguido sorriso abandonou seus lábios, dando lugar a uma expressão séria que fazia os outros tremerem ante seu olhar taciturno. Aquela era a verdadeira Zelda.

    – Por gerações, nossa família viveu nesse imóvel construído por nossos antepassados e que é a base do nosso poder. Além disso, a fortuna deixada por eles, e transmitida ao longo das gerações, manteve nossos estilos de vida, privando-nos do trabalho extenuante.

    Na verdade, para eles, qualquer forma de trabalho que demandasse o esforço de algumas horas seria extenuante. Com exceção de Zyon e Zana, que mantinham as lojas de antiguidades e a administravam como bem entendiam, os demais não possuíam atividades remuneradas, vivendo dos recursos financeiros disponibilizados pela família. Zelda era a gestora de tudo e dispunha de uma ampla equipe de contadores e advogados para gerir os bens, entregando-lhes periodicamente o resultado.

    – Entretanto, não tenho boas notícias a respeito dos nossos recursos financeiros... – Essa afirmação pegou a todos de surpresa, fazendo com que se remexessem na poltrona. – Nossos contadores e advogados me notificaram recentemente a respeito de uma redução da nossa fortuna.

    – O que quer dizer com isso?

    Zelda olhou para Zana como se encarasse um ser desprovido de inteligência e fagulhas de ódio passaram por um momento pelo seu olhar. Porém, quando respondeu, já havia retomado completamente o controle e nada transpareceu em sua voz.

    – Como tudo nesse mundo, a fortuna acumulada pelos nossos antepassados está se esgotando, e caso não busquemos novos recursos, teremos que modificar nosso padrão de vida... – Ela fez uma pequena pausa, aumentando o suspense. – O que pode incluir a venda do nosso prédio.

    Murmúrios de reprovação invadiram a sala. Aquilo seria inconcebível.

    – Mas e todas as ações investidas? E as outras propriedades em nome da família? – Foi a vez de Zyon expressar sua reprovação. Ao respondê-lo, Zelda não conseguiu manter o mesmo tom paciente.

    – Meu caro, é de conhecimento público e notório a crise econômica que nosso país está atravessando, o que tem afetado todo o mercado de valores e investimentos. Houve uma queda brusca nos nossos créditos investidos e, em contrapartida, os gastos permaneceram os mesmos.

    Olhou acusadoramente para cada um; sabia dos seus vícios secretos e quanto despendiam nessas aventuras.

    – Se nosso ativo continuar no atual declínio, em breve nosso passivo será maior e seremos obrigados a nos desfazer de algumas propriedades.

    – Mas há vários bens que podemos vender... – hesitando, Zana retomou a palavra. – Não há necessidade de nos desfazermos de nosso prédio.

    – Caríssima, há forças mais fortes do que nossa magia. A ambição é uma delas... Um dos nossos advogados de confiança me alertou da existência de uma poderosa empresa que já tentou comprar nosso prédio para a construção de um shopping. Eles manipularão a justiça e tudo que for necessário para conseguir a desapropriação, caso não saldemos nossas dívidas mais altas.

    Todos cerraram os punhos, sentindo o ódio crescer diante daquelas palavras. Estavam visceralmente conectados àquele lugar, tentar usurpar-lhes aquele bem era uma agressão pessoal a cada um deles.

    – Enfim, não nos resta saída a não ser a redução dos nossos gastos e a busca por novas fontes de renda.

    Zarina, que estava calada até então, remexeu-se na cadeira e, para surpresa de todos, deu sua opinião.

    – Podíamos alugar os apartamentos vazios... – A ideia sugerida surpreendeu a todos.

    Todos permaneceram em silêncio por uma fração de tempo sem saber o que dizer a respeito daquela ideia. Ao longo dos anos, poucos convidados tiveram acesso ao interior dos aposentos da família e ninguém, a não ser aqueles que descendiam diretamente deles, havia vivido dentro daquelas paredes.

    – Isso seria possível? – Zana foi a primeira a se manifestar. – O fato de ter um estranho aqui dentro não afetaria nossos poderes?

    Todos olharam para Zelda na expectativa de uma resposta. Por sua vez, ela parecia estática, olhando o vazio como se refletisse sobre a proposta.

    – Não há nada que mencione o fato de um estranho à nossa raça viver aqui. Embora isso nunca tenha acontecido, não acredito que haja algum empecilho.

    – Podemos invocar nossos ancestrais e perguntar-lhes...

    – Há um problema... – Todos voltaram a atenção para Zarina. – O espírito de Zuma ainda está aqui.

    Prenderam a respiração e Caolho pôs-se em pé, soltando um ganido e ficando todo arrepiado. Entre todos os irmãos, Zarina era aquela que recebera os dons de Anúbis e se comunicava com os mortos. Entretanto, a menção àquele fato não agradava Zelda, pois, se o espírito de Zuma permanecesse naquele plano, ele poderia contar a verdade sobre sua morte.

    – Então está na hora de ela ir embora! – A observação de Zelda foi fria e precisa como uma lâmina cortante. Em seguida, levantou-se, dando por encerrada a reunião. – Vou verificar a ideia e, caso não haja restrições, alugaremos os dois apartamentos!

    ***

    O pequeno Lucca retornou espevitado para o apartamento que, ao que parecia, permanecia deserto desde a morte de sua antiga ocupante. Zuma tentava a todo custo acalmá-lo, enquanto ele caminhava inquieto pelo quarto. Inevitavelmente, imaginava a bagunça que ele causaria se estivesse vivo e não fosse um mero fantasma mirim. Era inquieto como todas as crianças vivas que teriam sua idade, embora o ciclo de sua verdadeira existência fosse um mistério.

    – Mas como? – Seus pezinhos batiam teimosamente no chão de madeira, como se pudessem provocar algum som, mas o silêncio profundo permanecia intacto, envolvendo tudo naquele aposento abandonado. – Aquela bruxa maldita sabe das nossas intenções! Ela também está prevendo e anunciando a chegada dos mortais! Como ela foi capaz?

    Desde que voltaram ao mundo material, o espírito de Zuma estava preso àquele prédio, não podendo sair dali para nenhuma outra parte até que alcançasse a libertação. Tinham uma importante missão a cumprir, cujo êxito seria essencial para o futuro de toda a sua família e, talvez, de toda a humanidade. Só então, quando cumprido seu destino, poderia descansar em paz.

    – Os outros sabem da verdade, mas eles precisam fingir ignorância...

    Ao contrário de Zuma, o pequeno Lucca era capaz de transitar entre as realidades e comunicar-se por meio dos sonhos, embora esse fosse um caminho perigoso. Ao atravessar as barreiras que separavam o mundo físico do mundo idílico, havia uma série de riscos: poderia haver outros seres etéreos que se aproveitariam para aprisioná-lo ou, ao invadir o sonho de alguma pessoa, esta poderia acordar, deixando-o aprisionado para sempre no mundo da sua imaginação, o que, dependendo da mente, não seria nada agradável. Porém, mesmo sendo o espectro de um garotinho, Lucca era mais esperto que muitos poltergeists velhos.

    Cabia a ele, naquele momento, transitar entre realidades paralelas, pois o destino apenas se cumpriria se as antigas portas da morada da família Z se abrissem para os novos tempos, quebrando a maldição que agia à espreita e os libertando do julgo maléfico que pairava sobre todos. Assim, o destino cumpriria seu papel, trazendo até ali aqueles que seriam capazes de dar a libertação para as suas almas e afastando definitivamente o grande corvo das trevas, que em silêncio abria espaço para a chegada do arauto da destruição.

    Algumas semanas depois...

    Nathalia subiu os degraus de mármore que levavam até a pesada porta de entrada, emoldurada por um arco de granito negro, no ápice do qual se viam hieróglifos egípcios gravados e uma imponente cruz Ankh. Poderia parecer assustador, mas para ela parecia fascinante. Havia dois maciços arcos de cobre na porta larga e pesada e, na lateral, uma elegante campainha, a qual apertou, entusisasmada para ter acesso àquele universo que fizera parte da sua infância. Enquanto isso, alguns metros acima, duas formas etéreas acompanhavam ansiosas sua aproximação.

    – Ela veio! Ela vai entrar! – O pequeno Lucca dava saltinhos de alegria como uma criança mortal faria.

    – Sim! Ela está aqui! – Por sua vez, o fantasma da mulher sorria de contentamento como poucas vezes fizera desde que assumira aquele estado. Se tudo corresse como esperado, a maldição seria quebrada e ela estaria livre para seguir rumo à eternidade, enquanto o pequeno teria a chance de viver naquele mundo.

    Ninguém parecia atender ao chamado, e Nathalia já se preparava para tocar mais uma vez quando a porta foi enfim aberta. À sua frente estava uma mulher baixa, de cabelos cacheados, óculos de aros grossos e usando um vestido indiano, porém o que realmente chamou-lhe a atenção foi o cheiro de lavanda que ela parecia exalar. Ao vê-la, a mulher a encarou com certa restrição, parecendo estar desconfiada. Nathalia abriu um sorriso, apresentando-se.

    – Bom dia! Sou Nathalia. Vim pelo anúncio.

    – Sim. – A resposta foi curta e seca. Em seguida, a mulher afastou-se, dando-lhe passagem.

    O coração de Nathalia batia acelerado. No seu íntimo, não acreditava que entraria naquele lugar que sempre fizera parte dos seus sonhos e que em breve poderia ser seu lar. À sua frente havia um amplo corredor no qual se estendia uma grossa e antiga tapeçaria em tons vermelhos, alguns vasos dispostos nas laterais e, ao final do ambiente, uma imponente escadaria, sendo que ao seu lado ficava um elegante e antigo elevador. O espaço era onírico e parecia ter sido tirado de algum filme de época.

    – Me acompanhe, por favor. – A porta frontal foi fechada, mas a luz no interior foi mantida pelas gigantescas vidraças em estilo vitoriano que ficavam nas laterais das paredes, duas do lado esquerdo e duas do lado direito. Não havia dúvidas quanto às dimensões e à imponência daquela construção.

    Caminharam até o elevador, e a mulher abriu a porta para que ela entrasse. Estava tão empolgada com toda aquela situação que sequer se dera conta de que a outra não havia se apresentado, então Nathalia ainda não sabia seu nome. Preferiu não perguntar nada. A expressão da mulher não demonstrava interesse em iniciar uma conversa. Esperava que a próxima pessoa com quem fosse fazer contato fosse mais receptiva.

    À medida que o elevador subia, tinha um vislumbre dos halls de entrada de cada andar. Era muito rápido, mas conseguia notar rapidamente alguns detalhes: estátuas e vasos no primeiro piso, enquanto o segundo permanecia vazio e era provável que seria o apartamento a ser alugado. O terceiro e o quarto andar possuíam belas peças de decoração, enquanto no quinto havia algumas caixas empilhadas ao lado de alguns móveis, como se alguém estivesse em mudança. O sexto andar tinha um aspecto sombrio e estranho.

    Porém, toda sua atenção foi absorvida quando pararam no sétimo piso e as portas do elevador se abriram. À sua frente, estendia-se um hall maior do que os outros, com o piso recoberto por um tradicional tapete de pele. Do teto pendia um lustre de cristal clássico e imponente, e a porta era ladeada por um portal com inscrições egípcias muito parecidas com aquelas da entrada do prédio. De cada lado da porta havia a estátua de dois grandes gatos dourados, e Nathalia lembrou-se de ver algo semelhante nos livros de história quando estudara sobre o Egito Antigo.

    Mais uma vez a mulher se adiantou e, seguindo à sua frente, abriu a grande porta de entrada, posicionando-se na lateral para que ela passasse. Nathalia deparou-se com outro ambiente de tirar o fôlego, um amplo salão em tons escuros e sóbrios, no qual havia um grande sofá e poltronas de couro negro, além de outro luxuoso lustre de cristal e tapete de pele.

    – Minha irmã chegará em breve... – Dito isso, a mulher retirou-se como se tivesse alguma obrigação impostergável a esperando.

    Nathalia permaneceu sozinha no amplo ambiente, sentindo-se tragada por aquelas paredes que pareciam ter vida própria e a observavam com um ar de superioridade e soberania. Deu alguns passos sem saber se permanecia parada, se se sentava ou se caminhava despretensiosamente pelo majestoso ambiente.

    Estava imersa nesses pensamentos quando percebeu o som de algo se movendo pelo fino assoalho, então voltou-se naquela direção. Um sinuoso gato preto entrava no local, caminhando a passos lentos e cautelosos. Ele parecia avaliá-la a certa distância, e ela notou que o animal era cego de um dos olhos. Sempre gostou de animais e agachou-se na expectativa de que aquele se aproximasse das suas mãos, o que, para sua surpresa, aconteceu.

    – Bastet parece gostar de você, o que é um bom sinal.

    Nathalia levantou a cabeça em direção à voz e quase caiu diante da magnitude da mulher à sua frente. Por sua vez, ela parecia notar o efeito que produzia, ficando satisfeita. Desajeitada, Nathalia colocou-se em pé, sentindo-se embaraçada com a situação. A presença daquela mulher era tão intimidante que não sabia como proceder.

    – Me... me chamo Nathalia... – Titubeou entre estender-lhe a mão ou não, mas achou que seria de bom tom fazê-lo. Já a imponente dama à sua frente respondeu com cordialidade ao seu gesto e sorriu-lhe contidamente. Sem dúvida nenhuma aquela era Zelda Z.

    – Por favor, sente-se...

    A jovem caminhou até uma das poltronas e sentou-se, enquanto Zelda ocupava o amplo sofá à sua frente. Ela a encarou por um instante e sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Era inegável o efeito intimidante que aquela mulher exercia.

    – Então você tem interesse em ocupar um dos nossos apartamentos?

    Nathalia não pôde deixar de notar o tom com que ela falava, como se o fato de alugar aquele imóvel fosse mais do que uma mera relação comercial, fosse uma dádiva, um privilégio concedido a quem fosse escolhido. Sem dúvida nenhuma havia arrogância naquelas palavras, mas preferiu ignorar.

    – Sim, desde que seja acessível para mim, tenho um grande interesse em alugá-lo.

    Zelda a encarou por mais um instante e anunciou o valor que pedia pelo aluguel mensal. Obviamente, era uma quantia significante, Nathalia não sabia dizer se o apartamento valeria tudo aquilo, mas estava disposta a arriscar. Zelda deixou escapar um discreto sorriso quando ela assentiu com o valor proposto.

    – Meus advogados a procurarão para tratar da documentação necessária para a formalização do negócio. – Estava claro que ela não se encarregava da parte burocrática dos papéis. – Mas, antes de tudo, eu gostaria de saber por que você se interessa em morar aqui. – Havia uma indisfarçável curiosidade no seu olhar.

    Nathalia sentiu medo de responder algo que soasse idiota, mas, como sempre fizera em sua vida, deixou que a emoção falasse por ela. Permaneceu introspectiva por alguns segundos e finalmente pôs-se a falar, guiada pela intuição e pelo coração:

    – Quando criança, eu costumava caminhar pelas ruas com meu avô e nenhum lugar nessa cidade me atraía tanto quanto esse prédio. Ele tornou-se palco dos meus sonhos e das minhas fantasias infantis, e foi esse encanto e fascinação que carreguei por toda a minha vida, imaginando como seriam as paredes interiores e os objetos que preencheriam essa arquitetura magnânima. – Parecendo ser transportada para outra realidade, olhou ao redor como se saudasse o interior da construção. – Nunca perdi o costume de caminhar por essas ruas e me deter aqui em frente, observando toda a beleza que esse lugar exerce. É um amor platônico que me acompanha por toda a vida! A oportunidade de viver aqui é a transformação de um sonho que até agora parecia inatingível, mas repentinamente pode tornar-se realidade. – Nathalia sentia que tinha expressado toda a emoção que carregava em sua alma.

    Zelda a observava em um silêncio contemplativo. Seus olhos cintilavam com um misterioso bruxulear.

    – Creio que você será bem-vinda ao nosso meio!

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    2. SOPDET

    Girou as pedras de gelo na bebida que estava sobre a mesa, tentando desviar a atenção da atraente mulher que o encarava sentada próximo ao balcão do bar. No jogo da sedução era necessário esperar a hora certa para agir, um pouco de dissimulação e descaso sempre surtia um efeito positivo na conquista.

    Mas para quem observasse aquele galante rapaz fazendo esse joguinho de gato e rato, jamais imaginaria que no passado ele fora um tímido e impopular adolescente, vítima de bullying por parte dos colegas.

    Giovanni era o único filho de um casal de origem italiana, vindo de um lar marcado pela alegria e união. Durante toda sua infância, fora cercado de cuidados pelos pais, que apreciavam uma mesa farta e uma boa comida. Era um menino rechonchudo, mas extremamente feliz, o Bimbo da família.

    Mas toda a magia do seu doce lar dissipou-se ao entrar na escola. Não conseguia se socializar com as outras crianças, pois estava acostumado a viver cercado de adultos que lhe protegiam num mundo mágico de fantasia que compartilhava com seus brinquedos.

    Nas atividades físicas, era um verdadeiro desastre, não tinha fôlego para acompanhar os outros meninos na corrida, e não demorou para que começasse a ser excluído das brincadeiras em grupo e a receber apelidos maldosos.

    – Rolha de poço! Baleia! Gordo seboso! – diziam as crianças, que sabiam ser maldosas quando queriam.

    Repentinamente, sua vida se transformara num inferno e o mundo encantado da sua infância perdera as cores e a alegria que antes possuía. Percebendo a mudança no comportamento do filho, os pais tentaram mudá-lo de escola, mas aonde quer que ele fosse os apelidos e brincadeiras maldosas continuavam, transformando seus primeiros anos escolares no pior pesadelo da sua vida.

    Mas como todo sofrimento é pré-datado pelo tempo, os anos se passaram e, à medida que crescia, o pequeno e frágil menino foi se fortalecendo na própria dor. Era naturalmente inteligente e sagaz e começou a se destacar pelas melhores notas na turma, sobrepujando as críticas à sua aparência com seus dotes intelectuais e ganhando o respeito dos colegas. Precisava ser forte e esperto, afinal o mundo lá fora não era tão gentil e acolhedor como entre as paredes da sua casa.

    Porém, nem mesmo sua esperteza fora capaz de apagar a impressão que inicialmente causara, e por mais que tentasse era rejeitado em especial pelas garotas, que se recusavam a acompanhá-lo nas festinhas populares naquela época. Para elas, ele era o nerd acima do peso com quem não deveriam ser vistas.

    Vítimas da rejeição crescem com buracos na alma e corações frágeis que buscam diminuir a dor do abandono que carregam ao longo dos dias. Apesar de todas as contrariedades, Giovanni sonhava em encontrar seu primeiro amor, alguém que o entenderia e aceitaria como ele era. Não era o mais descolado, nem o mais popular, mas tinha uma alma nobre e um coração honrado.

    Essa sensibilidade ele expressava nas longas horas que passava no quarto dedicando-se à sua grande paixão, a música. Fora autodidata e aprendera a tocar violão, reproduzindo as notas das suas músicas preferidas. Naquele momento, dava vazão às suas paixões recolhidas e se imaginava cantando todas aquelas melodias para alguém especial que preenchesse o vazio da sua vida.

    Mas os dias se passavam e essa pessoa predestinada nunca aparecia, apenas a solidão permanecia engolindo suas noites. Aos poucos, cansara de insistir numa popularidade que não lhe era comum e desistira de buscar companhia entre os jovens da sua idade. Trocara as baladas e festas pela proteção do seu quarto e a companhia do seu violão.

    Por outro lado, continuava destacando-se como o melhor aluno da turma e não foi necessário muito esforço para que entrasse com mérito na faculdade. Poderia ter escolhido entre os cursos mais disputados, mas optara por Administração de Empresas, algo que se adequava à sua visão racional e sistêmica de mercado.

    Ingressou na universidade como um rapaz tímido, mas logo passou a ser notado pelos colegas e professores, pois, embora não percebesse, havia se tornado um jovem naturalmente belo e notavelmente sábio. À medida que crescera, perdera peso e ganhara altura e em nada lembrava aquela criança que fora no passado.

    Então, pela primeira vez na vida, percebeu uma mudança na sua vida social. Ainda se lembrava com alegria do primeiro dia em que a turma o convidara para um barzinho após as aulas. Sentira-se tão surpreso na hora que parecia não entender o convite, o qual aceitara de pronto, e assim se divertira bastante na companhia de outros jovens. Sentou-se ao lado de dois colegas de sala e, mesmo sendo extremamente retraído, interagiu com todos, conversando sobre banalidades e assuntos relacionados ao curso. Porém, seus olhos de fato brilharam quando alguém tomou um violão e, sentando-se num palco improvisado, começou a tocar e a cantar.

    – Você sabe tocar?

    De modo automático, Giovanni respondeu que sim, não se dando conta do vacilo que poderia ter cometido.

    – Galera, temos um colega para representar nossa turma!

    Animados pela bebida, todos começaram a brindar e a incentivá-lo a ser o próximo a tocar. Embaraçado, tentou recusar a oferta, mas já era tarde. Pediam entusiasmadamente que ele se apresentasse e dizer não àquele pedido seria abortar sua incipiente vida social. Resignado, levantou-se e foi até o local onde o outro rapaz encerrava sua apresentação.

    – Manda ver, cara!

    Dando um tapinha nas costas para encorajá-lo, passaram-lhe o violão. Quando Giovanni se sentou na cadeira, percebeu que suas pernas tremiam muito e suas mãos suavam e estavam frias. Por um momento, fez-se silêncio no local e todos o olharam apreensivos.

    Involuntariamente, lembrou-se de uma passagem de sua infância quando fora convidado para uma festa de aniversário. Havia uma pista de dança e tocavam as músicas de sucesso da época, então uma das suas favoritas começou a embalar a festa e ele pôs-se a dançar em um frenesi. Quando percebeu, as outras crianças haviam feito uma roda ao seu redor e, dando gargalhadas, apontavam na sua direção com escárnio. Aos prantos, saiu correndo do lugar e, envergonhado, pediu para que chamassem seus pais para buscá-lo.

    Mas não podia permitir que os fantasmas do seu passado atrapalhassem seu momento presente, por isso aquela porta fechou-se e ele voltou-se ao momento presente. As pessoas já ficavam inquietas com seu silêncio e, se não improvisasse algo de imediato, a cena do passado se repetiria. Fechou os olhos e, respirando fundo, buscou inspiração. Quando abriu a boca, pôs-se a cantar uma de suas músicas favoritas, Blue eyes blue, do mestre Eric Clapton. De início, houve vibração das pessoas, mas logo o silêncio voltou a imperar, mas não porque estavam apreensivos, e sim porque sentiam-se encantadas pela música que ele produzia.

    Geralmente, quando Giovanni tocava, fechava os olhos, e naquele momento essa prática revelou-se uma boa tática para dar-lhe segurança. Abstraía e sentia-se desvinculado da realidade circundante, como se fosse absorvido por um universo paralelo. Quase no final da canção, reabriu os olhos e percebeu que as pessoas ainda o ouviam encantadas. Olhou na direção da turma e acidentalmente seu olhar cruzou com o de uma das garotas. Ela era baixa, charmosa e de rosto redondo, os cabelos negros e lisos cortados à altura dos ombros conferiam-lhe um charme peculiar. Ela lhe deu um sorriso espontâneo e ele se sentiu corar de vergonha.

    Terminou a apresentação e todos bateram palmas, alguns, mais entusiasmados, batiam o copo na mesa e pediam que ele cantasse outras músicas. Giovanni preferiu deixar que outras pessoas se apresentassem, mas ao longo da noite retornou várias vezes ao minipalco, desfiando uma sequência de suas canções preferidas. Para sua surpresa, sua colega tomou a iniciativa e veio se sentar ao seu lado, deixando-o sem reação por um instante. Parecendo divertir-se com sua atitude, ela observou:

    – Você é tímido! – Ele sentiu as faces corarem e ela deu um sorriso divertido.

    Não estava acostumado a beber, mas não podia fazer feio entre os colegas e ser o único a não tomar bebidas alcoólicas. Por isso, mesmo a contragosto, acompanhava os outros na cerveja. Como não estava acostumado, não demorou muito para que se sentisse levemente alterado. Entre músicas, conversas e bebida, foi se sentindo mais solto e desinibido, mesmo quando a garota descansou a mão sobre sua perna. Já rompera a barreira da timidez. Por fim, os jovens começaram a se dispersar e ele percebeu que já estava um pouco tarde e demoraria muito para pegar um transporte público àquela hora.

    – Posso te dar uma carona...

    Giovanni não esperava que a garota fizesse aquela proposta, mas, de toda forma, a aceitou prontamente. Caminharam até o estacionamento, àquela hora com poucos carros, e, assim que entraram no veículo, deram vazão ao desejo que sentiam. Mesmo sendo inexperiente, beijou-a com volúpia, incapaz de conter a atração que sentia. Era notável que a jovem possuía muito mais controle da situação que ele, e, após beijos sôfregos, ela se precipitou para abrir sua calça.

    O volume ali revelava todo o desejo de Giovanni, porém havia um grande empecilho que o impedia de transar no banco de um carro, no estacionamento de uma universidade, mesmo estando bêbado e sentindo um desejo incontrolável. Tentou afastar a garota, mas ela resistiu e insistiu em abrir-lhe o zíper. Bruscamente, segurou-lhe a mão, fazendo com que ela parasse. Enfim ela percebeu sua recusa e olhou-o com espanto.

    – Você é gay?

    – Não! – Sua pergunta pegou-o de surpresa. – Eu apenas não quero que aconteça dessa forma...

    Inesperadamente, a garota soltou uma gargalhada, jogando a cabeça para trás.

    – Puta que pariu, você é mesmo diferente de todos os outros caras que conheço! – Em seguida, ela aproximou-se dele, tocando-lhe com carinho o rosto. – Esse seu jeitinho tímido deixa qualquer garota louca.

    Giovanni sentia sua sobriedade voltar e sua face corar diante do comentário. Por sua vez, ela parecia incontrolável, e ele soltou um suspiro quando as mãos dela deslizaram e apertaram o meio de suas pernas. Antes que ela retomasse a investida, ele pediu:

    – Por favor...

    A garota retirou a mão, afastando-se, e o encarou.

    – Você diz não ser gay e pela sua reação dá para perceber que não é mesmo... então, se você não é gay... – Seus olhos brilharam de surpresa. – Você é virgem?!

    Ele sentiu como se sua cara fosse pegar fogo diante da observação e não conseguiu formular uma resposta coerente. Em contrapartida, a jovem parecia divertir-se e, dando partida no carro, levou-o em casa.

    Foram muitas emoções incomuns à sua rotina num único dia, e Giovanni passou o restante da noite em claro relembrando tudo que acontecera. Ainda não havia superado a insegurança que o acompanhara ao longo da vida e temia como seria visto pelos colegas no dia seguinte, principalmente por aquela garota, que em pouco tempo desvendara tanto da sua intimidade.

    Porém, nem seus mais loucos devaneios e fantasias seriam capazes de prever o divisor de águas que aquela noite representara em sua vida. Repentinamente, tornara-se o assunto principal do campus universitário, todos queriam saber quem era o cara que cantava tão bem. Para incrementar o tom da fofoca e o burburinho causado por ele, o segredo sobre sua virgindade veio à tona e entre o público feminino surgiu o gosto pelo desafio de qual garota seria responsável pela sua primeira vez.

    Era inegável que a súbita popularidade, da qual jamais desfrutara ao longo da sua vida, mexera com seu ego, dando-lhe um gostinho de vitória. Entretanto, não demorou para que se sentisse esgotado com toda aquela atenção desnecessária que tirava o foco dos seus estudos. Até as insistentes investidas começaram a irritá-lo. Inúmeras garotas que sequer o cumprimentavam antes tornaram-no o alvo de seus desejos, mandando mensagens e convidando-o para inúmeras atividades, de um casto grupo de estudos a uma inusitada noite de farra. Ele já não sabia lidar com a situação. De todas as mudanças, o que mais lhe agradava era acompanhar a turma a festas e bares e cantar, pois se tornara impossível a realização de um evento sem que lhe pedissem para mostrar seus dons musicais.

    – Giovanni... – Ele havia se despedido dos colegas na saída do barzinho e caminhava para a estação de trens quando ouviu seu nome. Virou-se na direção da voz e deparou-se com a jovem de cabelos curtos daquela noite malsucedida. Desde aquele infeliz encontro, haviam evitado a presença um do outro, limitando-se a meros cumprimentos. – Posso dar te uma carona...

    – Obrigado, mas acho melhor não... – O fato de ela ter comentado o que ocorrera entre eles com as outras garotas destruíra qualquer vestígio de interesse que ele havia sentido por ela.

    Deu-lhe as costas e começava a caminhar quando foi detido por uma mão que segurava seu pulso.

    – Sinto muito por tudo...

    Giovanni lembrou-se do sorriso de escárnio que ela dera naquela noite e retribuiu-lhe com um semelhante.

    – Está tudo bem... Algumas coisas simplesmente acontecem por acidente. – E desvencilhando-se gentilmente do toque, retomou seu caminho.

    ***

    Nada como o passar dos dias para que tudo caia no esquecimento e novidades tomem o lugar de antigos acontecimentos. Não demorou muito para que outros fatos chamassem a atenção no campus universitário e as bocas pequenas se ocupassem de novos assuntos. O antigo reitor havia sido deposto do cargo por desviar verbas destinadas aos cursos e uma tragédia se abateu na sociedade local, a misteriosa morte da jovem Zuma Z, tornando-se os assuntos preferidos nos corredores da instituição, bem como em cada rincão da cidade. Até mesmo seu lar foi afetado pelas especulações daquelas fofocas, principalmente a morte da jovem membro daquela conhecida família.

    Todos naquela cidade comentavam a respeito do clã Z. O tataravô de Giovanni havia trabalhado na construção daquele prédio, e para sua avó, uma típica matrona italiana, católica fervorosa, eles eram amaldiçoados e possuíam ligações com as forças das trevas. Ele ria daquelas crendices ignorantes e considerava que se tratava apenas de uma família rica que, como todas as outras, era cheia de excentricidades. Não havia maldições, nem forças das trevas envolvendo-os e a seus infortúnios, e, pessoalmente, ele lamentava pela morte daquela mulher, que era tão bela.

    Aquela mudança de foco no ambiente universitário trouxe-lhe certo alívio e enfim ele pôde retomar sua vida tranquila. Mal sabia que, quando as forças do destino se colocam em ação girando as rodas da vida, o ciclo de transformações só se encerra ao se completar.

    Embora se desse bem com todos os colegas de sala, principalmente após sua inesperada popularidade, não havia ninguém que Giovanni pudesse considerar um amigo mais próximo, até a chegada de um rapaz vindo de transferência de outra cidade chamado Patrick. Desde sua primeira aula, Patrick ocupara uma mesa vazia próxima à sua e aproximara-se pedindo algumas informações sobre a universidade, que lhe era desconhecida por completo. Giovanni gostava de ser prestativo para as pessoas e o jovem parecera ser uma pessoa tranquila e simpática.

    Alguns dias depois, foi convidado pelos outros colegas para irem a um bar após a aula e estendeu o convite a Patrick, que parecia ávido para começar sua interação social com toda a turma. Ao contrário dele, o novato parecia não ter dificuldade para comunicar-se, revelando-se bastante desinibido e extrovertido e estreitando os vínculos com todos.

    – Nem todo mundo nasce com talento musical! – brincara um dia, fazendo referência ao fato de que precisava ser comunicativo e simpático caso quisesse ser aceito pela turma da faculdade.

    A amizade entre eles fluiu naturalmente, tinham muitas coisas em comum, incluindo a paixão pelos estudos, e não demorou muito para que começassem uma acirrada disputa para ver quem tirava as melhores médias na turma. Eram os nerds da sala, mas, ao mesmo tempo, bem-vindos e queridos por todos, em especial pelas garotas, pois não demorou muito para que Patrick cedesse às investidas femininas. Ao contrário de Giovanni, não se fazia de casto

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