Extrafiscalidade: interpretação, aplicação e integração
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Extrafiscalidade - Luniza Carvalho do Nascimento
1 EXTRAFISCALIDADE
1.1 DEFINIÇÃO JURÍDICA
O termo extrafiscal ganhou força e tornou-se expressão quase que universal, convertendo-se em um conceito ampliado, sempre utilizado onde existe uma política pública social ou econômica, sobretudo nas questões relacionadas ao meio ambiente. Em decorrência dessa utilização como verdadeiro guarda-chuva de definições, percebe-se cada vez mais a manifestação de um conceito ambíguo, vago e incerto¹¹.
Como consequência nefasta da amplitude terminológica, há quem sustente¹² o vazio do significado em contextos não acobertados pelas definições e classificações atuais. A ideia de que a dicotomia entre fiscalidade e extrafiscalidade não é mais suficiente para classificar tributos¹³ decorre da complexidade e evolução do próprio sistema tributário.
Apesar da ausência de clareza do seu significado e das situações que podem nele ser inseridas, cuida-se de um instituto cuja relevância reflete a necessidade de um estudo aprofundado, a fim de delimitar sentidos e conceitos que se aproximam da extrafiscalidade, mas que com ela não se confundem. A falta de delimitação inteligível de diversos termos similares acarreta confusão, pois ora o termo se trata de classificação de efeitos, ora de tributos, ora de finalidades, ora de funções, ora de normas etc. Para se chegar a uma conclusão sobre o tema, é necessário esclarecer e entender questões doutrinárias, classificações e a origem do estudo acerca do assunto.
Em obra pioneira sobre o tema, Wagner estabeleceu uma nova percepção acerca da tributação, qual seja, a ideia de que impostos serviriam a fins sociopolíticos¹⁴. De acordo com o autor, o imposto também poderia funcionar como mecanismo eficaz para distribuição de renda e de patrimônio, tendo em vista a ineficiência do mercado e da concorrência no alcance de tais objetivos¹⁵.
Certo é que as normas jurídicas, enquanto meios para a consecução de fins, confirmam a ideia de que elas devem ser adequadas ao alcance daquilo que se tem como propósito¹⁶. Assim, se as normas servem para atingir fins, então, elas devem funcionar como instrumentos aptos para alcançá-los, pois, do contrário, podem ser qualificadas como um verdadeiro nada, que sequer prestam a algo. Ora, se o Direito surgiu para garantir segurança às relações sociais de acordo com valores estruturados e construídos socialmente, então, apresenta-se como um mecanismo hábil a controlar o comportamento humano ¹⁷.
Desse modo, não poderia escapar ao Direito Tributário a noção de que é também instrumento estatal apto a desempenhar funções cujo objetivo é o alcance de finalidades constitucionais. Historicamente, é marcado como mecanismo de obtenção de receita pública, mas que também pode, e deve, ser utilizado como ferramenta para a conquista de objetivos sociais e econômicos desejados pelo ordenamento jurídico. Não há dúvida de que a arrecadação de receita para o custeio de necessidades coletivas foi a razão primeira para a cobrança de exações, as quais eram exigidas, já na antiguidade, sobre mercadorias primárias consumidas¹⁸.
Todavia, o pensamento de Wagner, ainda na segunda metade do século XIX, referente à instrumentalização do imposto para corrigir distorções de mercado e livre concorrência, provocando deficiências na distribuição de renda e patrimônio¹⁹ era inovador. Com base nisso, constatou em sua obra que o Estado precisaria aproveitar-se da tributação justamente para consertar as desigualdades surgidas a partir do regime mercantil da época²⁰.
Seligman, citando Wagner, destacou o elemento sociopolítico ou o dever de regulação por meio da tributação para corrigir a distribuição e o uso da propriedade privada²¹. No clássico "Essays in taxation", Seligman reconhece a possibilidade de impostos terem como propósito a regulação, mas é contrário à ideia de classificar exações públicas tendo como base a finalidade intentada com elas²². A justificativa para tanto é a de que, no fim das contas, para a noção de imposto não importa a intenção de arrecadar ou de regular, mas a pretensão de alcançar benefícios especiais ou comuns a todos²³.
O início da controvérsia sobre o tema procurava compreender juridicamente o fenômeno segundo o qual a tributação era utilizada para fins outros que não a arrecadação. Percebe-se que a instrumentalização da tributação para o alcance de fins econômicos e sociopolíticos é, há muito tempo, objeto de estudos jurídicos, porém a discussão sobre meios, função e efeitos foi sempre secundária ou sequer mencionada.
Em que pese a preocupação sobre finalidades, em uma das primeiras obras cuja denominação extrafiscal foi utilizada²⁴, o termo era significado como uma função nova das finanças sociais. O estudo, revolucionário à época, era qualificado como perspicaz e ousado em comparação aos temas habituais estudados nessa área das ciências sociais²⁵.
Em rigor, extrafiscalidade é a oposição de fiscalidade, manifestando-se em tudo que não esteja vinculado à segunda. O prefixo extra
tem o significado de algo que está fora, retratando uma realidade que vai além do nome que a precede. A polarização fazia sentido quando, de um lado, existiam juristas que defendiam que a única finalidade da tributação era a produção de receita para o Estado e, de outro²⁶, juristas que sustentavam a possibilidade de tributos funcionarem como instrumentos para o alcance de outros fins que não a arrecadação²⁷.
Apesar disso, no sentido jurídico há de se recorrer ao ordenamento, cuja análise será imprescindível na construção do significado de extrafiscalidade. Nesse sentido, esta definição estará ligada a esse dado de referência, qual seja, o direito interpretado e reconstruído a partir das normas vigentes em um determinado momento histórico e em um determinado território. Somente dessa forma será possível apreender satisfatoriamente este fenômeno.
Importante considerar, portanto, que na linguagem jurídica delimita-se o termo de forma relevante: a extrafiscalidade é resultado da atividade tributária. A extrafiscalidade alheia à tributação não possui significação e, por esse motivo, estão ligadas de forma indissociável, uma vez que aquela representa uma manifestação específica desta²⁸.
À primeira vista, extrafiscalidade pode ser entendida como uma técnica extraída de atos normativos primários que, por meio da tributação, apresentam finalidade não arrecadatória²⁹. Yamashita e Tipke entendem que a diferença entre tributos fiscais e extrafiscais é extraída do processo hermenêutico teleológico. Com base na teoria da estratificação objetiva segundo a função
de Tipke, além da finalidade de gerar receita ao erário, as normas tributárias também exerceriam função de repartir a necessidade financeira de acordo com os critérios de justiça distributiva e função de buscar concretizar finalidade político-econômica. Sendo assim, as normas com fins fiscais seriam aquelas que estão em consonância com a capacidade contributiva³⁰.
Velloso, por outro lado, entende que extrafiscalidade é o fenômeno vinculado ao Direito Tributário cuja finalidade essencial da tributação é qualquer outra que não a arrecadação. Tributar é, pois, um mecanismo de criação de políticas públicas, cuja justificativa se baseia no alcance de finalidades constitucionais³¹. Defendendo a diferença também a partir dos fins, Ávila entende que a norma tributária com o objetivo de obter receitas denomina-se norma com finalidade fiscal (Fiskalzwecknorm)
ou norma repartidora de encargo (Lastenausteilungsnorm)
, ao passo que as normas diretivas (Lenkungsnormen)
perseguem indireta e motivadamente finalidades administrativas concretas³².
González, em defesa da existência de tributos extrafiscais, argumenta a sua caracterização pela predominância do elemento extrafiscal sobre o fiscal, cujo ônus é o sacrifício de parte da arrecadação em busca da persecução do fim que está sendo objetivado. Para o jurista, um tributo extrafiscal pode ser assim classificado quando é instituído com fins não arrecadatórios ou, mesmo quando se pretende que sua finalidade seja fiscal, produz efeitos extrafiscais³³.
Na concepção de Ataliba, a extrafiscalidade seria a utilização deliberada dos mecanismos tributários com objetivos não fiscais, ou seja, aquelas finalidades regulatórias de comportamentos sociais³⁴. É importante notar que, inobstante fale de finalidades, o cerne da sua definição repousa na possibilidade de regular comportamentos.
Nesse sentido, Baleeiro escreveu sobre a extrafiscalidade enquanto uma técnica, ora inserida no poder de polícia para desestimular condutas, ora para intervir na economia ou promover a efetivação de direitos constitucionais, o que, de qualquer forma, ensejaria um estudo sobre os efeitos de cada instrumento utilizado de acordo com as circunstâncias e tendências do cenário econômico³⁵.
Outrossim, Rothmann destaca que extrafiscalidade é a aplicação de leis tributárias com o intuito de alterar o comportamento dos cidadãos, desconsiderando a arrecadação de receita³⁶. Greco, igualmente, escreve sobre o intuito de provocar comportamentos como resposta a impulsos prescritos pela norma tributária, cuja importância é salutar para o correto controle de igualdade. Isso porque o fenômeno revelaria peculiaridades e efeitos divergentes das normas tributárias fiscais, ensejando uma necessária justificativa de ações constitucionais diferenciadas e adequadas³⁷.
Das várias definições, apresentaram-se classificações com base em efeitos, com base em fins ou até com base nos dois. Schoueri propõe o seguinte enfoque para a celeuma: no lugar de identificarem-se normas tributárias por sua finalidade, estuda-se o efeito indutor das normas tributárias
³⁸ e, mais adiante, destaca a possibilidade de normas indutoras terem função distribuidora ou simplificadora
, sem que isso acarrete prejuízo para o estudo. Arremata com a posição de que a identificação de normas tributárias indutoras ocorre a partir do reconhecimento de sua função, cujo corte metodológico servirá para ressaltar uma função, dentre as várias, que a norma tributária desempenha.
Nota-se, pela leitura, a indicação do reconhecimento das referidas normas tributárias indutoras, ora a partir de seu efeito e ora a partir de sua função. Além disso, na jurisprudência³⁹, a confusão entre efeitos, finalidades e funções é ainda mais preocupante, tendo em vista a importância do controle da extrafiscalidade, no sentido de sua interpretação, aplicação e integração, precisamente para evitar desigualdades injustificadas e práticas arbitrárias.
Diante disso, percebe-se a existência de definições amplas e restritas a respeito do assunto. As construções restritas compreendem a extrafiscalidade como fenômeno que se refere às normas jurídicas com finalidades diversas da arrecadação, ao passo que as definições amplas compreendem o caráter finalista das normas, incorporando os efeitos extrafiscais das normas tributárias⁴⁰.
Para Velloso, o fenômeno se diferencia da fiscalidade pela busca de fins alheios à arrecadação e, com base nisso, a extrafiscalidade pode ser classificada em lato e stricto sensu. Nesse espeque, a extrafiscalidade lato sensu se caracterizaria pelo simples alcance de fins constitucionais por meio da tributação, enquanto a stricto sensu seria aquela que causaria conflitos com os princípios da justiça tributária⁴¹. Note-se que, no seu entender, existem situações que não geram desigualdades e ainda assim podem ser classificadas como extrafiscais.
Interessa, ademais, reforçar a linha tênue entre a extrafiscalidade e a fiscalidade, já que mesmo quando se trata de uma atividade essencialmente fiscal, ainda existirá extrafiscalidade, e vice-versa. Para Marins e Teodorovicz, a extrafiscalidade e a fiscalidade não se isolam, e sim o oposto, estão lado a lado, pelo que seria uma tarefa quase impossível separá-las⁴². É plausível falar, nesse sentido, em graus de fiscalidade e de extrafiscalidade
, uma vez que os efeitos econômicos não poderiam ser dissociados puramente em fiscais ou extrafiscais⁴³.
Destarte, a definição jurídica do termo é tecnicamente relevante, econômica e socialmente benéfica e constitucionalmente delimitada⁴⁴, pelo que imprescindível à exposição dos elementos essenciais que caracterizam o fenômeno para, em seguida, circunscrever um significado adequado para extrafiscalidade.
Alabern, ao falar especificamente sobre tributo extrafiscal, elenca três características essenciais para que se configure como tal. A princípio, o tributo deve buscar uma finalidade não arrecadatória que deve ser inferida dos enunciados da lei que o regula ou até mesmo na exposição de motivos, feita pelo legislador. Em seguida, o arcabouço do tributo deve conter elementos marcantes e essenciais, que acaso dele fossem retirados não haveria lógica interna para sua existência. Entende, com isso, que tais elementos constituem um aspecto essencial na conformação do tributo, e não meramente uma consequência prática dele. Por último, afirma que o tributo deve incentivar comportamentos que efetivamente promovam a finalidade extrafiscal intentada, por meio de mecanismos adequados para