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Que falta fará tanta verdade
Que falta fará tanta verdade
Que falta fará tanta verdade
E-book407 páginas7 horas

Que falta fará tanta verdade

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Sobre este e-book

A casa dos avós, a única onde sonhou a felicidade, e a que é obrigado a regressar numa cambalhota do destino, reinicia-lhe a esperança numa vida que finalmente valha a pena ser vivida. Passado e futuro envolvem-se num manto de real e imaginário e são bebidos numa sofreguidão de positividade por vezes intoxicante. Dar-se e possuir quase sem critério dão rédea solta a um romantismo sempre julgado como bóia de salvação para o quase naufrágio da sua vida passada. Contudo a verdade, todas as verdades que a vida contém, impõe-se nas suas facetas cruas e desoladoras, como a ressaca depois da euforia, realçando quão intrincado pode ser o caminho para se alcançar esse Santo Graal da existência humana: viver feliz. Ao não deixar que nada fique para trás, a verdade impõe-se de tal forma que torna impossível esconder a dúvida: fará ela assim tanta falta?
IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de jan. de 2023
ISBN9791222078694
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    Que falta fará tanta verdade - José Luís Sequeira

    Agradecimentos

    Quero agradecer a todos os que me iludiram. E ao mesmo tempo pedir-lhes desculpa por tê-los feito iludirem-me porque de facto não consegui manter-me merecedor dessas ilusões. Por nunca ter sido capaz de deixar para trás tudo o que devia ter lá ficado, criei no meu presente demasiada verdade destruidora desse sal da vida que é a ilusão. Só permanece feliz quem de alguma forma se ilude ou se deixa iludir, quem acha que não faz assim tanta falta tanta verdade. Portanto, a todos os que me fizeram feliz, obrigado.

    Quando chegou lá pensou - como lhe cantavam os Echo & The Bunnymen O que vais fazer com a tua vida?, que o mesmo era dizer Para que sirvo eu?. E depois também Haverá algo pior do que não se ser mau em nada sem se conseguir ser verdadeiramente bom no que quer que seja?.

    A casa era de alto pé-direito. Grandes portas que o amedrontaram na infância; era a casa dos avós, abandonada e larga, demasiado ampla em todas as direcções, sobretudo para cima. Todavia: Empurraram-me para aqui para me condenarem a toda a vida criança, o mundo a esmagar-me, contente pela sua opulência. Mas eu tenho as minhas armas

    À noite tenho medo. Por isso durmo com uma longa faca de cozinha ao meu lado, nos lençóis – uma fria amante de aço a quem entrego o meu medo para me fazer sentir melhor. O vento assobia em todas as frestas. A caliça geme. As portas, sempre altas demais, olham-me de cima com os olhos de vidro das janelas mudas que têm lá no alto. O quarto tem três portas – três! - e eu, só querendo uma, reparto-me pela imobilidade das outras duas indeciso quanto a usá-las à vez, sem medo de ser injusto, talvez insalubre quanto ao meu destino… Que faço aqui afinal, numa porta só?

    Uma noite um gato fez cair uma vidraça tirada das dobradiças e que estava encostada à parede, à espera de reparação. Tanta palavra para chegar ao estrondo daquele estrondo. Tudo por dentro se partiu e a mão arrepanhou a minha amante, não em socorro, em oração: Valha-me Nossa Senhora do Aço Inox!. Depois uma coragem tola a vir de encontro aos fantasmas de mim à solta e o gato a lamber a pata, qual chupa-chupa, na açoteia desprezada e a trazer-me à culpa o que faltava de mim Eia, como esta merda está!. A lua por detrás do gato com uma luz só para aquilo, toda ela de propósito, tal qual lá foi posta; os homens a aterem-se nela esbaforidos nas calmas dos seus desesperos… Por que raio estou aqui?, e o gato a refulgir os olhos nos vidros partidos que os meus pés, incólumes – porquê? –, pisavam, a ajudar-se na lua para ser ainda mais gato.

    Quis outra vez dormir, mas as empenas a espelharem-me os terraços num branco demais por dentro, de maneira que todo o meu sono diluído nesse fluído leitoso; uma festa descoroçoante. Pelo meio, tiquetaques no soalho estralavam foguetes intranquilos. Acendi de novo a lanterna e, outra vez de faca na mão, vi que eram apenas osgas que dactilografavam a sua fome em perseguições de coisas que eu não via.

    A casa nua dos meus avós, mais que nua, vestida de abandono, a servir-me de antecâmara do medo outra vez. As mesmas alturas esmagadoras, os mesmos rangeres dilacerantes, tremeres separadores; eu a dissociar-me do que queria ser: uma criança segura, um amanhã sem medos, inteiro, a corroer-se debaixo de tanto amor entornado fora de horas, em enlevos estrangeiros ao que a noite já fizera, toda a papa passadinha, a minha avó desejosa de compensar uma ausência perdida, a minha mãe aos remoques que o mimo a mais só podia fazer mal, mas ela, sem saber da noite, a estrelar o ovo com caretas só para me arrancar um sorriso que queria total mas que nunca passava de um esquivar sendeiro. Nem a praia, e os seus contentamentos, amortecia aquela queda que começava sempre com o sol e um sorvete sorvido à medricas – os outros miúdos a lambuzarem-se de serem crianças e eu, homenzinho sem ninguém me pedir, a ganhar juizinho numa compensação pateta pelo que haveria de vir: a noite dos medos todos.

    Nada tardou para que uma teia caída sobre a bochecha em pânico me rebentasse o que restava da confiança fininha que ficava do tremer do soalho – O que se passa debaixo de mim?, costumava perguntar-me –, do ranger do móvel que estava à minha cabeceira – toda a noite à  espera que eu no quase do sono só para retrerrrrrr…te…tac…te…rrr, e a espicaçar-me de uma forma que só aprendi mais tarde quando vi um campino meter vara num novilho teimoso; o animal como eu a agitar-se no ar e a espelhar a raiva de ter de obedecer ao medo da dor.

    Agora estou aqui outra vez. Em nome de uma poupança, uma revisitação da tortura, condignamente amplificada pelo desprezo dos homens às coisas que declararam velhas. Mas eu tenho as minhas defesas. A casa em si a impor-se na dignidade da sua existência. Creio até que sabe acumular histórias dentro dela, capazes de darem razão às suas mudas reclamações de tanto ser vítima de tão injusto esquecimento. Às vezes penso ouvi-la dizer-me Se já não sirvo para nada, porque me procuras agora?, a justificar a sua vingança mas a querê-la mais desafio que punição, lá no fundo um pouco atingida pelo remorso do que sabe ter-me feito.

    Ainda é cedo para nos considerarmos na fase dos bons amigos que se detestam. Há qualquer coisa que começa na minha vida e que me tem, por estar por dentro, com ela. Tenho a impressão que me testa, vingando-se em mim um bocadinho daquilo que os mais velhos que eu lhe fizeram, como que a dizer "Primeiro servia para tudo. Nasceram aqui, cresceram aqui, partiram para o mundo lançados dos meus braços. Depois já só me abraçavam no part-time do verão, entretidos com o calor, a deleitarem-se nas suas delícias graças à minha localização privilegiada, a fingirem saudades quando era só a conveniência do eu estar aqui, na terra das branduras e a dois passos do mar. Por fim embebedaram-se tanto de farturas que já não prestava para nada. Trocaram-me então por mamarrachos de comodidade, a enxotarem as criaturas a quem sempre pertenceram as dunas. Vinham para cá, mas nem sequer me vinham ver. Minto: chegavam em mercedes e apontavam dedos por cima da minha cabeça e eu via-os a salivarem números que não paravam de crescer em troca dos meus escombros. Abençoada ganância! Não fosse ela tão desmesurada e eu já nem sequer estaria de pé. O que me valeu foi que nunca lhes chegava o que o pato-bravo do empreiteiro vomitava, entre dedos esponjosos e bocas para as quais nunca havia açaimes que chegassem. É, a ironia é que a mesma crueldade do meu abandono é que me mantém de pé. E agora tu, um piolho que mal senti, é quem vem outra vez aproveitar-se, não é? Como querias que te tratasse? Querias-me de soalho encerado, com aquele cheiro que levavas dentro da caixa dos lápis de cor e que cheiravas para te tentares proteger no teu primeiro dia de escola? Querias-me de puxadores a reluzirem de solarine, algodões com que a desgraçada da Alzira desfazia os dedos cheios de bolhas que se esvaiam no caldo verde, eu a ver as gotas incolores a entrarem no que restava da couve e ela a fazer-me chui! com o dedo com medo de ter de fazer tudo de novo, ou de ser despedida, porque então a tua avó um deus e o teu avô mais do que pai dela, todo poderoso, uma corrente amarela sempre a balançar-lhe no colete, a garantir-lhe garbosos cumprimentos e poderes de vida e morte para com os humildes, que nunca morriam por sua causa porque ao domingo o padre a vazar-lhe a consciência de abrolhos chatos, e ele outra vez limpo, ninguém morto às suas mãos, se porventura um princípio de desgraça da sua responsabilidade, nunca um fim, o fim era sempre longe e dos outros, porque por ele sempre a defesa da lógica Quem a mandou? A culpa é de quem não tem cabeça!, e ninguém com o azar de conspurcar o caldo verde com a linfa da escravidão do solarine…"

    – Mas isso pode ter sido nesse tempo e pronto… Hoje sou eu quem vem com rabinho entre as pernas, a fugir das despesas que nunca contaram, nem para as aparências… Deixas-me ao menos dormir?...

    Mas ela: "Já não te convém que se fale da Alzira, não é? Não te convém que te diga que te encharcaste de um ardor doce, que pensaste extasiado o que era aquilo que nem o melhor chocolate da mercearia do vizinho Jorge te proporcionava? Como se não te lembrasses de quando a ias espreitar pelos buracos da casa de banho do quintal, à entrada da escada para a açoteia, e a vias a mijar, toda cavalona, de perna aberta e bicos dos pés para dentro, a limpar-se à toalha de pano truco preto – porquê preto naquela casa de banho e branquinho como a face dos anjos nas outras onde ela só ia para esfregar?...nem era bem preto, era um escuro, um encardido com pintalgados de cores que mal se viam…O que é certo é que a Alzira, sempre no centro do teu olho gordo, os pezinhos sempre a retesarem-se para dentro, aquele apontar um para o outro a nunca mais te largar, a pôr-te a antena a irradiar hertzes que nem sabias que tinhas, aquilo ali espetado, teu?, a olhar para ti numa primeira vez que te entusiasmava mais que chocolate, e tu, olhos no azul imaculado do céu algarvio, a agradeceres ao senhor que o teu avô insistia em haver lá em cima por ter posto no teu caminho aquela criada…Aquela Alzira, e aquele buraco escarafunchado pelos primos que já haviam casado e que pouco tempo depois já acordavam em resorts em que as criadas não eram o auge mas sim as putas que vinham atrás do pó branco de outros céus, a quem as primas com quem casaram fechavam os olhos mas abriam as narinas em jogos de mentira em que todos estavam viciados…Não te convém, pois não?"

    Era, o buraco era este acima do qual o gato se lambuzava depois da asneira de te ter partido a vidraça. Se ao menos eu gato, só com o medo na conta certa, naquela imposturice das sete, ou nove?, vidas. Mas ao contrário, eu, sempre com medo da única que tinha, que tenho, na dúvida até se tenho mesmo uma, inteira, e não uma espécie de apêndice de promoção

    – Ó Heitor, o menino não pode estar sempre aí ao sol, encavalitado como um maltês qualquer! Olhe só esses joelhos todos brancos… – a minha mãe, com a mão em pala contra a inclemência do sol algarvio.

    Sempre jurei que o Algarve uma terra especial com um pacto com o deus do sol, cujo nome eu devia saber se tivesse ido para humanidades em vez deste equívoco das desumanidades artilhadas de números que o meu pai entendeu muito mais lucrativo, e afinal…Diz-me tu, casa, achas que a escolha dele começou quando viu os meus olhos a derreterem-se de pena pelas bolhas de Alzira, género a pensar Se este gajo é assim tão mole, se for para humanidades nunca mais terá concerto?...Pois, se é que não me viu eu acho que ele desconfiou, sim porque ele também eu quando era pequeno e de certeza que outras Alziras quando o meu avô era mais novo. Quando ele me viu a levantar-lhe o saiote e ela a rir-se sem se importar, sem se importar não, a gostar, que os olhos, mesmo novos, não enganam, a gostar pois, a gostar que alguém, mesmo pequenino que fosse, a gostar dela, porque tinha medo que a míngua que era o gostar do mundo por ela acabasse por não lhe deixar nada, coitada, o mundo dava-lhe tão pouca coisa de bom, o que é que um miúdo com olhos de coelho indefeso lhe poderia fazer de mal nos entrefolhos se não insuflar-lhe a alma? As bolhas do solarine a rebentarem para dentro do caldo verde e eu – era eu? - a levantar-lhe a saia preta e a ver-lhe as cuecas, de um algodão fofo e puído, a arrepanharem-se-lhe no rego do cu, e a desatar a correr – para onde? – à toa pelos corredores sem fim e a embater contra os móveis, a rebentar de estranheza, não aquela estranheza de quando tu te punhas aos estalidos e às tremuras de noite porque essa era má, mas outra, igual em intensidade só que em bom, uma coisa que não se sabe dizer, uma coisa que só não se quer parar de sentir, por isso as mãos a irem à frente de mim, outras mãos aquelas, não as minhas, e a procurarem saber, ter a certeza a quem pertenciam, e a pentearem a radiação que insistia em partir da minha antena, aquela pila meiga e inocente a ganhar vida própria e eu a perceber, com um medo bêbado de um prazer que não sabia, que ela outra coisa comigo que não eu, que nela um adversário de respeito a quem era melhor obedecer ainda que não se percebesse…De modo que o meu pai, ao persentir sensibilidade a mais, a decidir Este vai para engenharia que é uma andada, e por isso a não se inquietar quando a minha mãe para mim

    – Ó Heitor, o menino parece louco, ou quê?! Quer fazer o favor de se comportar?

    E a minha avó, a saber que tinha apenas um mês para lhe compensar o abandono dos outros onze

    – Deixa estar o miúdo à vontade. É verão…Estão de férias… Deixa lá.

    E aquela cedência a encher-me mais o que me faltava do que todas as outras coisas, o chantili em cima do bolo, a liberdade numa amostra que me sabia ao todo…E lá no fundo, pelo intervalo daquela porta que agora já não se abre - lembras-te? - a Alzira a sorrir-me, um riso que ficou aqui, agarrado à brecha do lava-loiças, no encardido das cinzas com que esfregava as frigideiras dos cabozes fritos que se comiam à mão cheia no tempo em que ainda não havia medo que as espinhas matassem crianças, mesmo as que tinham criadas…Escusas de me mandar osgas – são as mesmas? As osgas dentro de ti nunca morrem? – com perninhas de máquina de escrever a matraquear o teu soalho ressequido – onde a cera amarela?...o sabão macaco?...a Alzira, de joelhos, a esfregar, a esfregar…a Alzira era uma máquina de esfregar? – porque eu ainda atrás dela, sim senhora, a fingir que empurrava carrinhos mas apenas a empurrar-me vida fora naquele querer espreitá-la de peida alçada como um coelha com o cio, e ela, coitada, a fingir que ignorava o meu fingimento e a deixar-me vir buscar o carrinho entre os seus pezinhos sempre de bicos para dentro…Estranho como aquela postura dela, os bicos dos pés para dentro, a excitarem-me mais que aqueles riscos muito pretos a saírem-lhe do algodão coçado, enrolado no rego pelo suor do trabalho…Às vezes a apetecer-me perguntar à minha avó se ela com uma escova no lugar da pila

    – Ó avó, a Alzira tem uma escova no lugar da pila?

    Tu ainda hoje te ris, mesmo velha e cheia de legítimo ressentimento, da minha inocência, que eu bem te oiço. Sim, eu sei porque quando me sento aqui no teu terraço a beber o meu gin-tónico e olho as tuas empenas, das rachas sinto saírem-te as mesmas gargalhadas que a minha avó soltou quando eu Ó avó, a Alzira tem uma escova… Ficaram-te dentro do adobe, entranhadas na taipa, e agora, no refrescar-te da memória, saem-te a medo, mas saem-te outra vez. Bem sei que já não com a generosidade da minha avó – imitavas tão bem – porque toda tu entalada na chantagem destes monos aziagos que te ergueram em redor. Centros comerciais, ou blocos de escritórios para novos-ricos como os que nós queríamos ser, mas a ganância, a mania que eramos mais pacientes – mais ricos – que os outros, não nos deixou. Até que agora nem uma coisa nem outra. Sobrou-nos a mania. Mas eu tive de me despir dessa pele ao retornar a ti e sujeitar-me à tua, mais que justa, lembrança, e vingança, sem dinheiro nem para uma pensão mas à espera que me ajudes, socorrendo-me do exotismo do teu porte que, mesmo que ruinoso, continua suficientemente excêntrico para insuflar a nossa mentira, para que não nos triturem a todos por miseráveis sem concerto. Não quero chatear-te mais, mas esta falsa condição dá-me arcaboiço para aguentar os teus medos, repetições, e lembranças, com estoicismo para dar e vender. Quando o teu inimigo já não tiver por onde fugir oferece-lhe uma ponte de ouro, perdoa-me se a citação não está correcta, mas olha que a mensagem de certeza que está.

    Ao décimo dia não te acreditaste. Não abdicaste do teu ressentimento, quiseste insistir em pô-lo todo em mim – que outro da nossa família terias tu para te poderes vingar? - e fizeste um pacto com o vento. Rabanadas que mais pareciam pragas do diabo assolaram-te para que me voltasses a inchar de medos que eu já sacudira. Toda tu bateste palmas ao meu temor, a ver se me enxotavas de vez. Que fazia eu ali se todos nós uma má praga de gerações, uns ingratos para contigo, não era? Na altura, a braços com aqueles açoites combinados, nem percebi. Tomara eu agarrar-me à faca com unhas e dentes e ficar-me naquele ranger de mau no cúmulo das tormentas. Eu, o queque idolatrado, o menino-bem do bem que já mal havia, agora dono e senhor de todo o sem valor que eras tu

    –O menino vai. Se quiser tem lá a nossa casa, com certeza. Mas olhe que vai ter que se amanhar sozinho no meio daquela nojeira toda. Faça o que quiser. Aquilo é seu.

    Ouviste a minha mãe?... Agora és minha. És do pirralho ultra sensível e do contra que nunca soube onde se situar, que nunca soube fazer o que tinha de ser feito e que por isso nunca contou para nada…A não ser amargurar-se com o terror dos teus ressonares mediterrânicos – nem davas por isso, pois não? – ou então com o remorso de remotamente ter a ver com o recambiamento da Alzira para aquele fim de mundo onde a cristandade do meu avô a foi resgatar, receoso que a sua alma caridosa se esgotasse pela quaresma, ou apenas na caixa de esmolas do padre Malaquias.

    – O senhor Tenório é um capitão das almas! Quisera eu dar-lhe o céu por certo…

    – Engraxador do caralho! – a apetecer gritar-lhe, apesar da pequenez que era, quando a minha mãe me retorcia a mão para que me comportasse à porta da igreja.

    Aquela era uma igreja onde só íamos vedetas, uns estrangeiros ricos que apenas se dignavam pisar a terra de nascença para tentar fazer mais leve o fardo dos miseráveis nativos com esmolas inconsequentes para eles mas promocionais para nós. Nunca percebi aquelas ganas de tanta certeza pois em mim juízo algum, todo eu era só uma pilha de instinto. E por isso a falsidade do padre, maior ainda que a do meu avô, maior do que a de todos nós que íamos de Lisboa só para aquelas pantominas, a acudir-se-me à garganta numa vontade quase irreprimível de barracada. Tu lembras-te que eu sei. Foi mesmo aqui ao fundo rua que nesse domingo de Páscoa sentiste o contentamento mal contido da minha avó quando eu, incapaz de atirar o impropério mais que justo àquele cura ranhoso, ao abrigo da minha infantilidade soltei um sonoro gás que queria dizer mais que mil vernáculos bem aplicados, e que ainda por cima tinha a vantagem de não poder ter réplica. Era dos figos…O que se havia de fazer a um citadino que não resistira ao apelo das guloseimas do sul? Pois, agora ris, mas depois de quinze dias de colaboração com o vento, um levante malesso que encomendaste de propósito – pensas que não notei? –, só para me torturares ainda mais com rangeres que se me entranhavam no cérebro como batalhas sangrentas, ainda esperas que eu tenha fair play para te aturar?...Escusas de te fazer mais assombrada do que és! Não é assim que me vais dar pontes para eu fugir. Também nem precisas porque eu nem sequer tenho para onde fugir. Tu és uma casa legitimamente ressentida pelo abandono imerecido. Eu sou um precocemente abandonado pela escassez inconfessada, inconfessável. Os dois somos resíduos de um pensar morto. Morto antes de morrer, mantido embalsamado pelo delírio de que o tempo obedeceria sempre aos poderosos – há coisas que pela sua quase permanência se tomam como verdades sem o serem totalmente. O tempo escorre o sangue das desditas deles, grita as dores dos golpes que sempre tiveram por legítimos, mas tem cabeça e rabo para ir para onde quer, e de vez em quando mostra quem manda e, por banhar tudo e todos, impõe vontades acima até mesmo dos poderosos como quem diz Tarda, mas não dorme, como um deus dentro de uma máquina que falha em vez de catedrais.

    Sei que já estás farta de me ouvir. Tantos anos de silêncio e agora não sou eu quem vai resgatar esse desprezo, não é? Se eu tinha boas intenções, se era verdadeiro, porque não apareci há mais tempo? Porque te deixei escamar todas as tintas, desencaixilhares-te toda, assim como estás, a ranger de dores os medos que queres infligir-me? Porque deixei a cal esquecer-se dos teus terraços? A amendoeira no canteiro do caminho que vai para a arrecadação, a definhar, ou estará já morta? Porque deixei a podridão comer a alma do meu baloiço?...

    – Alzira!

    – Diga menino.

    – Vem empurrar-me o baloiço.

    – Ah, menino! Olhe que a sua avó mandou-me ir amanhar as bicas para o jantar e escolher os grelos para o arroz, tenho de me aviar senão…

      - Vá lá, anda lá, é só um empurrãozinho…

    – Aí que o menino ainda me ensarilha a vidinha toda…Vamos lá então, mas só um bocadinho que tenho mais que fazer, ouviu?!

    E eu a voar nas mãos dela. A apetecer-me beijar-lhe os calos que lhe ficaram das bolhas, a eriçar-me todo no cheiro a cera – ou era a solarine? – daquelas mãos que me metiam em órbita num instante, nas asas de uma alfarrobeira mais doce que toda a cana, como se o Algarve toda a África, toda a Ásia, todo o açúcar do Brasil…Para quê aquelas descobertas todas que me apertavam o decorar da quarta classe, se todo o mundo ali, na doçura daquela ramada, naquele empurrão, espreitar, cair, rebolar no monte de alfarroba madura cujo perfume entrava por nós como se nada mais precisássemos nunca mais…

    – Ó! O menino caiu. Não me diga que se aleijou? – ela, dezasseis anos, mais quatro do que eu, e um mundo fictício de postura e obediência a não ser capaz de separar o que a natureza, a fermentar nas branduras do sul - a inocência a expirar - tentava colar como só ela sabe, cega, certa, convicta de que o tudo que existe filho dessa sua pressa, quer se queira quer não.

    E eu a enganá-la, em vez daquele alguém que não o eu de antes, apesar de eu só um descanso de uma noite de medos e pouco mais, e a rebolá-la comigo naquele cheiro acre, mais do que a alfarroba, de qualquer coisa que me faltava, e ela a rir-se da inutilidade da sua rejeição

    – Ah, seu malandro! Deixe-me moço do débe! – mas a querer ficar mais do que eu a querer tê-la, porque aquela sua vida, tão mais deserta do que a minha que nem sequer habitada pelos meus medos esquisitos mas apenas por um: fome, miséria; daí que o seu abandono camuflado a acudir-me nas vontades que eu estranhava com tamanho agrado que nem as tinha inteiramente por minhas.

    Quando a minha mão se lhe entalou nas coxas à procura de uma alfarroba que não pertencia ali, os seus olhos – até hoje aqui, nenhuns olhos esquisitos, aquele castanho vulgar, sei-o porque me pareceram tão excepcionais que nenhuma desculpa me ocorre - aqueles olhos vulgares, a serem o que nenhum adjectivo consegue dizer, e a trespassarem-me num repasso que me gelou o corpo e me incendiou o sexo; o que de mim era material a derreter-se no calor da alfarroba, e eu de pé, só espírito, uma espécie de gás subproduto de uma combustão fria. Acreditei na alma um segundo antes de a minha avó gritar, zangada como nunca a vi, embora só o ápice de dizer

    – Alzira! Que propósitos vêm a ser esses?! Já para a cozinha!

    A tua chaminé algarvia ainda tem nela a renda do último fumo. Qual seria? O borrego daquela Páscoa? Os fumos decalcados como as esmolas às alminhas, uma Aleluia! perpétua. Tremo ao pensar que podias ter caído. Sempre me desagradou, sei que não acreditas, mas agora que vejo a chaminé uma cara única, a tua cara, muitos, todos, pensam que a tua frente desdentada de escaiolas é que é, mas não, a tua cara é esta chaminé escondida, recatada na habilidade da arte de um pedreiro que não usou colher, a única ferramenta a serem os seus dedos, brunindo os arabescos como corações da alma por onde o fumo nos imortalizava. Não acreditas como detesto quem não dá por isso? Como fico fascista ao contrário e me apetece matá-los por não serem amigos, não só de ti, mas deles próprios? Achas que te estou a engraxar, que isto é apenas para que pares de me fazer agarrar na faca durante a noite? Temos tempo. O teu abandono a fazer-me consentir tudo.

    No tal canteiro a amendoeira raquítica resiste como tu. Definha em vez de viver. Pare todos os anos umas amêndoas só casca, uns blefes no interior, que deixa cair em cima do cimento. Há um tapete de secura esquecida a provar que a nada faz bem o abandono. Lembras-te, casa, do meu avô a podá-la como se fosse um bonsai? E depois, orgulhoso das suas flores a cada Fevereiro como um japonês depois de Pearl Harbor. Como ele gostava que lhe tirassem fotografias enfeitado de primavera precoce, contente por ser a frente de tudo! Grande homem! diziam todos no seu funeral. Grande homem! repetiam os da nossa família e, ainda o caixão não tinha sufocado no sarcófago de cimento e cal – ele era grande demais para jazigos, em vida escolheu estar à vontade na morte, incapaz de repartir de verdade – e já os mesmos a retalharem a sua falta de atrevimento. E daí à cobardia foi um salto de pulga. Porquê? Resumidamente: por não ter roubado o que, no dizer deles, estivera ao seu alcance. Esqueceram-se que isto de roubar legalmente uma função que acelerou muito com o tempo.

    – Teve tudo na mão. Só no Grémio da Lavoura…– de que tinha sido presidente.

    – E em tempo de guerra, é preciso não esquecer…

    Escolhendo eles esquecer que se o escrúpulo sempre disfarçadamente diminuto, a vergonha ainda ligada a um conceito entretanto demolido chamado honra.

    Disse demolido, sim senhora. Porquê? Alguns pruridos? Que o homem não era flor que se cheirasse, de acordo. Agora, tanto eu, que estou aqui por causa dele, como tu, que também estás, devemos-lhe, mais que não seja por isso, algum respeitinho. Está bem? Bem sei que não te fez. Ao princípio alugou-te. Por bom dinheiro na altura, diga-se. Só esta tua posição, toda lampeira à entrada da praça para onde confluíam ruas das mais importantes - melhor que isto só os Paços do Concelho – a justificarem tal gasto. E agora, vai-se a ver, e aqui à volta só turistas de pé rapado, drogados a arrumar carros, comida de plástico a sair de mamarrachos indistintos. Até a praça defronte onde havia baloiços e chafarizes, lembras-te?, agora só tábua rasa para estacionamentos com parquímetros. Os trocos que escapam aos arrumadores a serem enterrados em rotundas no meio do nada, cheias de fontes sem água, à mistura com as tranches da CEE, tudo enterrado em piras de dívida para quem vier a seguir ter de pagar, que a comissãozinha já cá canta. Aí não! Como é que eles irão alguma vez entender a rectidão do meu avô? É o país que temos, a gente que somos. Como é que nos atrevemos a tantas queixas dos políticos se somos nós quem os elege? O que queríamos afinal? Que os nossos políticos fossem fruto de uma depuração infalível? Que todos eles a nata da honestidade, competência, e do bom senso – tudo coisas que tão raramente existem?... É como eu contigo: posso-me queixar deste teu rancor, mas se és tudo o que tenho, que lógica poderão ter as minhas queixas?

    Pouco a pouco vou-te remexendo as entranhas, com as pontas dos dedos, com mãos de nojo. Toda tu ainda mais derramada, a atirares-me com a imobilidade como arma de arremesso. E o teu interior outra vez a misturar-se a custo com o meu, as minhas memórias as mesmas coisas que tu, mais teia de aranha menos teia de aranha, mais pó menos pó; eu a soprar-te em tentativas de compreensão nem sempre felizes, as dúvidas a nascerem das limpezas, em vez de aclaramento maior turves a surgir com este medronho amarelado pelo esquecimento, tudo aqui esquecido numa monstruosa lembrança guardada de propósito para mim. Tudo isto mil vezes por um triz para se desfazer em notas, num sem rosto garantido. Se não fossem os meus tios, sempre com medo de parecerem menos, e por isso sempre a pedirem mais, a encherem tanto a boca que os empreiteiros a pensarem que era blefe deles. E era. Só eles é que não sabiam. Queriam-te do tamanho do tudo e nunca repararam no tanto que tinhas dentro. Depois fugiram e deixaram-te neste abandono. Cruel? Sem dúvida. Mas eles não sabem. Não é propositado. Não têm dentro nada que lhes valha. Não percebem, nunca irão perceber o que perdem no ganho que pensaram ir ter. Os meus pais também. Não achas que devias ter pena deles em vez de te vingares em mim?

    Já sei. Foi o destino que me empurrou a precisar de ti, não fui eu quem veio de livre vontade. Tens razão. Seja como for as casas nasceram para terem pessoas dentro e só eu estou aqui. Todos a preferirem recusar um emprego tão longe de casa, tão no cu do mundo – tirando Agosto - só para não terem que sentir este teu escoicear legítimo. Dá-me lá algum crédito, vá lá, já que me obrigaste a esta humilhação improvável… Todo o carácter a pertencer-te, juro-te. Mesmo desmaquilhada, mesmo andrajosa, como cruelmente te deixaram, a tua face altiva, um algarvio genuíno a esburacar-te a dedo os arabescos da tua chaminé, a garantir-te nobreza maior que a tua presença, longe, longe do tempo como a tua idade. Não é graxa, é verdade.

    Na pequena arrecadação do quintal, entre o vão da escada que vai para o terraço, onde estavam as galinhas, e a casa da roupa, num cubículo sem direito a nome, a arca onde se guardavam os figos, primeiro secos em tábuas, depois metidos lá, ainda aqui está, com o fundo comido pelos ratos, capazes de sugar os sucos mais improváveis da madeira apodrecida. Às vezes vinha para aqui, seguro do meu isolamento, onde ninguém queria estar. Fechava-me cá dentro e ficava a ver o mundo lá fora a querer deitar-me a mão nas unhas da luz que entrava pelas tiras abertas entre as tábuas mirradas da porta.

    – Este miúdo parece não ter vontade para nada…Não sei que mais havemos de fazer para espevitá-lo – dizia o meu pai, intrigado com as queixas dos meus cada vez maiores isolamentos macambúzios.

    Todos os primos sempre a cabrearem de um lado para outro, todos eles uma sucessão de tropelias, e ele sempre soturno, cabisbaixo, atemorizado pelo mundo. Está bem que de vez em quando também aprontava das suas…E que tais! Só que sempre uma criança diferente, a parecer pertencer tanto a um outro mundo que às vezes até assustava… Ora um borreguinho perdido, ora um lobo afoito em demasia.

    – Veja bem que a sua mãe foi dar com ele encavalitado no telhado junto à chaminé!...Sim, saltou o muro que separa o terraço do telhado e escarrapachou-se na chaminé…Uma perna de cada lado, e ali ficou, à torreira, a abraçá-la e a dizer-lhe coisas, como se aquilo entre braços e pernas algo com vida…A sua mãe até quer que eu vá com ela à serra com uma fotografia dele e uma garrafa de azeite, falar com uma mulher que dizem ter poderes para endireitar estas pobres mentes lerdas, deus me perdoe…Não sei o que lhe hei-de dizer mais para não ir…Você tem de me ajudar, Marcelo…Você é homem, fale você com o seu filho, pode ser…Sei lá…Olhe, já não sei nada. Este miúdo dá comigo em doida!

    E o meu pai, ao saber-me fechado na arrecadação do baú dos figos

    – O que é que o menino está a fazer aqui fechado com este calor insuportável…Ai isto aqui não é nada bom para si! Já viu que até pode ficar doente?

    Todos os pais com mais que fazer, porque não tu? Porque te importavas assim, a pedido, e não persistias no teu egoísmo, como os outros, a mandarem as queixas das mulheres às urtigas, com retiradas diplomáticas?

    – Isso é próprio dos gaiatos. Era só o que faltava, perder tempo com porcarias dessas. Isso passa. Quanto menos se ligar melhor.

    E tanto que eu precisava dessa indiferença… Mas tu, a arremelgares o olho para a pontinha branca das cuecas da Alzira quando ela se inclinou para deitar no ralo do quintal as tripas das bicas, e a fingires um interesse por mim só para calares a mãe. Sim, porque eu bem te ouvi na esplanada, para a roda dos teus amigos

    – Albarda-se o burro à vontade do dono… – todo contente por puderes regressar aos provérbios da tua infância; coragem que nunca tinhas em Lisboa, porque ela sempre

    – Deixe-se lá dessas provincianizes, se faz favor! Nem calcula como isso lhe cai mal…

    E a não me deixares outro remédio senão dar-te a mão, um linguado morto pela tua distracção, um corolário táctil da tua ausência. Como podias já estar esquecido da tua infância? Sim, porque se todas as crianças sentem essas coisas, tu também devias tê-las sentido, ou já nasceste com essa insensibilidade?...Tudo para me vires entregar ao altar sacrificial da sala de costura; a mãe a triturar-se por dentro, a fingir-se interessada num croché qualquer que a avó adorava só para ver se caía nas boas graças dela, com esperança de vir a ganhar com esse investimento quando ela morresse, quem sabe antes; e a levantar para mim aquele seu olhar de censura extrema, a anuir no silêncio cobarde do meu pai, ele sempre como quem lhe deve um favor sem estar certo de alguma vez lhe poder pagar, e eu ali, um boneco de feira, uma bola de ténis no court deles. A avó

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