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Daqui, deste lugar - Crónica de uma viagem
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Daqui, deste lugar - Crónica de uma viagem
E-book85 páginas1 hora

Daqui, deste lugar - Crónica de uma viagem

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Sobre este e-book

Daqui, deste lugar – crónica de uma viagem é a estreia de Inês Silva na literatura de viagens, resultante do percurso pela Nacional 2 (entre Chaves e Faro), a maior estrada da Europa, que a autora compara à coluna vertebral do país, corpo de transcendente beleza.

Ao decidir-se por uma viagem, num tempo de pandemia, para festejar o seu aniversário, lança-se numa aventura física, aglutinadora de cheiros, montes e vales, onde a paisagem se cruza com quem trabalha ou simplesmente vive a lassidão dos dias. Ao mesmo tempo, é assaltada por impulsos de memória de outras aventuras simbólicas, desde logo refletidas na janela do seu escritório, lugar de partida e de chegada.

Num tom pessoal e reflexivo, Daqui, deste lugar – crónica de uma viagem é um impressionante relato sobre uma estrada, a N2, tão material como o esqueleto e tão imaterial como o ser humano.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de mar. de 2023
ISBN9791222080390
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    Daqui, deste lugar - Crónica de uma viagem - Inês Silva

    Agradecimentos

    Um enorme agradecimento aos meus companheiros de viagem, que acolheram a minha proposta de percorrerem a N2 naquele setembro, e aos meus filhos, que, não indo fisicamente, me fizeram viajar por outras estradas e por outros tempos.

    a partida

    Disse que queria festejar os cinquenta anos em viagem. Chegado o dia da partida, haveria de abrir a janela e olhar lá para fora, para ver o esquilo que a pandemia trouxe pela primeira vez ao jardim. Durante o confinamento, sentada em frente às vidraças do escritório, via-o correr sobre o pequeno muro, para depois subir o pinheiro, cujo tronco forrado de heras mostrava a cauda farfalhuda. Fê-lo tantas vezes que ficou a pertencer ao jardim. Mas não, naquele dia não apareceu. Embora a pandemia ainda não estivesse extinta, os carros, as motas, os aviões, a maquinaria audível das fábricas, a pressa de cumprir o dia e a noite de trabalho esconderam o esquilo por completo. Que pena, pensei, a pandemia também tem coisas boas… talvez os gaios não tenham desaparecido.

    O escritório estava fresco como uma toca num tronco de árvore, mesmo com o sol a embater na parede. Os móveis castanhos, cheios de livros, traziam aquela sombra que modera a temperatura, embora o estalar do soalho, cujo tapete parecia levitar, indiciava o calor lá fora. Teria começado a amar o verão a partir da história do dia em que nasci? Contam-me que o carro ia a alta velocidade até ao hospital, de vidros abertos e com o banco da frente deitado para trás, de forma a dar conforto à parturiente. Os veículos, em 1970, não passavam normalmente os 70 km/h, e cada solavanco nas estreitas e incertas estradas abria uma contração uterina, uma dor irradiada para a lombar, uma aflição de não chegar a tempo e de o bebé morrer. A mãe, lavada em suor, olhava para o céu e entretinha-se com os gigantes em tons laranja, de repente cor de fogo, a engolir o universo como uma queimada. Não acreditava escapar ilesa. As águas rebentaram. Porém, o hálito quente deu-lhe aquele conforto de uma mantinha que aconchega. Foi assim que o carro chegou ao hospital, a arfar como um dragão. Como não haveria de festejar o quinquagésimo verão, pele contra pele, em êxtase com o sol? Nos pequenos trechos de futuro, que não são o total do futuro das nossas vidas, porque esse é imensurável (a não ser que se acredite que a morte física é definitiva), temos de lidar com a incógnita de não saber o que vai acontecer, o que pode provocar medo, desconfiança, angústia. Mas uma coisa é certa: haverá sempre uma chegada a algures onde permanecemos, nem que seja por segundos, e que serve de pausa no trajeto.

    Que vou levar na viagem?, pensei de repente, a interromper os pensamentos sobre o meu nascimento. Setembro. Nas férias grandes da escola primária, quando chegávamos aqui (as férias começavam em junho e iam até outubro), já não nos lembrávamos do seu início. Tínhamos feito tantas coisas! Do que mais gostava era ir a casa das avós. Viviam ambas na mesma rua, embora a casa de uma fosse mais acima do que a da outra. Havia árvores por perto, às quais subíamos sem pensar nos vestidos que, por vezes, rasgávamos. Uma vez, apanhei uma tareia porque fiz um rasgão na roda. Os vestidos, frescos e leves, eram os preferidos das mães durante os três meses das férias, mais do que saias, calças ou macacões. Além de não haver muito que vestir, eram de corte fácil para as costureiras que não tinham mãos a medir. Se não fosse possível remendá-los, teria de se arranjar um substituto para andar de galho em galho (o que era um problema porque nas férias não havia escola, por isso não era preciso ter roupa nova). Os terraços, também próximos, eram sobretudo lugares de encontros de rapazes e raparigas. Uma vez, um beijo na boca entre duas crianças despertou os sentidos às que assistiam, que, após risinhos, iniciaram uma viagem de admiração pelo prazer, uma coisa mais física, em que o interdito provoca um fervor ainda incompreensível.

    Não, não vou levar nem vestidos, nem saias. A subida ao quarto, para além de trazer à memória o que fez falta noutras viagens, antecipou imagens do local onde estava aquilo de que precisaria (e que a experiência ditava). Elas vinham e iam, às vezes sobrepunham-se, numa respiração calma de entusiasmo. Quando se está a preparar uma mala, se a viagem for por um bom propósito, agradecemos muito o facto de estarmos vivos. O coração parece, de repente, ficar predisposto a deixar o quotidiano e tudo o que é seguramente nosso, para se ir até um lugar que nada tem nosso. Não tem o nosso quarto, onde a gaveta das meias fica exatamente onde sabemos que está. Não tem a nossa mesa de cabeceira repleta de livros já iniciados, ou mesmo o armário na garagem com os usados ténis, com os quais demos voltas e voltas no nosso jardim, na nossa rua, no nosso mundo. Somente tem o que ainda não se tem. Pronto o saco, havia de ir procurar as botas de pele castanha feitas na fábrica de um amigo, de sola pesada e reforços nos tornozelos. As botas iriam servir em grande, porque não iria viajar a pé.

    Aberto o portão da garagem, que calor! Que ar quente, neste primeiro dia de setembro. A mala não pesava quase nada, tinha poucas coisas, o suficiente para os sete dias. Um escuteiro ter-se-ia sentado em cima dela para a acalcar e tornar mais ampla, como faria com a sua típica mochila cheia de tralha, em cujas bolsas saíam inúmeros objetos inúteis. Mas os quarenta e nove anos não são os catorze, e não há a voz da mãe por perto a dizer põe mais isto e mais aquilo, olha que te faz falta, podes ter febre, frio ou uma picada de inseto. As nossas mães, quando se tem quarenta e nove anos, já não falam, só olham com uns olhos forrados a película transparente. É uma espécie de verniz que por vezes está cintilante, por vezes opaco. O que estará ela a pensar? E se queremos mais perturbação, avançamos: Sofre ou não sofre com a minha vida? O barulho, as discussões de outrora eram desconcertantes, mas o silêncio é infinitamente pior. Sair de casa com a indiferença do seu consentimento é como estar no fundo de um poço à procura da primeira pedra onde pôr o pé, sempre com aquele êxtase de não acertar. Era bem mais fácil contestar aos gritos as pedras que ela apontava como a primeira, a segunda e por aí fora. Porque aí era a voz o elemento do corpo que colocávamos na discussão. Agora são as nossas entranhas a arma de guerra. A mãe nada disse quando tomou conhecimento de mais esta viagem. E sim, estava na hora

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