Humanização da assistência ao parto: teoria e prática: gênero, direitos humanos, desafios e lições aprendidas na implementação de práticas humanizadas no SUS
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Sobre este e-book
Duas décadas depois, podemos dizer que esses abusos se tornaram não apenas visíveis, mas também quantificáveis, graças à popularização das evidências científicas e do reconhecimento dos direitos das mulheres à sua integridade corporal e a tomar decisões informadas.
Apesar de todas as adversidades políticas, de ataques ao SUS e ao feminismo, podemos dizer que o movimento de humanização do parto conseguiu enormes mudanças. Ainda que mais lentamente e com mais contradições do que desejamos, ao reivindicarmos nossa autoridade de falar sobre nossa experiência como pacientes e de produzir conhecimento científico inovador e voltado à ação, temos mudado a assistência e a experiência de muitas mulheres e famílias, em que antes só havia a escolha entre um parto violento e uma "desnecesárea".
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Humanização da assistência ao parto - Simone G. Diniz
CAPÍTULO 1
1. INTRODUÇÃO E CONTEXTO
1.1. A CRISE DO MODELO DE ASSISTÊNCIA AO PARTO E AS PROPOSTAS DE MUDANÇA DE PARADIGMA
No final do século 20, cresce em todo o mundo um movimento por oferecer uma assistência à saúde baseada na evidência empírica da segurança e da efetividade dos procedimentos, em todas as especialidades médicas. No caso da assistência à gravidez e ao parto, esta preocupação com a evidência é ainda mais crucial, uma vez que, diferentemente das outras especialidades, estas práticas irão intervir sobre mulheres e crianças supostamente saudáveis, e num processo supostamente normal, o parto (Chalmers, 1992).
Mas a própria definição do que seria um parto normal não é universal ou facilmente padronizável. A partir da crença de que um parto só pode ser considerado normal em retrospecto
(Rezende, 1974), na segunda metade do século 20, houve uma rápida expansão no uso de muitas tecnologias com a finalidade de desencadear, aumentar, acelerar, regular ou monitorar o processo fisiológico do parto, com o objetivo de torná-lo mais normal
e melhorar a saúde de mães e crianças. Neste processo, tanto em países desenvolvidos como nos em desenvolvimento, as tentativas de melhorar a qualidade da assistência ao parto muitas vezes levaram à adoção acrítica de intervenções inapropriadas, desnecessárias e às vezes arriscadas, sem a devida avaliação de sua efetividade ou segurança. (Enkin, 1995, 2000; WHO, 1996).
A sistematização da reflexão crítica sobre este modelo de assistência ao parto se inicia, quando, no contexto do Ano Internacional da Criança (1979), é criado na Europa um comitê regional para estudar os limites das intervenções propostas para reduzir a morbidade e a mortalidade perinatal e materna naquele continente. Ali se detectavam problemas como o aumento de custos, sem a respectiva melhoria, nos resultados da assistência, a falta de consenso sobre os melhores procedimentos e a extrema variabilidade geográfica de opiniões. A partir deste comitê, vários grupos de profissionais passam a se organizar para sistematizar os estudos de eficácia e segurança na assistência à gravidez, ao parto e pós-parto, iniciando um esforço que se estendeu mundialmente, apoiado pela Organização Mundial da Saúde, OMS (WHO, 1985; Chalmers, 1992; Cochrane Collaboration, 1996; Wagner, 1997).
No decorrer do processo, foram incorporados nos grupos de trabalhos, além dos especialistas, representantes de grupos de mulheres e de organizações de consumidores dos serviços de saúde, que vieram a cumprir um importante papel neste esforço (Wagner, 1997).
Este processo envolveu a utilização de estudos randomizados controlados (randomized controlled trials) como método preferencial de pesquisa, e o uso da metanálise como instrumento de sumarização sistemática das pesquisas quantitativas existentes. Um dos seus resultados mais importantes foi a publicação da revisão sistemática de cerca de 40.000 estudos sobre 275 práticas de assistência perinatal, que foram classificadas quanto à sua efetividade e segurança. Este trabalho de uma década, coordenado por obstetras⁷, contou com o esforço conjunto de mais de quatrocentos pesquisadores (incluindo obstetras, pediatras, enfermeiras, estatísticos, epidemiologistas, cientistas sociais, parteiras, etc.), que realizaram uma revisão exaustiva de todos os estudos publicados sobre o tema desde 1950 (Johnson, 1997). O trabalho inteiro está disponível em publicações eletrônicas (página e CD) desde a segunda metade da década de 90.
O grupo que trabalhou as revisões sistemática sobre gravidez e parto foi o primeiro de centenas de outros grupos que se organizaram nos anos seguintes para levantar as evidência sobre a eficácia e a segurança de procedimentos em todas as especialidades médicas. Este movimento e seus desdobramentos ficou conhecido como medicina baseada na evidência científica e se organizou em grande medida sob a influência e o entusiasmo do epidemiologista clínico britânico Archie Cochrane⁸. A colaboração internacional de grupos de pesquisa que compõe este esforço de sistematização e divulgação da evidência científica disponível tomaram o nome de Iniciativa Cochrane
e Biblioteca Cochrane
em sua homenagem.
A partir mesmo da metade da década de 80, com a publicação da primeira fase destes trabalhos (WHO, 1985; 1986), a avaliação científica das práticas de assistência vem evidenciando a efetividade e a segurança de uma atenção ao parto com um mínimo de, se alguma, intervenção sobre a fisiologia, e de muitos procedimentos centrados nas necessidades das parturientes - ao invés de organizados em função das necessidades das instituições de assistência. Isto resultou em um novo paradigma, que propõe que
O objetivo da assistência é obter uma mãe e uma criança saudáveis com o mínimo possível de intervenção que seja compatível com a segurança. Esta abordagem implica que no parto normal deve haver uma razão válida para interferir sobre o processo natural
(WHO, 1996: 4).
Com base nesta concepção de assistência, qualquer intervenção sobre a fisiologia só deve ser feita quando se prova mais segura e/ou efetiva que a não-intervenção. Com o avanço dos estudos nesta direção, a arguição sobre segurança e eficácia estende-se virtualmente a todos os procedimentos de rotina na assistência à gravidez e ao parto.
A arguição da segurança e da efetividade se estendeu sobre a assistência pré-natal, onde se constatou que, em grande medida, a extensão e o conteúdo da atenção pré-natal, incluindo o número de consultas e os exames solicitados, são ritualísticos ao invés de baseados na evidência. Esta constatação impõe a necessidade de identificar os elementos da assistência que são de fato provados como efetivos na prevenção ou no alívio de efeitos adversos na mãe e na criança (Villar, J, 1997).
Neste processo, o campo da assistência à gravidez e ao parto acumulou o maior volume de avaliação sistemática já desenvolvido como especialidade médica até então (Enkin, 1996; Johnson, 1997).
Em meados da década de 90, a OMS passa a divulgar amplamente documentos baseados nestes estudos, classificando os procedimentos de rotina em quatro categorias:
A- Condutas que são claramente úteis e que deveriam ser encorajadas;
B- Condutas claramente prejudiciais ou ineficazes e que deveriam ser eliminadas;
C- Condutas sem evidência suficiente para apoiar uma recomendação e que, deveriam ser usadas com precaução, enquanto pesquisas adicionais comprovem o assunto; e
D- Condutas frequentemente utilizadas de forma inapropriadas, provocando mais dano que benefício.
A classificação buscou tornar mais objetiva a consulta por profissionais a respeito de suas decisões na assistência. Este trabalho foi publicado em suas várias versões, inclusive pela OMS, e algumas delas são conhecidos como recomendações da OMS
.
Por recomendações da OMS
estamos considerando, para efeito deste estudo, quatro documentos: o primeiro é Appropriate Technology for Birth. (World Health Organization. 1985) também conhecido como Carta de Fortaleza
, foi o primeiro manifesto
internacional desta corrente, está incluído como anexo, em português. O segundo, Recomendations for Appropriate Technology Following Birth (1986), também conhecido como Carta de Trieste, é uma versão para a neonatologia do que a Carta de Fortaleza para a obstetrícia. O terceiro é o Care in Normal Birth: A Practical Guide (Maternal and Newborn Health/ Safe Motherhood Unit. WHO, 1996); este trabalho é a versão completa e atualizada da Iniciativa Cochrane nesta área, sistematizando todos os procedimento metanalisados; está desde 2000 disponível em português, em publicação do Ministério da Saúde e colocamos em anexo um quadro resumo dos procedimentos. E finalmente, World Health Day: Safe Motherhood. (WHO, 1998), um documento que retoma os anteriores e coloca a Iniciativa Maternidade Segura também da perspectiva dos direitos humanos das mulheres⁹.
Mas como estes trabalhos têm repercutido na assistência ao parto nos diversos países? Como tem ajudado a promover mudanças? Como acontecem estas mudanças?
Se consideramos as referidas recomendações da OMS e os procedimentos reconhecidos como benéficos, vemos que a primeira recomendação é o desenvolvimento de um plano individual feito pela mulher. Os estudos mostram que quando a mulher está informada sobre as suas possibilidades de escolha no parto – aí incluídos o lugar de dar à luz, o profissional e demais pessoas que vão acompanhá-la e os procedimentos eletivos na assistência – este parto tem mais chance tanto de ser mais saudável para mãe e bebê quanto da mulher expressar maior satisfação com a experiência (Enkin, 2000).
A partir desta concepção de parceria entre usuária e serviços, e de uma maior simetria nesta relação, surge o conceito de de plano de parto. Como o nome sugere, este é um planejamento dos procedimentos eletivos no parto, a ser elaborado no pré-natal, sobre os diversos aspectos do processo, desde as opções tecnológicas tradicionais e suas alternativas, até formas de comunicação entre os envolvidos. Não se trata de um contrato de compromisso que não possa ser modificado no decorrer do parto, mas é principalmente uma oportunidade comunicativa e educativa para todos os membros da equipe
- a mulher, a família, o profissional e o serviço.
As recomendações que se orientam por este novo paradigma, ao mesmo tempo baseado na evidência empírica e nas novas tendências nas relações entre profissionais e pacientes, postulam a centralidade do direito à informação e à decisão informada nas ações de saúde. Isto implica uma mudança importante na concepção de relação médico-paciente, pois supõe que a decisão deva ser compartilhada entre os envolvidos, ao invés de decidida de forma unilateral pelo profissional e pela instituição que presta a assistência. A parturiente não seria mais um objeto calado e imobilizado sobre o qual se fazem procedimentos extrativos do feto, mas um sujeito com direito a voz e a movimento, de quem se espera um papel ativo, reconhecendo que será ela a parir, e da equipe se espera que ofereça o apoio quando e se necessário.
Na prática, no Brasil como em outros países, esta, como outras recomendações, vem sendo sistematicamente desconsideradas - isto quando são conhecidas. Este é o caso de condutas como o monitoramento de bem-estar físico e emocional da mulher, a oferta oral de fluidos durante o trabalho de parto e parto, as técnicas não-invasivas e não farmacológicas de alívio da dor (como a massagem, o banho e o relaxamento); a liberdade de posição no trabalho de parto e parto, o encorajamento a posturas verticais, entre outros. Os procedimentos reconhecidamente danosos, ineficazes, e que deveriam ser eliminados, continuam a fazer parte do dia a dia da maioria dos serviços, como o uso da posição horizontal durante o trabalho de parto e parto; o uso de rotina do enema; da tricotomia; da infusão intravenosa; a administração de ocitocina para acelerarem o trabalho de parto e; os esforços expulsivos dirigidos durante o segundo estágio do trabalho de parto. Isto sem contar com perigosa manobra de Kristeller¹⁰, entre outros. Mesmo práticas que, devidamente indicadas, poderiam ser úteis são usadas de forma inapropriada, causando mais dano que benefício, como os exames vaginais frequentes e repetidos.
A assistência é organizada como uma linha de montagem (Martin, 1987; Rothman, 1992), com a rígida estipulação dos tempos para cada estágio do parto. A transferência das mulheres de local em local durante o parto, assim como a própria arquitetura das maternidades - fatores que contribuem para inviabilizar o respeito à fisiologia do processo (Enkin e cols.1995), são parte da assistência típica ao parto no Brasil.
Nos últimos anos, tem havido uma distinção cada vez mais enfática sobre o que se considera parto normal
. Em geral, o que consideramos como parto normal é o chamado parto vaginal dirigido, ou seja, aquele que de rotina é conduzido com a mulher imobilizada ou semi-imobilizada, privada de alimentos e líquidos por via oral, usando de drogas para a indução ou aceleração do parto , com a mulher imobilizada e em posição de litotomia no período expulsivo, com eventual uso de fórceps, e com o uso de rotina episiotomia e episiorrafia.
Para alguns autores (Gaskin, 2000; Davis-Floyd, 1997; Wagner, 2000), com os quais nos identificamos, por parto normal devemos entender o parto que ocorre conforme a fisiologia, sem intervenções desnecessárias nem sequelas destas intervenções. Um parto vaginal orientado por uma abordagem médico-cirúrgica e pelo modelo tecnocrático¹¹ acima descrito, que inclua um conjunto de intervenções desnecessárias que vão deixar sequelas físicas e um maior desgaste emocional da mulher com sua experiência, deveria se chamar de parto típico
¹², até por sua variabilidade geográfica, pois como vimos, este normal
varia de acordo com o país ou o serviço.
Em sua extensa revisão sobre os procedimentos de rotina no parto tecnocrático, Enkin e cols. mostraram como a abordagem médico-cirúrgica do parto, superestimando os riscos inerentes ao processo, frequentemente implica a substituição do risco potencial de resultados adversos pelo risco certo de tratamentos e intervenções duvidosas
(1995:39)¹³. Assim, cria-se o chamado efeito cascata, quando os médicos submetem as mulheres a intervenções que podem levar a complicações, gerando intervenções subsequentes e a mais complicações, que terminam em uma intervenção final, em geral uma cesárea, que não teria ocorrido se a cascata não tivesse se iniciado
(Mold e