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"Sossega, Moleque, Agora Você Mora em Condomínio"
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E-book525 páginas7 horas

"Sossega, Moleque, Agora Você Mora em Condomínio"

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Sobre este e-book

As políticas de moradia para as populações mais pobres no Brasil funcionam, há décadas, não somente como resposta dos poderes públicos para uma demanda social, mas principalmente como recurso para organizar urbanisticamente as cidades e enquadrar seus beneficiários em um modelo normativo. Geralmente, tal modelo é acompanhado pela proposta de uma nova conduta, na qual seus futuros habitantes – antes moradores de favelas, periferias ou cortiços – devem reconhecer a ilegitimidade das suas formas de organização espacial e social e de suas escolhas morais, e optar, junto á nova moradia, por um novo estilo de vida. Essa lógica esteve presente, por exemplo, em projetos de habitação popular no Rio de Janeiro, como os Parques Proletários (1940), a Cruzada São Sebastião (1950) e os conjuntos habitacionais da Cohab/Chisam (1960/70). Contudo o fato de sugerir uma normatividade e até de criar estratégias garantidoras da sua aplicação não significou sua implementação: no geral, essas pessoas absorveram elementos da nova habitação, os quais poderiam agregar às suas vidas, mas não deixaram de (re)construir um cotidiano que incluísse formas de sociabilidade e de organização, como aquelas presentes no antigo bairro. Talvez por isso todos esses empreendimentos tenham sido posteriormente classificados pejorativamente como favelas, seja pelos poderes públicos ou pelos demais citadinos. Neste livro, o autor analisa como esses elementos – uma proposta de gestão por parte do Estado e a construção de um projeto pessoal a partir da nova casa pelos moradores – estão presentes nas políticas de habitação de interesse social promovidas na última década por dois programas federais na cidade do Rio de Janeiro: o "Minha Casa Minha Vida" e o "Programa de Aceleração do Crescimento", que em comum utilizaram o formato condomínio para realocar a grande quantidade de "favelados", os quais precisaram deixar suas casas por conta das políticas de remoção em voga. Em torno do formato condomínio (reconhecido como um modelo de morar das classes mais abastadas) e suas regras de convivência, o autor identificou, a partir do trabalho de campo etnográfico, toda uma trama social, permitindo reconhecer tanto o modelo disciplinar proposto pelo Estado quanto as estratégias de reconstrução do cotidiano em um espaço de moradia com outro significado simbólico na dinâmica da cidade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de jun. de 2020
ISBN9786555236637
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    "Sossega, Moleque, Agora Você Mora em Condomínio" - Wellington S. Conceição

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2018 do autor

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    AGRADECIMENTOS

    Aos artífices da minha trajetória educacional, meu pai Sinezio (in memoriam) e minha mãe Erli, por todo o esforço e carinho dedicados à minha criação e educação.

    À Clara Conceição da Silva, por todos os dias me dar motivos e mais motivos para sorrir.

    À Luciana Conceição da Silva, pelo companheirismo, dedicação e apoio nos 10 anos de vida comum e pela amizade e carinho que nos mantêm unidos.

    Ao meu irmão Wallace, companheiro de sempre, e a todos os familiares e amigos, por me apoiarem ao longo da minha vida em tudo que fiz e faço.

    À minha orientadora de doutorado, Márcia Pereira Leite, por toda atenção dispensada na orientação da tese que resultou neste livro. Agradeço ainda pelas parcerias firmadas e por todo conhecimento compartilhado.

    À minha também orientadora Neiva Vieira da Cunha. A você preciso agradecer pelos anos de uma frutuosa parceria, que começou na graduação, estendeu-se pelo mestrado e culminou no doutorado. Agradeço pela generosidade e pelas muitas oportunidades de crescimento e aprendizado que me proporcionou. Agradeço também pela amizade generosamente dispensada.

    Aos professores e colegas pesquisadoras que colaboraram com a construção e o desenvolvimento deste texto, com observações e sugestões durante as bancas, nas disciplinas que cursei, nas apresentações em seminários e congressos e em conversas. Destaco aqui alguns nomes: Lia Rocha (Uerj), Edson Miagusko (UFRRJ), Mariana Cavalcanti (Uerj), Maíra Machado-Martins (PUC-RJ), Gabriel Noel (UNSAM), Felipe Berocan (UFF), Luiz Antônio Machado da Silva (Uerj), Marco Antonio da Silva Mello (UFRJ), Lícia Valladares (Université Lille), Letícia de Luna Freire (Uerj), Jussara Freire (UFF), Natalia Bermudez (UNC) e Gabriel Feltran (UFSCAR).

    Às amigas Mônica Barcelos e Débora Bento, pela participação mais do que especial na pesquisa da qual resultou o livro. Agradeço o carinho, as conversas, as dicas e os papos nesses anos de convivência. Nunca conseguirei expressar o tamanho da minha gratidão.

    Aos moradores do Moradia 6 e do Condomínio Esperança, pelas experiências de observação, pela disponibilidade em ouvir e falar e pelas oportunidades de aprendizado. Vocês deram vida ao texto que compõe este livro. Agradeço a paciência para colaborar com esse pesquisador.

    Aos colegas pesquisadores dos grupos pelos quais passei e muito aprendi: o Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro – IFCS/UFRJ) – a minha primeira casa –, O Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade (Cevis-IESP/Uerj), o CIDADES (Uerj) e o Grupo Casa (Iesp/Uerj). Um agradecimento especial aos colegas que, assim como eu, ocuparam-se de estudar os condomínios populares e que, nas reuniões do Grupo Casa, ajudaram-me a desenvolver este trabalho com suas informações e críticas: Eugênia Motta, Paulo Magalhães, Dafne Velasco, Marcella Carvalho, Danielle Guedes, Heloísa Lobo e Bruno Coutinho.

    A todos os colegas do tempo de mestrado e doutorado, Companheiros de uma jornada que culmina neste livro. Agradeço especialmente a Monique Carvalho, Pricila Loretti, Edilaine (Didi) Quintanilha, Marília Losch, Heloísa Lobo, Natânia Lopes, Frank Davies, Samantha Gifalli, Raquel Carriconde, Alexander Magalhães, Clemir Fernandes, Márcia Menezes, Victor D’Olive, Amanda Gomes, Beatriz Brandão, Camila Pierobon, Adriana Fernandes e Luiz Carlos. Valeu a parceria! Torço por todos vocês.

    A todos os docentes, técnicos e terceirizados do câmpus de Tocantinópolis da Universidade Federal do Tocantins. Na pessoa de sua diretora, a professora doutora Francisca Rodrigues, agradeço cada um de vocês pelo trabalho conjunto. Dedico um agradecimento especial aos professores que compõem o colegiado do curso de licenciatura em Ciências Sociais, com quem venho construindo, coletivamente, um projeto singular: João Batista, Karina Almeida, Marcelo Brice, Bruno Hammes, Luciene Reis, Paula Marcela França, Paulo Emílio Douglas, Liza Brasílio e Rafael Noleto. Não quero esquecer os professores dos outros cursos que tanto acrescentaram à minha vida nestes últimos anos, com sua amizade e seu conhecimento: Marco Aurélio, Juliana Ipólito, Aline Campos, Joedson Brito, Andrey Patrick, Fábio Pessoa, Mário Borges, Felipe Granjeiro, Leon de Paula, Rosa Gubert e Cássia Miranda. Agradeço ainda aos seus companheiros e companheiras, pela participação intensa na minha vida e na de minha família: Fernanda Brito, Berenice, Cris e Emanuel.

    Aos discentes do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Tocantins agradeço pelo carinho, amizade, paciência e confiança. Agradeço ainda pela forma apaixonada com que experimentam a sua formação. Com certeza, trarão novas e interessantes perspectivas para a Antropologia, Ciência Política e Sociologia.

    Aos discentes de Pedagogia, Geografia e Matemática da Uerj FEBF, com quem estive nos anos de 2013 e 2014 como professor substituto: obrigado por cada amizade mantida e pela permanente torcida e carinho manifestado. Vocês são incríveis. Aproveito o ensejo para agradecer também os colegas professores e técnicos da FEBF, com quem tive a honra de trabalhar, especialmente Mauro Amoroso, Jéssica Coelho, Mário Brum, Maria da Conceição, Pedro Leite e Beatriz Polo. Desejo, aos que ficaram, força e coragem pra manter em pé esse patrimônio intelectual e humano que é a Uerj (#Uerjresiste).

    Agradeço aqueles amigos e amigas que generosamente, com seu trabalho técnico, ajudaram a construir as páginas escritas neste livro. Minha eterna gratidão à Indiara Silveira, Angélica Bauer, André Luiz Bezerra, Maylta dos Anjos, Caroline Soares, Lívia Marinho, Margarete Santos, Daniela Fi, Laura Leonides e Marcos Antonio Coelho.

    À Thaíza Alexandre, por captar o melhor de mim na fotografia que estampa a orelha deste livro. Agradeço ainda por todo os carinhos, cuidados, sorrisos e experiências partilhadas nesses últimos meses.

    Aos colegas professores, técnicos e alunos dos colégios pelos quais passei: República de Guiné Bissau (Cidade Alta), José de Souza Marques (Braz de Pina) e Bezerra de Menezes (Duque de Caxias), valeu por todo o apoio e carinho.

    A todos aqueles que, direta ou indiretamente, colaboraram com o meu caminho até aqui, serei grato por todo o sempre.

    A Capes, pelo financiamento da pesquisa que resultou neste livro.

    APRESENTAÇÃO

    O livro que chega a suas mãos é uma versão da tese de doutorado que defendi em abril de 2016, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), sob orientação das doutoras Márcia Pereira Leite e Neiva Vieira da Cunha. O trabalho apresentado, e agora publicado e publicizado nessas páginas, foi o resultado de quase três anos de um dedicado trabalho de campo somado a uma imersão nas teorias e produções da Sociologia e da Antropologia. Trata-se de um texto que procurei construir de forma artesanal, pensando cuidadosamente o alcance e o impacto de cada parágrafo, palavra e pontuação em meus novos interlocutores.

    Neste livro, apresento algumas considerações sobre o uso do formato condomínio em políticas de habitação social mais recentes, especialmente no Programa Minha casa, minha vida (PMCMV) e no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Destrincho, a partir do meu trabalho de campo, como esse formato condomínio – historicamente apropriado pelas elites, pelo menos na cidade do Rio de Janeiro – pode ganhar novos sentidos quando utilizado para abrigar sujeitos removidos de favelas. Por parte do Estado, releva-se um projeto disciplinar a partir da mudança de habitação (tendo a lógica condominial como referência), repetindo uma prática já presente em políticas anteriores voltadas para os moradores removidos de favelas. Já os neocondôminos, aproveitam a nova moradia para se reinserirem na cidade sem a mediação do estigma de favelado, reivindicando, entre outras coisas, um novo status na dinâmica urbana e utilizando sua nova condição para construir um projeto de limpeza moral.

    Certamente, as poucas palavras expostas nessa apresentação não dão conta da riqueza e complexidade desse processo, narradas com propriedade por meus interlocutores e explicitadas em documentos públicos, mas procuro desenvolvê-las nas letras que recheiam estas páginas. Posso dizer que se trata de um conjunto de tramas e dramas que ganham vida a partir do trabalho etnográfico, prática metodológica que tem um papel central para entender essas políticas públicas e suas apropriações.

    Gostaria ainda de apresentar este livro deixando claro que não fiz alterações referentes ao que aconteceu com os programas citados ou com os campos que pesquisei a partir da defesa da tese. Apesar de ser curto o período entre a finalização do doutorado e a publicação do livro, muitas foram as mudanças pelas quais passou a sociedade brasileira. Quando defendia a tese, Dilma Rousseff ainda era a presidenta do Brasil, e apesar do PAC e do PMCMV passarem por cortes, ainda eram programas valorizados por esse governo, visto que foram gestados no primeiro governo do presidente Lula e se tornaram marcas fortes da atuação do Partido dos Trabalhadores.

    Já o governo liderado por Michel Temer, na era pós-impeachment, promoveu intervenções imediatas nesses programas: primeiramente, paralisou as atividades do PMCMV e, em 2017, prometeu uma reformulação deste, com medidas que parecem apontar outras prioridades, como o aumento da renda necessária para acessar o programa e a adoção de novas práticas punitivas para os inadimplentes. Quanto ao PAC, notícias veiculadas pela internet apontam que o presidente Temer tem a intenção de manter o programa, mas dando outro nome, devido à forte identidade com o governo anterior. Vale lembrar que, quando ainda ministra da casa civil, Dilma era chamada de a mãe do PAC, por conta do seu envolvimento e protagonismo na construção desse programa.

    Quanto aos campos pesquisados, tive poucas oportunidades de retornar, até mesmo pelo fato de morar a mais de 2.000 km da cidade do Rio de Janeiro. Minha imersão na vida profissional como professor universitário no norte do estado do Tocantins (desde maio de 2015) acabou me distanciando dessas localidades e dos interlocutores que lá encontrei. Pelas redes sociais, acompanho parte de seus cotidianos e rascunho, a partir do que vejo pela tela do computador, as constantes transformações nas sociabilidades e demais dinâmicas de interação existentes. Ressalto, porém, que tudo o que vi e senti a partir de então não passaram de meros achismos, já que me faltaram instrumentos metodológicos suficientes para interpretar as manifestações mais recentes e explorar sua profundidade socioantropológica.

    Creio que as modificações pelas quais passam esses programas e seus impactos nas unidades habitacionais - assim como no cotidiano dos seus habitantes - merecem uma reflexão aprofundada, mas não a farei neste livro, já que suas análises estão prioritariamente baseadas em outro contexto político. Apesar de o livro se basear-se em uma temporalidade que se esgota em abril de 2016, acredito que muitas das suas análises e conclusões ainda são atuais, pois se referem-se a processos que se repetem em diferentes tempos e sociedades: a construção de processos de gestão da pobreza por parte do Estado (tendo a moradia como um dispositivo fundamental para essas ações) e a existência de iniciativas de resistência entre as classes populares.

    No mais, espero ter sido um bom artesão e desejo que o conhecimento partilhado nestas páginas possa ser útil e prazeroso a estudantes, pesquisadores e demais leitores interessados na temática desenvolvida.

    O autor

    PREFÁCIO

    Quando Wellington da Silva Conceição me convidou para apresentar sua bela tese, agora transformada em livro, fiquei duplamente feliz. Primeiro pelo autor, que conheci ainda como doutorando, então um estudante exemplar, gentil, dedicado e criativo que rapidamente virou parceiro e amigo, e que agora é professor da Universidade Federal de Tocantins, onde desenvolve com sucesso sua carreira acadêmica. Já há alguns anos no Brasil profundo, como brinca às vezes, Wellington continua explorando as questões urbanas como ali se manifestam e suas conexões com processos e tendências das grandes cidades brasileiras, temática a que se dedica há mais de 10 anos, pois desde sua graduação e de seu mestrado, sempre buscou compreender como as camadas populares fazem a cidade a partir das margens¹, em suas relações entre si e com o Estado. E o faz com o recurso ao melhor da teoria sociológica e antropológica, que sempre orientaram o recorte de suas temáticas específicas e o seu desenvolvimento analítico. Por isso seu trabalho intelectual é consistente e rigoroso, sempre fundado em pesquisas de campo que primam pelo cuidado quanto aos procedimentos metodológicos e pelo respeito a seus interlocutores.

    A qualidade do livro foi a segunda razão de meu contentamento com a tarefa, com muito gosto, recebida. Tomando como centro de sua pesquisa, em um subúrbio carioca, os condomínios populares – expressão com a qual designa os conjuntos habitacionais construídos pelo Programa de Aceleração do Crescimento/PAC e pelo Programa Minha Casa Minha Vida/PMCMV para reassentar moradores de áreas de risco e removidos de áreas que sofreram intervenções urbanas –, Wellington nos conduz com maestria na compreensão de alguns dos atuais dispositivos de gestão de territórios e populações na cidade do Rio de Janeiro.

    Ao invés de se ater, em sua análise, à consideração desses conjuntos habitacionais como apenas mais uma nova forma de política habitacional – pisando no terreno seguro, embora nem sempre tão fértil para o contexto em que vivemos, da literatura tradicional no campo –, explora analiticamente como essa modalidade de morar, produzida pelo Estado em estreita conexão com o mercado, mas também atualizada por meio de diversos agenciamentos de muitos dos moradores, constitui um novo dispositivo disciplinador dos pobres urbanos, e especialmente dos favelados, que se insere em uma política mais geral de pacificação do Rio de Janeiro, sempre assombrado pela metáfora da guerra².

    E, com efeito, a pacificação da cidade vem sendo articulada por diversos outros programas e políticas implementados na cidade, ainda que como experimentos de governo dos pobres. Pode-se citar, entre os principais, o Morar Carioca, programa municipal de urbanização de algumas favelas – como o Morro da Providência na área central da cidade e ao lado do Porto Maravilha (região escolhida como núcleo central da reestruturação urbana em curso) – que tem como um de seus eixos o desadensamento (eufemismo para a remoção de moradores) delas a pretexto de construção de equipamentos públicos e ampliação das vias de circulação; a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora, em sua maioria em favelas situadas no chamado cinturão de segurança para os grandes eventos, que combinam controle social coercitivo com diversas outros dispositivos de disciplinarização dos moradores; a remoção de favelas em áreas que receberam grandes investimentos públicos em obras de infraestrutura e terminaram por ser destinadas ao capital imobiliário, como no caso de Vila Autódromo, favela situada no entorno do complexo de equipamentos esportivos construído para os Jogos Olímpicos de 2016; além de uma nova onda de periferização da pobreza de outros conjuntos habitacionais, também construídos no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida, mas em áreas carentes de infraestrutura urbana.

    De forma consistente com os interesses de produção do Rio como uma cidade global – nos termos de Harvey³, uma cidade mercadoria produzida pela crescente acumulação por desposessão que vem incorporando ao circuito do grande capital territórios periféricos e bens de cidadania –, uma lógica orienta esses agenciamentos estatais: produzir uma cidade segura para o mercado. É por isso que nos territórios de moradia dos pobres urbanos (e também de circulação - mas isto é uma outra história que não dá para desenvolver aqui), o Estado, quase sempre em parceria com o mercado, atualiza as formas de disciplinarização dos pobres. Nesses territórios (e não apenas nos casos mais visíveis, como as favelas com UPPs), busca rebaixar as reivindicações dos moradores por bens de cidadania, tanto por meio do controle social estrito sobre sua sociabilidade e sua organização coletiva, como por diversos agenciamentos, estatais ou não, para sua incorporação ao mercado como consumidores e pequenos empreendedores. Afinal, se não há trabalho formal e protegido, nem garantias para que os mais pobres possam viver com um mínimo de dignidade com políticas públicas distributivas, trata-se de consistente com o novo espírito do capitalismo⁴, voltar a responsabilizar os pobres por sua pobreza (o que o avanço da cidadania e o tratamento da questão entre nós⁵ já havia deixado para trás no século passado).

    Nos condomínios populares construídos pelo PAC e pelo PMCMV, também se experimenta esses novos dispositivos de disciplinarização, captados e analisados brilhantemente pelo autor. O que menos nos interessa é o seu efetivo sucesso ou insucesso específico. O que aprendemos com Wellington da Silva Conceição é, sobretudo, o sentido e a direção dessa nova modalidade de governo dos pobres. A generalização desses dispositivos e dos agenciamentos correspondentes depende, é claro, de diversas circunstâncias, e necessita considerar contextos, bem como a agência de atores individuais e coletivos. Para além disso, entretanto, o caso analisado por Wellington nos permite entrever o movimento mais geral, no campo da biopolítica, de implementar em certos territórios, situações e, especificamente, em relação a certos segmentos populacionais, um conjunto de dispositivos que vem redefinindo e estreitando a cidadania das camadas populares, ao vinculá-la diretamente ao mercado. Trata-se de uma nova pedagogia civilizatória⁶, ajustada ao contexto do capitalismo financeiro e da acumulação por despossessão.

    No caso analisado por Wellington, busca-se transformar os pobres e, especificamente, os favelados, em moradores de condomínios, ainda que populares, de modo a desvinculá-los das (reais ou supostas) conexões que, em seus territórios de origem, teriam com as redes ilícitas ou ilegais, ao mesmo tempo em que se busca renovar, atualizando-o, o eixo das antigas práticas disciplinadoras envolvidas nas políticas habitacionais brasileiras. O sonho da casa própria ganha nova amplitude nesse campo, sobretudo se a casa própria, agora, é ofertada como um condomínio que tem um sentido distintivo na cidade e no mercado, e se pode ser oferecida como um aval para seu dono obter financiamentos, públicos e privados, além de se tornar um agenciador de si próprio como empreendedor.

    Nesse campo, especificamente, assim como em muitos outros que não é possível destacar neste prefácio, Wellington da Silva Conceição navega entre temporalidades diversas, vários passados e o presente, os tempos revoltos em que vivemos. Revisita antigas políticas habitacionais implementadas no Rio de Janeiro – dos Parques Proletários à Cruzada São Sebastião e aos conjuntos habitacionais da era da Companhia de Habitação Popular do Estado da Guanabara/Cohab-GB e da Coordenação da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio/Chisam – em um contexto em que a disciplinarização dos pobres urbanos voltava-se para produzir a sua inserção e a sua maior utilidade⁷ no/para o desenvolvimento industrial da cidade. Em tempos de desindustrialização e crise do paradigma fordista, entretanto, não se trata mais de produzir trabalhadores úteis para o capital. No contexto em que vivemos, e que o autor situa com clareza neste livro, trata-se, em primeiro lugar, de rebaixar os conflitos que daí poderiam advir. No caso, os relativos à questão urbana. Nos territórios favelados, via remoções, UPPs e os vários agenciamentos para que cuidem de sua sobrevivência por meio da inserção no mercado como pequenos empreendedores. Nos novos assentamentos, como os condomínios populares produzidos pelo PAC e pelo PMCMV, essa atualização dos dispositivos de disciplinarização também interpela os moradores a serem bons cidadãos a partir de uma moralidade que criminaliza as favelas e os vizinhos, aqueles que vão vivendo como é possível, aqueles que lidam com o Estado articulando projetos e sobrevivência.

    E, com efeito, Wellington analisa com muita acuidade, no território, os diversos dispositivos por meio dos quais se constituem os condomínios populares, detendo-se, no caso que estuda, nas práticas de controle e regulação dos comportamentos, em seu rebatimento nos projetos de limpeza moral dos moradores, ao mesmo tempo em que demonstra como essas práticas são operadas a partir de uma regulação da qual participam Estado, mercado e, subsidiariamente, alguns moradores, e que se expressa não só nos dispositivos legais e discursivos que constituem o condomínio popular, mas também na forma arquitetônica que constitui esse espaço. Analisa ainda, e sempre muito bem, como ambos buscam – às vezes de forma infrutífera – direcionar a sociabilidade e a organização local.

    Neste livro, que convido tod@s a ler, cada capítulo é um primor. Cada volta ao passado funciona – muito longe de qualquer pedágio acadêmico – como uma volta no parafuso que articula, com novos dados e uma perspectiva analítica refinada, uma interpretação que nos permite avançar na compreensão da relação Estado, mercado e territórios populares.

    Finalizando esta apresentação, ainda gostaria de destacar outro elemento que recomenda enfaticamente a leitura deste livro: a grande empatia de Wellington em relação aos seus interlocutores, moradores desses condomínios populares. Certamente, uma vinculação à boa tradição da sociologia e da antropologia urbanas em termos de compreensão de seu objeto de estudo. Mas não apenas isso. Porque, no caso, também nos revela o comprometimento do autor com a apreensão, para além de quaisquer dogmas do campo da ciência ou da política, de como a cidade é cotidianamente produzida também por seus moradores. Nesse aspecto, fez-me lembrar, às avessas, de uma conhecida frase de Gramsci sobre o erro do intelectual em acreditar que se possa saber sem compreender, sem sentir e estar apaixonado pelo objeto de seu saber⁸. Erro no qual Wellington decididamente não incorre, tornando também por isso a leitura deste livro tão instigante e prazerosa, imprescindível.

    Márcia Pereira Leite

    Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    1 - OUTRAS MORADIAS, OUTROS CAMPOS: O THAUMA, A NOVA CASA E O SUJEITO EM MUDANÇA

    1.1 ENCONTRANDO A PESQUISA OU SENDO ENCONTRADO POR ELA?

    1.1.1 Primeiras impressões sobre o campo

    1.1.2 Compreendendo o objeto, estruturando uma pesquisa

    1.2 ESTRANGEIRO OU MAIS UM COMO ELES? PENSANDO A MINHA SUBJETIVIDADE E O INGRESSO NO CAMPO

    1.2.1 Subjetividade e múltiplas pertenças ao campo

    1.2.2 Algo entre o Xamã e o Herói: a condição de nativo da Cidade Alta e o ingresso no novo campo

    1.3 A MUDANÇA PARA O APARTAMENTO E SEUS RITOS

    1.3.1 O trabalho social de remoção e os cursos de integração

    1.3.2 A inauguração

    1.3.3 O ingresso no condomínio e na unidade habitacional

    1.4 O CAMPO E A SUA CONDIÇÃO MUTANTE

    2 - AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE MORADIA PARA AS CLASSES POPULARES: SOBRE PROJETOS DE CONTROLE E/OU GESTÃO DOS POBRES

    2.1 SOBRE OS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DA PESQUISA: FOUCAULT E ELIAS

    2.1.1 Disciplina, biopolítica e gestão populacional: Michel Foucault

    2.1.2 Processo, civilização e sobrevivência: Nobert Elias

    2.2 MUDANDO DE LUGAR

    2.3 DO DESAMPARO À REALOCAÇÃO: A INSERÇÃO DA MORADIA POPULAR NO PROJETO GOVERNAMENTAL

    2.4 MUDE DE CASA PARA MUDAR DE VIDA: OS PROJETOS DE REALOCAÇÃO E REMOÇÃO DE FAVELADOS

    2.4.1 Higienizando os pobres: os parques proletários

    2.4.2 Cristãos e civilizados: a cruzada são Sebastião

    2.4.3 Disciplinados pela boa forma urbana: os conjuntos habitacionais da Cohab-GB/Chisam

    2.4.4 O espaço, o registro, o controle: o novo homem

    3 - REMOÇÃO, CONSTRUÇÃO E PACIFICAÇÃO: OS NOVOS RUMOS DA GESTÃO DA POPULAÇÃO FAVELADA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

    3.1 NOVOS RUMOS NA GESTÃO DAS FAVELAS?

    3.2 O ESTIGMA PERMANECE? OS CONFLITOS FAVELA VERSUS CIDADE NAS DUAS ÚLTIMAS DÉCADAS

    3.3 POR QUE UM NOVO PROJETO DE GESTÃO DA POPULAÇÃO POBRE? A (RE)ESTRUTURAÇÃO POLÍTICA DA CIDADE

    3.3.1 Os caminhos internacionais da cidade: o Rio como uma cidade global e uma cidade mercadoria

    3.3.2 Rio: uma cidade para sediar megaeventos

    3.3.3 Rio: uma cidade PACificada?

    3.3.3.1 As unidades de Polícia Pacificadora – UPPs

    3.3.3.2 O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) – As transformações dos espaços populares e a habitação social na gestão da cidade.

    3.3.3.2.1 O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)

    3.3.3.2.2 O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV)

    3.3.4 O processo de PACificação

    4 - CONDOMÍNIOS E CONDOMÍNIOS POPULARES: SOBRE SEUS USOS E REPRESENTAÇÕES POR PARTE DO ESTADO

    4.1 POR QUE CONDOMÍNIOS POPULARES? A CONSTRUÇÃO DA CATEGORIA ANALÍTICA

    4.2 O QUE É UM CONDOMÍNIO?

    4.2.1 Ferreira dos Santos e os condomínios exclusivos

    4.2.2 Teresa Caldeira e os enclaves fortificados

    4.2.3 Cristina Patriota Moura e os condomínios horizontais

    4.2.4 Maíra Machado-Martins e os condomínios populares da Avenida Brasil

    4.3 OS CONDOMÍNIOS POPULARES DO PAC/PMCMV: SUAS REPRESENTAÇÕES E SEUS USOS POR PARTE DO ESTADO

    4.3.1 Os encontros de integração: para transformar regras em valores

    4.3.2 A primeira fase dos encontros de integração

    4.3.3 Uma etnografia da ausência: a experiência junto ao PMCMV de Serra Serena

    4.3.4 Bom pobre, mau pobre: o Estado e a classificação dual da pobreza

    4.3.5 Encontros de integração: uma análise do material didático

    4.3.6 A segunda fase dos encontros de integração: regimentos, participação e moralização dos costumes

    4.3.7 Ninguém é chique se não for civilizado

    4.4 LONGE DOS OBJETIVOS ESPERADOS? AS AVALIAÇÕES SOBRE O PMCMV NO RIO DE JANEIRO E NO BRASIL

    5 - SOSSEGA, MOLEQUE, AGORA VOCÊ MORA EM CONDOMÍNIO: LIMPEZA MORAL, JOGOS IDENTITÁRIOS E A ADAPTAÇÃO PERSONALIZADA ÀS REGRAS COMO FORMAS DE (RE)CONSTRUÇÃO DO COTIDIANO

    5.1 AQUI É CONDOMÍNIO: A NOVA MORADIA COMO DISPOSITIVO DE LIMPEZA MORAL

    5.1.1 A limpeza moral nas favelas e em outras formas de habitação popular

    5.1.2 Os condomínios populares e a limpeza moral

    5.1.2.1 A fusão entre a identidade do espaço e a biografia do sujeito

    5.1.2.2 A estética da distinção

    5.1.2.3 O reendereçamento do estigma

    5.2 FAVELA, COMUNIDADE OU CONDOMÍNIO? SOBRE UM LUGAR E SUAS POSSÍVEIS IDENTIDADES

    5.2.1 Aqui não é favela, mesmo que pareça: sobre os símbolos de um processo de favelização

    5.2.1.1 A desordem

    5.2.1.2 O tráfico de drogas

    5.2.1.3 O baile funk ou o pagode dos predinhos

    5.2.2 Aqui é comunidade: Os projetos sociais e a capitalização de novos recursos econômicos e políticos

    5.3 NA FAVELA ERA BEM MELHOR: AS INSATISFAÇÕES EM TORNO DO CONDOMÍNIO

    6 - CONCLUSÃO

    REFERÊNCIAS

    INTRODUÇÃO

    Não são poucos os estudos em sociologia e antropologia urbana que tomam os espaços de moradias populares como objeto de sua reflexão. Certamente, mais do que um tema interessante e um fenômeno social relevante, tal destaque, principalmente no meio acadêmico, deva-se à versatilidade desse objeto de pesquisa: por meio dele, por exemplo, podemos refletir sobre temas sociológicos clássicos como a desigualdade social e a luta de classes. Podemos pensar a relação do Estado com esses territórios, seja por um projeto de disciplinarização e controle, por uma biopolítica de gestão das populações, por meio da produção de margens ou pelas representações desses espaços que os agentes estatais apresentam em suas propostas de políticas públicas, especialmente as de política habitacional. Podemos partir da morfologia desses espaços e de seus impactos para investigar as dinâmicas de interação com os demais lugares e moradores das cidades. Podemos ainda desenvolver essa questão a partir dos seus moradores, seja por meio da análise da sua agência política, da sua organização e luta em movimentos sociais, das possibilidades e das barreiras no exercício da cidadania, das suas interações com as forças repressivas do Estado, das formas construídas de desfiliação do estigma e dos preconceitos remetidos à sua posição na cidade e dos usos e relações com os diferentes repertórios de justiça disponíveis.

    Todas essas temáticas foram devidamente (e competentemente) exploradas em diversas produções acadêmicas, muitas delas apontadas nas referências bibliográficas deste livro. Porém, por mais que sejam muitas as pesquisas e trabalhos relevantes desenvolvidos nesse campo do saber, a dinamicidade dos territórios populares como objeto de investigação cientifica sempre abre possibilidades de produções originais e significativas. A discussão presente neste livro procura dar mais uma contribuição para esse rico debate teórico.

    As páginas a seguir trazem uma análise sociontropológica – a partir de uma investigação de campo – sobre alguns condomínios populares construídos pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e pelo Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) no Rio de Janeiro. Esses condomínios são direcionados a um público específico: ex-favelados⁹ que receberam o apartamento como medida compensatória após perderem suas casas por conta de desastres naturais (como as chuvas) ou para dar espaço à construção de um novo equipamento público nas favelas em que moravam.

    Entre as possíveis leituras que eu poderia fazer dessa realidade a qual resolvi pesquisar, a que mais me chamou a atenção foi a relevância socioantropológica da morfologia do condomínio sobre essas moradias e as rotinas constituídas ali – e essa é a questão central da pesquisa registrada neste texto. Resolvi chamá-los de condomínios populares¹⁰: pois apesar de serem juridicamente condomínios, como aqueles direcionados às elites que se multiplicam no Rio de Janeiro desde a década de 1960, têm um cotidiano marcado pela origem popular/favelada de seus moradores, que se manifesta tanto nas suas práticas cotidianas quanto nas suas interações com outros agentes da cidade, inclusive o próprio Estado.

    Vale dizer que o formato condomínio se insere nessas políticas públicas de moradia como forma de economia de gastos das construtoras, mas no caso do Rio de janeiro, ele passa a ser utilizado pelo Estado como um dispositivo de gestão, controle e disciplinarização dos pobres urbanos, como aconteceu em outros projetos de moradia popular (como os parques proletários, a Cruzada São Sebastião e os conjuntos habitacionais construídos e administrado pela Cohab-GB/Chisam¹¹).

    Técnicas de controle dos pobres urbanos estiveram sempre presentes nesses mais de 100 anos de existência das favelas. Por meio de projetos de gestão populacional¹², ora marcados pela disciplinarização, ora pelo redimensionamento dos seus fluxos na cidade, o Estado sempre endereçou aos favelados algumas políticas de controle que os tornassem menos perigosos e mais úteis. Suas representações, ativadas por meio do estigma, sempre deram a essas populações um lugar subalterno, marcado por constante desconfiança e culpabilização moral.

    Falando em estigma, esse talvez seja o maior dos problemas quando falamos da relação dos favelados com o Estado e com os demais moradores da cidade. Vale dizer, ao trabalhar com essa categoria (que aparecerá muitas vezes no decorrer do texto), refiro-me aos usos que Erving Goffman faz dela. Segundo o autor, o termo foi criado na Grécia Antiga a fim de nomear marcas feitas em corpos, evidenciando alguma coisa extraordinária ou má sobre o status moral de quem os apresentava¹³. No contexto atual, essa categorização serve para indicar as marcas socialmente atribuídas àquelas pessoas as quais não correspondem à ideia generalizada do comum e/ou normal e que, por isso, estão inabilitadas à aceitação social plena. O autor ressalta ainda que o estigma, que é uma construção social, está mais relacionado às interações do que aos atributos que o compõem, podendo variar de uma sociedade para a outra: Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, honroso nem desonroso [...] Um estigma é, então, na realidade, um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo¹⁴. Goffman identificou pelo menos três tipos de estigma social¹⁵: aqueles relacionados às abominações do corpo, às culpas de caráter individual e os estigmas tribais de raça, nação e religião. O estigma em questão neste trabalho é aquele direcionado aos moradores das favelas, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, que mistura, em suas representações, elementos do segundo e do terceiro tipo apresentados por Goffman.

    Em meio à representação estigmatizada, as instâncias públicas do Rio de Janeiro sempre interpretaram os pobres urbanos ora como perigosos, ora como tábulas rasas. Aos irremediáveis, os maus pobres, o controle se dá pela repressão, justificando nas favelas a ação violenta da polícia e demais agentes do Estado. Já aos disciplináveis, os bons pobres, esses podem ser deslocados pela cidade e serem reeducados na normatividade urbana. As instruções pela rádio dos parques proletários (o chá das nove), os mandamentos da Cruzada São Sebastião e a educação para o trabalho presente nos conjuntos habitacionais da Cohab-GB/Chisam são claros exemplos disso. Sobre todas as coisas eles precisavam aprender: o lugar no qual cuspir, os papéis da mulher e os do homem, as técnicas e as posturas necessárias para um ofício.

    Nos condomínios populares não foi diferente. Um claro projeto civilizador¹⁶, imposto como dispositivo disciplinar, tentava transformar os favelados em condôminos por meio dos encontros de integração, atividade preparatória para o ingresso nos condomínios, exigindo-se pelo menos 75% de presença, a fim de o morador ter acesso à chave do seu apartamento. Para efetuar essa transformação, apresentava-se um modelo a ser rejeitado: a favela (vista como uma antirreferência urbana). A normatividade presente nos condomínios, totalmente adequada aos valores das elites, afigurava-se como padrão a ser seguido.

    Instruções referentes ao barulho, ao relacionamento com vizinhos ou ao uso dos apartamentos eram passadas aos seus condôminos como regras que deveriam se converter em valores. E mais: pesaria sobre eles a responsabilidade de mantê-las funcionando, como se em outros condomínios, as regras fossem sempre cumpridas por todos. Sobre esses novos condôminos na cidade, o descumprimento de uma regra acionava o estigma: favelado, apontaria seu vizinho e até aqueles que moram em outros espaços da cidade. Essa caracterização, nesse momento, carregada de teor acusatório, poderia por em risco todo um projeto de limpeza moral, tanto o coletivo como aqueles delineados pelos indivíduos.

    Os projetos de cunho disciplinar-civilizatório por parte do Estado existem, e muitas pesquisas comprovam a sua presença nas favelas e nas demais formas de habitações populares¹⁷. Entretanto, por mais que reconheça essa existência, preciso deixar claro que, quando tomo as categorias foucaultianas de disciplina, biopolítica e gestão de população para entender essas estratégias do Estado para com os moradores dos condomínios populares (como os encontros de integração ou os deslocamentos espaciais), isso não significa o não reconhecimento de espaço para a agência dos moradores. O próprio Foucault ajuda a entender que isso é possível ao afirmar que, se há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência¹⁸. Na verdade, em boa parte dessa pesquisa, ocupei-me em compreender como esses moradores desenvolveram, na reformulação de seus cotidianos nos condomínios, pequenas e grandes práticas de resistência ao projeto inicial apresentado a eles (e, talvez, essa discussão seja a principal contribuição da pesquisa que realizei). Vale lembrar, porém, que nem sempre essas resistências foram marcadas por rupturas radicais com o projeto estatal. Na verdade, muitas vezes nasciam das brechas ou a partir de uma leitura personalizada do mesmo projeto.

    Uma das principais práticas de resistência que identifico está na utilização do condomínio como dispositivo para os projetos de limpeza moral. Permitam-me também esclarecer o que entendo por essa categoria, até mesmo pela sua importância no decorrer do texto. Ao falar de projeto ou projetos, referindo-me a indivíduos ou grupos (não entram aqui os chamados projetos estatais e nem os projetos das ONGs), tenho como referência o uso da categoria por Alfred Schutz¹⁹, conforme apresentada por Velho: trata-se de uma conduta organizada para atingir finalidades específicas, relacionada à construção da identidade, podendo ser o ator dessa conduta um indivíduo ou um grupo social. No geral, os projetos estão diretamente ligados à organização social e aos processos de mudança social. Assim, implicando relações de poder, são sempre políticos²⁰. Pensando, principalmente, nos indivíduos, Velho afirma: "a consistência de um projeto depende, fundamentalmente, da memória que fornece os indicadores básicos de um passado que produziu as circunstâncias do presente, sem a consciência das quais seria impossível ter ou elaborar projetos"²¹.

    Quanto à limpeza moral, categoria cunhada por Leite e Machado da Silva²², essa se refere, sobretudo, a estratégias empreendidas pelos moradores de favela para afastar-se do mundo do crime, reivindicando não serem identificados com os criminosos, enfatizando a natureza pacífica e ordeira e seus padrões de moralidade burguesa²³. Para além da identificação como criminosos, entendo que a limpeza moral também possa ser acionada para combater outras representações estereotipadas e negativas que formam o estigma e que assolam

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