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Estrada Para Yellow Rose
Estrada Para Yellow Rose
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E-book473 páginas6 horas

Estrada Para Yellow Rose

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Sobre este e-book

Quando a fatalidade bate à porta, o primeiro pensamento é a fuga. Liana Morgan refugiou-se na cidadezinha de Yellow Rose, junto ao irmão e cunhada pensando em levar uma vidinha comum. Mas certas pessoas nasceram para viver o extraordinário. Única testemunha de um incidente fantástico, ela é arrastada para uma trama cheia de magia e revelações surpreendentes a respeito de seu destino e de uma terrível ameaça à própria realidade. A chave para resolver o mistério está em seu coração. Estrada para Yellow Rose convida o leitor a questionar as certezas da vida e a mergulhar numa aventura sem limites.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de set. de 2020
Estrada Para Yellow Rose

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    Pré-visualização do livro

    Estrada Para Yellow Rose - Surya S

    Prefácio

    O que seria de nós, pobres mortais, sem a imaginação? Sem essa faculdade de sobrepujar a realidade e alimentar uma ideia que pode se tornar tão forte a ponto de materializar-se neste mundo?

    Precisamos de ilusões, porque a Terra é um planetinha difícil de se lidar... e a cabeça do ser humano é dura. Tem que ir amolecendo aos poucos. Levamos milhões de anos para desenvolver a capacidade de pensar. E outro tanto para desenvolver o pensamento abstrato.

    A imaginação ajuda a moldar os grandes heróis reais: cientistas, estadistas, artistas. Não importa o quanto a intolerância e a opressão obriguem o ser humano a viver pela sobrevivência e a reduzir seus argumentos à violência pura. De algum modo, em algum momento, a imaginação fluirá, através de um desenho, de um livro, de um sonho. E essa pessoa criará asas e voará além das limitações impostas.

    O grande aliado da imaginação sempre foi o amor. Não existe uma criatura que não seja tocada pelo amor. Através desse sentimento sublime, o melhor de cada um de nós vem à tona. Não importa que seja o amor de um líder por seu povo, ou o amor romântico entre duas pessoas, ou o amor dos pais por seus filhos. O amor é a grande magia, capaz de tornar real aquilo que a imaginação é capaz de gerar.

    Este livro, escrito pela minha amiga Surya, é um despretensioso fruto da imaginação, que retoma lendas e personagens bem conhecidos por quem aprecia a literatura e a cultura pop, e lhes dá uma roupagem nova e instigante, com boas surpresas e um jeito diferente de contar histórias, sem utilizar fórmulas apelativas. A intenção aqui é prover algumas horas de diversão ao leitor, como se ele assistisse a um episódio de uma boa série de tevê, com emoção, aventura, magia e fantasia.

    Então, caro leitor, peço que, quando começar a ler as próximas páginas, relaxe e deixe-se levar para Yellow Rose e sua paisagem bucólica, com cheiro de rosas no ar, e encontre Liana, Dylan, Tye, Carmine, faça de conta que você já os conhece. Cumprimente-os efusivamente e não tenha medo de participar das fugas, das lutas, das intrigas. Você vai precisar de alguma magia no caminho, mas algumas dessas pessoas que você está para conhecer certamente vão querer te ajudar e você pode, verdadeiramente, confiar nelas... mas, cuidado, porque a traição pode estar onde você menos espera. Como saber quem é seu amigo ou inimigo em Yellow Rose?

    Se eu pudesse te dar um conselho, eu diria que você deve confiar no seu coração, fechar os olhos, e usar a sua imaginação.

    Ana Polessi é escritora e artista plástica, membro da Associação dos Escritores, Poetas, Pintores e Trovadores de Itatiba/SP, com várias premiações na área literária e como artista plástica.

    Os contos de fada são mais que reais, não porque nos dizem que os dragões existem, mas porque nos dizem que os dragões podem ser derrotados.

    Gilbert K. Chesterton

    Exceto o Peninha...   

    Surya

    ESCLARECIMENTOS / O QUE HÁ DE NOVO

    COM SPOILERS

    Há tempos, não imaginava que chegaria tão longe com essa saga.

    Escrevi dois contos complementares — O Primeiro Yänmir, em 2019, e A Sombra de Melinoë, em 2020 — e mais um livro, Dylan, está a caminho. Pretendo ir além enquanto os personagens forem tão interessantes e divertidos em contar sua história.

    Nessa 3ª edição, passamos um pente fino na revisão e melhoramos alguns diálogos. E mais: adaptei algumas sequências para que se encaixem com as próximas histórias. A mudança mais significativa foi a batalha contra os enormes dragões negros, os Wyverns, em Ēlýsion. Na 2ª edição, essa batalha ocorrera há nove mil anos; porém, nesta 3ª edição, decidi deixar sem uma data precisa, já que essa batalha foi retratada no conto complementar, O Primeiro Yänmir, que ainda não havia sido escrito. Mantive a idade de Kaill como no original da 2ª edição, 2.342 anos.

    Prólogo

    Segundo a previsão do tempo naquela semana, os dias seriam claros e ensolarados na cidade de LaCroix. Um dia comum, no condado de Bonita, um nome tão exuberante quanto as paisagens locais, com árvores em todos os cantos, casas antigas, cheiro de mar e, principalmente, tranquilidade.

    Nada poderia ser mais injusto com os meteorologistas… uma virada no tempo! Impotentes, eles assistiram à formação súbita de uma enorme nuvem escura sobre um dos bairros mais antigos, Yellow Rose.

    Granizo e trovões assustaram os poucos pedestres que andavam pelas ruas, e a ventania jogou areia em várias direções por toda a orla, afastando os moradores, que correram em busca de abrigo.

    O clima quase tropical de LaCroix atraía muitos turistas durante a primavera e o verão. A cidade esvaziava bastante fora da temporada, mas o turismo não era a sua única fonte de renda. O bairro de Yellow Rose era o mais conhecido, por causa de um produto famoso.

    Inaugurado no começo do século XIX, Yellow Rose ficou célebre pelo cultivo de flores e tornou-se um polo econômico e cultural de Bonita devido à colheita das rosas, principalmente as amarelas.

    As famílias se mudaram para o local naquela época, para viverem dessa produção agrícola.

    Com a chegada da Segunda Guerra Mundial, a economia sofreu reviravoltas e a produção de flores foi deixada de lado. Com a queda nas vendas, muitos habitantes abandonaram a região. Na década de 1950, as antigas famílias voltaram e deram continuidade à atividade no campo.

    O mercado imobiliário também é bastante agressivo nessa área litorânea, mas não conseguiu ainda destruir o antigo bairro, justamente porque os turistas preferem alugar os chalés históricos que resistiram ao tempo e que são muito mais charmosos que um padronizado quarto de hotel.

    Era o local perfeito para quem queria ficar longe da rotina estressante da metrópole e iniciar uma nova vida, com tranquilidade. Esse era o plano de Liana, que aos trinta e quatro anos e com uma história de muitas lutas e perdas, parecia ter encontrado seu lugar no mundo quando se mudou para um confortável chalé, há pouco mais de seis meses.

    Enfrentou desafios ao decidir seguir a carreira de segurança no hospital local, desobedecendo à vontade do irmão, que a considerava delicada demais para o cargo. Mesmo a contragosto ele acabou por apoiá-la, no final, derrotado pela convicção dela. Foi bom ter o irmão como seu principal opositor: o desafio foi maior. A parte mais difícil, no entanto, foi ser aceita pelos colegas, a maioria homens, fisicamente mais fortes que ela e bastante avessos a trabalhar com mulheres. Em seus primeiros dias no novo emprego, teve que ouvir as piadinhas e a linguagem vulgar que faziam questão de usar em sua frente. Ao mostrar-se capaz, o preconceito foi substituído por respeito.

    Ela usava os cabelos curtos, pouca maquiagem e muita perseverança. Aquele visual era uma escolha pessoal. Sentia-se mais segura assim, embora não conseguisse entender exatamente o motivo.

    Sua farda tinha um corte simples, mas Liana impunha autoridade ao usá-la.

    O único adorno que carregava, escondido embaixo da farda, era um colar de prata com um pingente em forma de lua crescente com uma estrelinha, que representavam o Casamento dos Céus — um local onde os deuses se encontram, segundo ouviu dizer.

    De qualquer maneira, a despeito de toda a simbologia, era um objeto de que Liana gostava muito, e usava sempre. Não se lembrava de ter começado um dia sem colocar o colar no pescoço. Quando ficava nervosa, levava a mão à peça, respirava fundo e conseguia se aquietar. Não sabia se era só impressão, mas isso a deixava mais serena.

    Morar distante do trabalho e de tudo também era algo importante. Apesar das idas e vindas obrigatórias com seu carro popular, adorava o sossego de que desfrutava ao chegar em seu lar.

    Vivia num chalé, dentro de uma chácara, em Yellow Rose. Por dentro, poucas divisórias e paredes. No térreo, uma ampla sala com cozinha integrada, com sofás largos e uma mesa de centro. Havia ainda dois quartos, uma suíte e um banheiro extra. E, na parte de cima, um mezanino com uma suíte e um quarto independente. Daí se chegava ao sótão, também mobiliado e bem iluminado, com uma claraboia.

    Os móveis coloniais pertenceram aos últimos moradores e Liana quis manter tudo como estava — salvo, é claro, as roupas e novos eletrodomésticos. Apaixonou-se pela beleza do lugar e não achou necessário mudar nada.

    Os antigos proprietários formavam um casal simpático. O Sr. Smith tinha cabelos brancos e um sorriso fácil. Ele e sua esposa, Mary, moravam naquela casa desde a década de 1950, época da retomada do bairro. O Sr. Smith vendeu a casa a Liana pela metade do preço, e justificou que ninguém mais comprava casas antigas. Liana não acreditou muito, afinal, o lugar era perfeito.

    Brian Smith estava bem satisfeito com a transação.

    — Fico muito contente por ter decidido morar em nossa cidade, Srta. Morgan! – disse, radiante. — Eu e minha esposa nos mudaremos para a capital, e não há espaço para acomodar tantos móveis antigos e grandes em um apartamento tão pequeno! Espero que lhe sejam de grande valia. Não temos mais idade para cuidar de uma casa desse tamanho, e estamos felizes por ter gostado dela do jeito que está.

    Liana ficou parada por alguns momentos, apreciando a beleza do lugar e, ao mesmo tempo, percebendo nos olhos dos ex-proprietários que eles ficariam bem. Sabia que estavam com o coração partido por terem que se mudar. O chalé ficou grande demais para o casal. Por outro lado, estavam aliviados em poderem entregar a casa para alguém que certamente garantiria que toda a memória do lugar seria preservada.

    Liana estava convicta de aquele ser o passo mais importante que já dera na vida. Ter um lugar só seu. No momento em que abriu a porta, ficou fascinada por aquela casa grande e, ao mesmo tempo, aconchegante.

    — Procuro um lugar tranquilo para ficar, Sr. Smith. Este último ano foi bem difícil, e eu quero um pouco de tranquilidade para me recuperar.

    — Sei que conseguirá encontrar o que quer, senhorita. Acredito que o seu futuro será maravilhoso, tanto quanto foi o nosso passado aqui. Tenho ótimos pressentimentos sobre você e fico muito feliz que nos encontrou.

    Liana mudou-se para Yellow Rose por incentivo do irmão, Tye, que achou que aquela cidade pequena seria o lugar perfeito para recomeçarem a vida.

    Seus pais morreram, vítimas de assaltantes, quando os dois ainda eram pequenos. Quando Tye atingiu a maioridade, tornou-se responsável pela irmã, mesmo sendo apenas dois anos mais velho. Era muito parecido com o pai, e seus cabelos eram castanhos, levemente claros. Grande atleta, adorava uma academia, praticava boxe e corrida.

    Nada como um dia após o outro para curar antigas feridas, tornando-os fortes e independentes.

    — Muito obrigada, Sr. Smith, pelas boas-vindas. – Liana sorriu ao relembrar a conclusão daquele acordo, o aperto de mão do Sr. Smith, o beijo e abraço carinhosos de sua esposa, Mary.

    Estava frio, e Liana usava um lenço branco florido para proteger-se. Mary encantou-se pelo acessório: — Liana, você é uma moça especial, tenha certeza. — Passou a mão pelo tecido macio. — E fica ainda mais linda usando esse lenço. — concluiu, com um sorriso.

    Liana ainda não se acostumara com a rotina pacata da região. Além de Beth, outro amigo, Mike, constantemente ligava para ela, contando as fofocas. Um tagarela, sempre gentil e preocupado com seu bem-estar.

    Ele morava sozinho em um bairro próximo e, assim como Liana, viera de uma cidade grande; por isso tinham bastante afinidade e conversavam sobre os bons tempos, os passeios aos shoppings, festas, bares e coisas do tipo.

    O Dr. Diego era outra pessoa de grande importância na vida de Liana. Há poucos meses ele fora responsável pelo seu atendimento, após um grave acidente de carro em uma das estradas próximas a Yellow Rose. Não teria se recuperado se não fosse por ele. Liana passou dois meses no hospital, em convalescença. Foi o Dr. Diego quem ofereceu a vaga de chefe administrativo a Tye, enquanto esteve internada. Se não fosse por isso, teria sido impossível para o irmão acompanhá-la.

    Dr. Diego é espanhol e, segundo alguns, é um dos mais antigos funcionários do hospital.

    Depois de recuperada, Liana e seu irmão decidiram se mudar definitivamente para Yellow Rose, e foi com o dinheiro da indenização do seguro, mais algumas poucas economias, que ela conseguiu comprar o chalé.

    Aparentemente, as maiores dificuldades já haviam sido superadas e Liana, agora, queria viver o presente; porém, aquele dia não estava sendo fácil, após a súbita mudança no clima. Teria que voltar ao trabalho em poucas horas, mas a chuva caía torrencialmente, com direito a raios, trovões e, como bônus, a falta de energia elétrica varando a noite e a madrugada.

    Dentro do antigo chalé, as janelas de madeira maciça chacoalhavam com força e quase não aguentavam a violência do vento. A chuva batia na vidraça, passando pela veneziana. Era impossível conciliar o sono.

    Liana andava de um lado para o outro, às duas horas da manhã, tentando impedir que a água encontrasse frestas e molhasse o chão de madeira. Havia velas acesas sobre o tampo da escrivaninha e da mesa de centro, mas não era suficiente; Liana usava a lanterna do celular para andar pela casa. Foi pegar um balde e panos de chão. A tarefa de secar a casa estava somente começando.

    Por sorte, o vento mudou de direção e a água parou de escorrer pela janela, mas a tempestade continuava forte.

    Liana tentou buscar alguma notícia sobre a previsão do tempo em algum aplicativo do celular, temendo que aquilo tudo fosse apenas o prenúncio de um ciclone tropical. Ela desistiu de procurar depois de perceber a ausência de sinal wi-fi ou de qualquer outro. Era melhor economizar a bateria do celular. Não sabia quando a energia elétrica voltaria.

    Entre uma passada e outra de pano no chão, Liana começou a pensar que seria uma boa ideia usar o power bank para o telefone. Pegou uma das velas e foi até a escrivaninha que havia na sala, próxima da cozinha. Abriu a gaveta para procurar a bateria portátil e demorou alguns minutos para achá-la bem no fundo do móvel, entre papéis e miudezas.

    — Preciso arranjar tempo para limpar essa gaveta!

    Liana segurou o dispositivo como se fosse uma barra de ouro e ligou-o. As luzes continuaram apagadas. O power bank estava totalmente descarregado.

    — Droga! — exclamou alto, irritada com a situação. Na mesma gaveta, do lado, havia uma lanterna. Outra decepção: sem pilhas. Colocou a mão direita na testa. Estresse. Respirou fundo.

    Fazia muito frio; parecia que todos enfrentavam uma tempestade na região, nada comum para aquela época do ano.

    Abraçou-se, esfregando os braços, tentando se proteger da friagem, aquecendo-se. Teve um mau pressentimento.

    Liana levou um susto ao ouvir um barulho, como uma pancada forte, vindo de algum lugar, dentro ou fora de casa; não dava para precisar. Colocou as mãos em cima da escrivaninha e esperou mais alguns segundos.

    Vez ou outra ouvia um galho de árvore bater no telhado, fazendo um barulho alto. Tudo estalava e rangia à sua volta. Respirou fundo novamente. Voltou a enrolar os braços ao redor do corpo. Teria que se acostumar com aquela iluminação precária, com velas. Olhou para os lados; sua sombra dançava com os movimentos da luz das chamas. Decidiu ir até o sofá. Sentou-se um pouco, ficou olhando em toda a volta.

    No último mês ela vinha enfrentando crises de dor de cabeça que duravam, em média, três dias, e seu amigo Mike lhe receitara alguns medicamentos por recomendação do Dr. Diego. Liana preferia beber seus famosos chás, mas, ultimamente, eles não mostravam bons resultados.

    Liana e Tye deixaram um grande grupo de amigos para trás, em especial Derek, que era muito querido por eles. A família que Liana conhecia agora era formada pelo irmão e pela cunhada, Sussie — loura, alta e bastante prestativa, ainda que um pouquinho esnobe, talvez devido à sua alta classe social. Tye achava Yellow Rose um paraíso, e sempre dizia que teriam grandes oportunidades ali. Ele repetia que a região cresceria por causa do turismo, e estariam ali para acompanhar essa expansão.

    Liana deitou-se de lado, segurando uma almofada. Ficou apenas ouvindo a chuva. Seus olhos se fecharam brevemente; estava exausta, mas o vento bateu com força embaixo da janela e mais um pouco de água da chuva entrou. Ela se levantou do confortável sofá, pegou o pano e voltou à rotina de secar e secar.

    Abaixada ao lado da janela, de joelhos, esfregava o chão. Cerrou os dentes, ironizando as palavras do irmão: Yellow Rose é o paraíso! Que maravilha! Abanou a cabeça. Estava mal-humorada porque começava a sentir calor pelo esforço, e sono.

    Secou o suor do rosto e torceu o pano pela última vez sobre o balde que estava no chão, ao seu lado. Olhou tristemente para o celular. A tela indicava o mínimo de bateria e, também, que já era hora de Liana ir trabalhar. Estava atrasada, na verdade, e mal pregara os olhos durante toda a noite.

    Levantou-se devagar, apoiando-se em um dos braços e nas pernas, como uma velha senhora, e caminhou cambaleando. A chuva parou de entrar, o vento mudara de novo. Ela pegou os panos molhados, os outros utensílios, e os empurrou para um canto.

    Foi até a mesa, pegou o celular. Abriu o aplicativo de mensagens para avisar à sua amiga Beth, enfermeira chefe, que se atrasaria. Seus olhos estavam se fechando e a dor de cabeça voltara. "Droga! E agora isso…", pensou, irritada.

    Segurou com firmeza o pingente de lua e estrela e respirou fundo. Passou o dedo pelo painel do celular e viu uma mensagem da amiga: "Duas pessoas faltaram no plantão anterior! O chefe está nervoso e mandou um recado mal-humorado...".

    Liana deu um suspiro e respondeu a mensagem: "Vou chegar mais tarde. Estou ainda sem dormir e o remédio que tomei me deu muito sono. Preciso descansar! Te vejo mais tarde. Avisa ao poderoso-chefão-imediato Jeff que chegarei atrasada, por favor!" Desligou o aparelho e o jogou dentro da bolsa, exclamando: — Não! Eu não preciso de você!

    O vento ganhou força novamente e acabou por abrir com violência uma janela que não estava bem trancada.

    — Não acredito! — Liana correu até a janela e notou algo se movendo do lado de fora da casa. Escutou um uivo de lobo. O animal devia estar perdido, com medo da tempestade. Sentiu pena do animal, mas não podia ajudá-lo nesse momento. Liana fechou a janela com dificuldade.

    Foi em direção ao fogão e colocou uma chaleira sobre o fogo, para esquentar água para um chá. Pensou em como era interessante a noção de tempo, porque aqueles poucos minutos em que aguardou o aquecimento da água pareceram eternos. Se estivesse trabalhando em seu computador, aqueles mesmos minutos passariam rápidos como um foguete.

    Colocou o sachê na xícara de água quente e, enquanto esperava a bebida ficar pronta, decidiu tomar um banho e vestir-se.

    Por sorte, antes de ficar sem energia elétrica, havia enchido a banheira usando a torneira quente. Colocou a mão na água, ainda estava morna. Aproveitou a chance e tomou um banho rápido. Enrolou-se na toalha e correu até a cozinha, para tomar o chá antes que esfriasse completamente. Enquanto isso, tentava secar o cabelo curto com uma toalha menor, já que não era possível usar o secador. O cabelo continuaria úmido por um bom tempo, o que só faria piorar ainda mais a dor de cabeça.

    Liana pegou uma das velas de cima da mesa e foi até seu quarto. Apanhou a primeira calça jeans com camiseta que encontrou pela frente. Em seguida, vestiu uma jaqueta jeans com forro xadrez que descansava em cima de uma cadeira. Era uma roupa muito quente e agradável de usar.

    Por fim, para se proteger do frio, decidiu cobrir a cabeça com o lenço branco com detalhes floridos, que guardava com todo cuidado na gaveta e era o acessório que mais amava depois do colar de lua e estrela.

    Cada vez que colocava o lenço, Liana tinha flashbacks difusos com uma pessoa que a presenteava com essa peça. Não conseguia lembrar seu rosto ou qualquer outro detalhe. Uma vez perguntou a Tye sobre isso, e até lhe mostrou o lenço, mas ele não tinha a menor ideia de como aquela peça chegara até ela.

    Era um pequeno fragmento de lembrança tão intenso que fazia com que Liana quase conseguisse sentir um toque suave no seu rosto, um roçar de dedos, um carinho de alguém.

    Ficou parada por um instante em frente ao espelho, e a imagem refletia enormes olheiras. Nem perderia tempo passando alguma base ou corretor. Quem sabe aquelas olheiras seriam ótimas aliadas para pedir uma folga pelo resto do dia seguinte? Passou a mão pelo cabelo preto, embaraçado, e fez uma careta para o espelho. "Não vou brigar com você hoje.", decidiu, enquanto penteava rapidamente os fios. Cobriu-os com o lenço e assoprou uma mecha teimosa que caiu na frente de seus olhos.

    Soltou um suspiro. Achou que ligar para a amiga, e não para o chefe, tornaria as coisas mais fáceis. Não foi o caso.

    Jeff, seu chefe imediato, era um certinho puxa-saco. Exibido e preguiçoso, o típico funcionário que adora estar numa posição de chefia para poder delegar tarefas — ou seja, fazer o mínimo esforço possível para ganhar a vida. Por várias vezes Liana quebrou galhos para ele, consertando seus erros. "Pelo menos ele é honesto.", dizia Tye, que supervisionava Jeff. Liana, porém, ainda não chegara a uma conclusão sobre a honestidade do chefe.

    Respirou fundo. Não teria como escapar do plantão da madrugada. Seria ruim para Beth se houvesse mais uma falta de funcionário no turno dela. Tratou de resgatar o celular da bolsa, ligá-lo e mandar nova mensagem para Beth: "Creio que não será problema chegar mais tarde hoje; me espere, Beth. Kisses."

    Deu duas batidas na tela do aparelho. Mudou de ideia. Decidiu mandar um áudio para a amiga: — Esqueça minha última mensagem! Não quero o Jeff reclamando de mim. Espera, que estou chegando! Kisses!

    Entretanto, suas pálpebras começaram a pesar mais uma vez, e a cabeça parecia querer explodir. Ela levou a mão ao colar, de maneira instintiva. Ajudava, quando se sentia nervosa.

    Beth costumava dizer que aquela correntinha carregava um significado místico. "É um símbolo de união, renovação., explicou uma vez a Liana, enquanto almoçavam. Onde você a comprou?"

    Disso ela não se lembrava com clareza, também. E, engraçado, era uma pergunta simples, mas que a perturbava. O lenço e o colar simplesmente apareceram. Provavelmente os comprara em alguma feira de artesanato, como dizia o irmão. Ou não? Eram preciosos demais para ela, para terem uma origem tão banal.

    De modo geral, Liana sentia-se desconfortável quando lhe faziam qualquer pergunta sobre seu passado. Era como se faltasse uma grande parte da sua história... e faltava. Dr. Diego explicava essa sensação como um efeito colateral do acidente, e foi por isso que Liana decidiu aceitar o emprego no hospital: para compensar o vazio ao ver gente recuperando a saúde ou consolando-se das perdas. Proteger aqueles pacientes, e também os médicos e enfermeiros, ajudava Liana a recuperar sua segurança e autoestima.

    Uma vez por semana os seguranças assumiam o plantão da madrugada, horário reservado somente para as emergências. Saindo de casa naquele momento, chegaria com vinte minutos, meia hora de atraso. Compensaria essa diferença de horas no dia seguinte. E, se a dor piorasse... pelo menos já estaria no hospital.

    Foi em direção à mesa de centro, pegou o relógio de pulso que estava sobre ela e o vestiu. Era um modelo retrô, e ela adorava relógios. Em seguida, pegou também a mochila com seu sobrenome bordado, MORGAN — de Liana Matthew Morgan, especialista em resolução de conflitos. Soava imponente. Sorriu de leve; no fundo, ela se sentia um pouco incomodada com esse nome de ares aristocráticos.

    Deu alguns passos, esquadrinhou a área ao seu redor: tudo parecia estar em ordem. As janelas estavam bem trancadas e o piso estava seco.

    Sentiu alívio por ter conseguido dar conta dessa parte doméstica de sua vida e partiu para o trabalho.

    Foi até o carro, que ficava estacionado do lado de fora da garagem para facilitar suas saídas. Afinal, naquele fim de mundo, quem se preocuparia em roubar um carro? Era até normal deixar as janelas abertas, ou a chave no contato. Liana acabava usando a garagem como depósito.

    Colocou o celular, desligado, no carregador do painel do carro. Em minutos estaria a caminho do hospital.

    Pegou a estrada de Howard Hill, local não muito distante do Vale Arco-Íris, uma das paisagens mais lindas da região. A escuridão era densa e a neblina se abria e fechava ao redor do carro enquanto ele se deslocava, como um imenso pântano sombrio. Vez ou outra um raio cortava o céu e iluminava pequenos trechos de estrada. Liana dirigia devagar. Nunca enfrentara um tempo desses em Yellow Rose.

    Batia de leve os dedos no volante e cantarolava baixinho When you Love a Woman, da banda Journey, para espantar o sono e a solidão, porque o rádio só emitia chiados.

    In my life I see where I've been

    I said that I'd never fall again

    Within myself I was wrong

    My searchin' ain't over... over

    Olhou em volta, na escuridão. Pelo jeito, somente ela resolvera se aventurar por ali naquele horário. O asfalto permanecia molhado e um pouco escorregadio, parecia ter uma fina película de gelo recobrindo tudo — o que seria bem incomum para Yellow Rose naquela época do ano.

    Dirigia há alguns minutos, e sentia a pista cada vez mais perigosa. Diminuiu mais a velocidade. Começou a ficar angustiada. Aquela escuridão era bastante opressiva... e o estranho é que ela gostava muito das noites da região, pois era possível ver as estrelas. Mas, no momento, não era possível ver um palmo diante do nariz. O vidro permanecia embaçado, e ela começou a sentir medo. Não um sentimento específico, mas algo que apertava seu estômago, o coração, e enrolava-se, asfixiante, em sua garganta. Estava tendo um ataque de pânico.

    Fazia muito tempo que não tinha uma crise dessas. Respirar, respirar, a grande técnica era a respiração. De repente o automóvel começou a sacudir, e ela teve a impressão de que havia passado sobre mil buracos. Guiou o carro para o acostamento e parou.

    Por que se sentia assim? Respirou fundo; acalmou-se. Não havia nada a temer. Estava em Yellow Rose, numa estrada que conhecia bem. Esfregou as têmporas, tentando suavizar a dor que já havia se tornado parte dela. Liana controlou-se, sentindo a pulsação voltar ao normal.

    Seu irmão dizia que ela tinha crises de pânico antes do acidente… O tal acidente. Cada vez que ela ouvia falar sobre ele, era como se lhe contassem a história de outra pessoa. Isso lhe causava crises de ansiedade à noite, mas ela não dizia nada a Tye. Não queria preocupá-lo com esses detalhes.

    Liana viu alguma coisa se movendo mais adiante, quando alguns raios desenharam um bordado bonito e brilhante sobre a estrada.

    Ela ligou o limpador de para-brisa e esfregou a manga da jaqueta no vidro. Não ajudou; ela não tinha uma visão melhor do que quer que estivesse lá fora. O relógio do carro marcava quatro horas da manhã, mais nove minutos.

    Liana deslizou as mãos pelo rosto e resolveu sair do carro, para ver por sobre o que ela havia passado. Soltou o cinto, pegou o celular e percebeu que a bateria quase não havia carregado, ainda estava praticamente no fim. Resmungou, abriu o porta-luvas e pegou a lanterna.

    De novo ela teve a sensação de movimento ao seu redor. Aquilo era arrepiante. A escuridão parecia viscosa. Ela ligou a lanterna e apontou para o chão, atrás do carro. Havia grandes galhos quebrados na estrada, provavelmente arrancados e lançados ali pela tempestade.

    Ela deu meia-volta e olhou para frente, apertando os olhos. Desligou a lanterna, por instinto. Agora ela conseguia ver o horizonte com as montanhas delineadas, e a escuridão parecia feita de tecidos escuros sobrepostos, translúcidos. Entretanto, havia no meio disso tudo uma mancha se movendo rápido, e dois pequenos pontos de luz avermelhada, como olhos, voltando-se para ela, fixos. Uma mancha escura, opaca, se tornando maior, porque estava se aproximando.

    Liana tremeu; sabia que estava numa área de reserva florestal. Aquilo devia ser um grande lobo, ou talvez um urso! O bicho devia estar assustado com a tempestade ou, pior, com fome. Liana voltou para dentro do carro, ligou-o, começou a buzinar e o colocou na estrada novamente. Esperava que, incomodado, o animal fosse embora. Não estava apenas tentando afastá-lo dela, mas pensava na segurança dele, que poderia ser atropelado por outro veículo ou até mesmo causar um grave acidente.

    O carro levou um baque. Provavelmente passou por outro galho, mas desta vez escorregou e Liana puxou com força o freio de mão. Nesse momento, a sombra densa com olhos de fogo passou do seu lado. Ela não sabia dizer que bicho era aquele, mas lhe deu arrepios na espinha.

    Aquilo sumiu rápido na escuridão, e logo em seguida Liana ouviu um ruído estranho, como um gemido. Ela saiu do carro novamente, sem hesitar. Havia um homem caído adiante, machucado. Olhou com atenção e viu que havia uma mancha de sangue na calça dele, na altura da coxa, e a mancha escura parecia se espalhar mais.

    Liana não entendia; será que o baque... "Meu Deus, eu atropelei esse homem? O que ele estava fazendo aqui na estrada!?"

    Instintivamente, deu um soco no capô do carro, nervosa. Balançou a cabeça, aproximou-se do homem e abaixou-se ao seu lado, para verificar seu estado.

    Era um homem jovem, e Liana avaliou que deveria ser um pouco mais velho que ela. Lutava para ficar consciente, gemendo de dor. Notou a presença da mulher e murmurou: — Ajude-me, por favor! — Ele estava com os olhos semicerrados e em choque, tremendo, com dificuldade para respirar. Abriu os olhos, buscando algo ao seu redor, assustado. Parecia procurar alguma coisa.

    Liana estava alerta. Ouvira vários relatos de assaltos de madrugada, em bairros mais distantes. E se essa prática estivesse chegando a Yellow Rose? Por alguns segundos pensou que seria melhor correr para o carro e pegar a arma. Esse cara podia ser uma isca! Não, ela ponderou; ele estava genuinamente ferido. Talvez aquele animal estivesse por ali atraído pelo cheiro de sangue. Liana não podia abandonar o homem naquela estrada, teria que levá-lo para o hospital.

    Notou que seu carro passara por mais galhos na estrada, e que não havia sido ela a causadora dos ferimentos do rapaz. "Teve sorte de eu estar por aqui!", pensou.

    Nisso, ele pousou os olhos nela, surpreso, como se só então tivesse visto que havia alguém com ele. Agarrou com força o punho esquerdo de Liana. Ela não recuou; sentia o desespero do homem diante dela. Ele olhou bem para ela e ficou agitado, como se quisesse dizer algo, mas se conteve quando Liana lhe disse: — Senhor, tudo vai ficar bem. Vou levá-lo ao hospital. Fique calmo, por favor. Eu trabalho no hospital local. Consegue me entender?

    Liana fez com que ele se deitasse no chão novamente.

    — Pode deixar, vou ajudá-lo. — Liana decidiu examiná-lo, sabia exatamente o que fazer. Procurou acalmá-lo, pedindo para que não se mexesse. Além do ferimento na perna, ele poderia ter uma lesão interna, ossos quebrados. O mínimo movimento poderia prejudicar mais o seu estado. Ficou preocupada quando ele segurou seu punho mais firmemente. Tremia. Não tirava os olhos dela.

    — Não vou deixá-lo. Sente dor, não sente? Onde? — suavemente, fez com que ele largasse seu punho. Liana segurou as mãos dele nas suas. — Consegue me dizer o que houve? Consegue me dizer o seu nome?

    Ele tinha olhos azuis, que brilhavam sob a luz dos faróis do carro como se estivessem cheios de lágrimas.

    O homem engoliu em seco; parecia mais resignado agora, menos desesperado. Balançou a cabeça negativamente e falou, numa voz baixa e entrecortada: — Sinto dor em minha perna. Não consigo me mover. Não entendo o que houve, estou... confuso... Mas você está aqui! — Ele esboçou um sorriso.

    Liana notou que ele não estava alcoolizado. Também não estava armado. Aparentemente não havia mais ninguém ao redor, e fazia muito frio. — Sim, estou aqui, moço. Você deve estar em choque.

    Liana piscava com força, sentindo dificuldade para enxergar alguma coisa. O ambiente noturno parecia feito de véus escuros e gelados. Junto ao acostamento ela só conseguia ver terra, mato e árvores.

    — De onde você veio? — Liana ergueu a cabeça e percebeu alguma coisa se destacando da escuridão, mais à frente. Pedaços de névoa se desprendiam, revelando formas. Havia, pelo menos, dois carros na pista. Não conseguia explicar como não enxergara os automóveis antes.

    Aparentemente, o acidente ocorrera há poucos minutos e o rapaz era uma das vítimas.

    Ela tentou se levantar, mas ele a impediu, segurando seu braço com força. — Por favor, fique! — a voz dele soou rouca e aflita.

    Ele tremia muito e Liana pensou em colocar sua jaqueta sobre ele, mas o homem era bem maior que ela; mal daria para cobri-lo. Talvez tivesse algo no carro, mas precisava verificar se não havia ninguém em estado pior que o dele.

    — Escute: eu não vou embora, não se preocupe! Volto logo para ajudar você! Eu prometo! — Ele soltou o braço dela devagar, com um olhar desconfiado e triste. Algumas lágrimas correram sobre seu rosto depois que Liana se afastou, mas misturaram-se com a garoa fraca que começou a cair. Liana foi até o carro para procurar alguma coisa que pudesse usar para manter o paciente aquecido e protegido. Achou uma pequena manta no banco de trás.

    Voltou para junto dele e abriu a coberta, esticando-a sobre ele. Só conseguiu cobri-lo dos ombros aos joelhos.

    Ele gemeu de dor e Liana segurou a mão dele novamente, o acalmou e afastou-se dele devagar: — Não se mexa, tá? Preciso verificar se há mais feridos por ali.

    — Tome cuidado! Tome cuidado, por favor!

    Liana ficou impressionada com o desespero dele. Devia estar com medo de morrer assim... No meio do nada, sob o olhar de uma desconhecida. Esse cara devia ter uma família. Liana deixou esses pensamentos de lado e levantou-se devagar.

    — Não se preocupe! Eu volto rápido.

    O que poderia ter ocorrido ali? Aproximou-se cautelosamente dos carros.

    — Tem alguém aí? — gritava, olhando com atenção para dentro dos veículos, tentando ouvir algum som ou perceber algum movimento. Nada.

    Não havia mais ninguém além do rapaz ferido. Os carros

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