Revista Continente Multicultural #271: Ave Sangria
De Cepe, Janio Santos, Matheus Melo e
()
Sobre este e-book
Durante 15 anos, fui editora desta revista, criada em 2000. Sob minha coordenação, ela passou por dois projetos de redesign editorial, em 2009 e 2017. Em 15 anos, muita coisa aconteceu: nascimentos, mortes, guerras, revoluções tecnológicas, mudanças de comportamento social e cultural, ascensão e queda de governos e o Brasil (esse lugar que nos desestabiliza, sempre!). No âmbito do jornalismo cultural, buscamos observar e interpretar esses acontecimentos de perto, praticando um jornalismo comprometido com a qualidade, nas suas várias formas e gêneros.
Procuramos acompanhar a contemporaneidade no que ela nos oferece de vibrante, novo e relevante, trazendo assuntos que estavam sendo discutidos nestes dias, mas que não se encerravam nestes dias, porque é assim que o tempo é: urgente e persistente: uma pedra que cai agora no lago repercute em ondas expansivas infinitamente.
Esse movimento de acompanhar o curso dos acontecimentos demanda esforços e investimentos. Com o suporte da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), sem o qual esta publicação não existiria, pois revistas com a qualidade da Continente são trabalhosas e caras, empreendimentos financeiros e culturais cada vez mais escassos, a revista entregou mensalmente edições bem-cuidadas, cujo resultado final muitas vezes não expressava os esforços e as dificuldades de realização. Mas, se conseguimos tal feito, é porque temos sido profissionais envolvidas com os melhores resultados.
Para finalizar, destaco pessoas que têm feito desta revista uma publicação que marca a história do jornalismo cultural. As companheiras do dia a dia: Mariana Oliveira, Débora Nascimento, Luciana Veras, Olívia Mindêlo, Maria Helena Pôrto, com a colaboração dos nossos colegas de redação, profissionais e estagiários de várias épocas. Também agradeço a tantos colaboradores que trouxeram suas contribuições maravilhosas para a Continente. Desejo a vocês, sempre, excelentes encontros e leituras!
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Revista Continente Multicultural #271 - Cepe
Ciclos e despedidas
Esta edição marca um fechamento de ciclo. Então, extraordinariamente, este editorial vai contar com uma assinatura e fugir ao seu padrão habitual. O clichê de que o tempo passa muito rápido
é tão verdadeiro quanto enganoso. Porque a maioria de nós vai tocando a vida e não reflete sobre o que faz do tempo tão voraz e intenso, somente atentando aos seus detalhes, à sua lentidão e persistência, quando algo nos sacoleja.
Durante 15 anos, fui editora desta revista, criada em 2000. Sob minha coordenação, ela passou por dois projetos de redesign editorial, em 2009 e 2017. Em 15 anos, muita coisa aconteceu: nascimentos, mortes, guerras, revoluções tecnológicas, mudanças de comportamento social e cultural, ascensão e queda de governos e o Brasil (esse lugar que nos desestabiliza, sempre!). No âmbito do jornalismo cultural, buscamos observar e interpretar esses acontecimentos de perto, praticando um jornalismo comprometido com a qualidade, nas suas várias formas e gêneros.
Procuramos acompanhar a contemporaneidade no que ela nos oferece de vibrante, novo e relevante, trazendo assuntos que estavam sendo discutidos nestes dias, mas que não se encerravam nestes dias, porque é assim que o tempo é: urgente e persistente: uma pedra que cai agora no lago repercute em ondas expansivas infinitamente.
Esse movimento de acompanhar o curso dos acontecimentos demanda esforços e investimentos. Com o suporte da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), sem o qual esta publicação não existiria, pois revistas com a qualidade da Continente são trabalhosas e caras, empreendimentos financeiros e culturais cada vez mais escassos, a revista entregou mensalmente edições bem-cuidadas, cujo resultado final muitas vezes não expressava os esforços e as dificuldades de realização. Mas, se conseguimos tal feito, é porque temos sido profissionais envolvidas com os melhores resultados.
Para finalizar, destaco pessoas que têm feito desta revista uma publicação que marca a história do jornalismo cultural. As companheiras do dia a dia: Mariana Oliveira, Débora Nascimento, Luciana Veras, Olívia Mindêlo, Maria Helena Pôrto, com a colaboração dos nossos colegas de redação, profissionais e estagiários de várias épocas. Também agradeço a tantos colaboradores que trouxeram suas contribuições maravilhosas para a Continente. Desejo a vocês, sempre, excelentes encontros e leituras!
Adriana Dória Matos
Nossa capa: Montagem de Matheus Melo sobre fotos de Thalita Tavares (IGNUS)
CÁTIA DE FRANÇA
EU SOU AQUILO QUE VIVI, AS CAMADAS, OS TROPEÇOS
Aos 76 anos, dos quais meio século dedicado à música, artista paraibana fala da trajetória profissional e analisa suas influências e a relação com o Nordeste
TEXto ANToNIO LIRA
josé de holanda/divulgação
No início de nossa entrevista, Cátia de França, que falava comigo por videochamada direto de sua casa na região serrana do Rio de Janeiro, me perguntou, logo de cara: Qual a camisa que você veste?
. Estávamos em período eleitoral, ainda no final de 2022 e, como o assunto acabou surgindo em nossos primeiros contatos, ela queria saber qual era meu posicionamento político. Depois que eu confirmei que era de esquerda, ela brincou, dizendo que havia se levantado da cadeira, mas logo sentado novamente, ao saber da minha resposta. Em seguida, lamentou que colegas de sua geração estivessem apoiando a candidatura do então presidente que tentava se reeleger.
Para quem a conhece, talvez o relato acima não surpreenda. Afinal, durante toda a sua carreira de mais de 50 anos, Catarina Maria de França Carneiro nunca deixou de se posicionar em defesa daquilo que acreditava. Mesmo que, às vezes, tal posicionamento lhe tenha trazido custos. Sobre isso, Cátia, como ficou conhecida, conta que tem a certeza de que fez o certo, o que a faz dormir tranquila todas as noites.
Quem deu seu nome e seu apelido – que se transformaria em seu nome artístico – foi sua mãe, a professora Adélia Maria de França. Na casa dela, Cátia, desde cedo, entrou em contato com as ideias de Che Guevera, Josué de Castro, Dom Hélder Câmara e Francisco Julião. A professora, pernambucana de Aliança (PE), no entanto, nem sempre deixava que a filha se aproximasse dos artistas que viviam marcando presença no Mercado Central de João Pessoa, que ficava próximo à casa de dona Adélia, a primeira professora negra da história da Paraíba.
Foi na biblioteca particular de sua mãe, a afamada Biblioteca Coelho Lisboa – que tem esse nome em homenagem a um líder abolicionista paraibano – que Cátia começou a construir a sua poesia, inspirada em autores como Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo e João Cabral de Melo Neto. O rigor de sua mãe durou até que ela tivesse a segurança de que a filha estaria diplomada. Quando Cátia já era adulta, Adélia mandou-a para o Rio de Janeiro. Na capital fluminense, trabalhou como datilógrafa e participou de grupos de teatro subversivo.
Durante a repressão da ditadura, vivenciou a experiência de ser uma mulher negra, lésbica e nordestina na São Paulo dos anos 1970, sendo perseguida pela polícia política do DOI-CODI que, de acordo com ela, odiava nordestinos. Mas, assim como previra a sua mãe, que a mandara ao Rio justamente porque sabia que não iria conseguir impedir essa intensa relação, foi na música que Cátia de França encontrou a maneira mais encantadora de expressar a sua poesia.
Seus álbuns passeiam pela obra dos poetas que lia na casa de sua mãe, pela música eletrificada das guitarras dos Beatles, pelos ritmos que compõem o tecido da cultura nordestina, pelo swing do violão de Jorge Ben Jor e também pela psicodelia predominante na música dos anos 1970. Para além de uma referência estética e (re)criativa, a influência desta última, que marca toda uma geração de compositores e cantores nordestinos, era – para ela e para sua geração – quase como um antídoto, uma forma de lidar com o peso que vinha da sensibilidade, do entendimento e da reflexão crítica sobre as profundas violências pelas quais o Brasil passou. E das desigualdades que retalham o Brasil e o Nordeste por toda a nossa história.
Aos 76 anos, dos quais mais de 50 dedicados à sua arte, Cátia de França vem sendo reconhecida, mais recentemente, por uma nova geração e parte da crítica musical, que a coloca, com a justiça devida, no mesmo patamar que artistas como Alceu Valença, Elba Ramalho, Chico César, Amelinha, Bezerra da Silva e Zé Ramalho. Pela sua influência, talento, originalidade e inventividade que contribuíram para o desenvolvimento daquilo que se entende como a música do Nordeste e a música popular brasileira. Com a sensibilidade e a inteligência mais afiadas do que nunca, ela conversou com a Continente sobre política, música, teatro, literatura e a poesia de São José do Egito (PE), numa tarde de sábado de 2022.
CONTINENTE Para começar, Cátia, tem algo que você gostaria de falar para se apresentar ao leitor da Continente?
CÁTIA DE FRANÇA O povo pensa que meu nome é Cátia, mas não é, é Catarina. Sou filha única e é aquela coisa: minha mãe me chamava de cristalzinho
. Mas de onde é que vem? Catarina é um nome forte, de várias rainhas. E aí ela me bota Cátia, porque é diminutivo do russo. Não entendi nada. Meu nome de documento mesmo é Catarina Maria de França Carneiro. França é de mamãe, Carneiro é do meu pai. Sou filha única. Filha da primeira negra educadora da Paraíba. Para a época dela, era bem fora do esquema. E ela me criou nessa história toda. Veio do interior de Pernambuco, de Aliança (PE), muito nova, e foi pro interior da Paraíba e fez a gestão todinha ligada à cultura. Passou por São João do Rio do Peixe, Pedra de Fogo, Guarabira, Itabaiana. E aí quando ela vem (para João Pessoa) fica na Rua da República. João Pessoa tem dois platôs. O platô chique eu não gosto. Mas a cidade baixa é como se fosse Salvador, na Bahia. Minha história é essa. Sou filha única, meu signo é aquário, nasci em 13 de fevereiro de 1947. Estou com 75 (hoje 76 anos) e nasci em pleno carnaval, então, é uma desculpa pra minha doidice (risos). Estava passando o bloco Zé Pereira e eu nascendo na Maternidade Frei Martinho nas Trincheiras, em João Pessoa. Pronto, acho que já dei o meu B. O. todo, né?
CONTINENTE Deu, sim! (risos) Partindo disso, você fala que sua mãe vem de Pernambuco e passa por várias cidades até chegar em João Pessoa e que você também saiu de João Pessoa e foi para Pernambuco, depois para o Rio de Janeiro. Eu vejo que, na sua música, na sua poesia, esses lugares vão aparecendo. Itabaiana, a Ponta do Seixas. Queria que você contasse um pouquinho como essas viagens e seu trânsito por essas cidades compõem a poesia das suas canções.
CÁTIA DE FRANÇA Olha, o ancoradouro disso tudo era a coisa que mamãe tinha com os livros. Mamãe tinha uma biblioteca que era superafamada. O nome da biblioteca dela era Coelho Lisboa. Então, faltava manteiga, mas tinha livros. Acho que o dinheiro dela, o salário de professora, ia todo pra essa história. Na nossa casa, tinha o canto sagrado, que era a biblioteca, e o outro, que era onde ficava meu piano. Então, fiquei mergulhada naquilo. Eu vi que o que dava consistência era isso, já que eu era urbana, não era do interior. Zé Ramalho, Elba Ramalho, Chico César, são todos do interior. Minha proximidade com o povo era porque a casa de mamãe era na rua que vai desaguar no mercado central. Eu tinha acesso ao povo de longe. Queria era conviver – como os meninos conviviam – com cantadores de coco, com as feiras, mas ela não deixava. Então, foram os livros que me deram isso. Para não parecer mentirosa, fazer uma música sem ter estado no local, comecei a fazer pesquisa. Era como se estivesse num eterno vestibular
. Pegava os cadernos de escola, um lápis que desse pra pagar, decidia sobre o que ia ser a música e aí separava nome de homem, nome de mulher, nome de cachorro, situações, rios, lugares. A primeira vez que me debrucei (sobre uma obra) para compor foi a de um escritor paraibano, José Lins do Rego. Anos depois fiz um disco só sobre isso. Essa coisa que me torna eterna, que faz com que ninguém consiga dar uma rasteira em mim, é porque tudo meu é em cima de literatura. Minha inspiração vem daí. Foram poucas as vezes em que fiz baseada numa situação. Ponta do Seixas foi uma delas, porque não foi lido de livro. Foi em São Paulo, em 1975, na época dos anos de chumbo, a gente fazendo teatro subversivo, mas que, por fora, era como se fosse um cordel ingênuo. Elba Ramalho fazia parte, Madame Satã, Tonico Pereira – da Globo, d’A Grande Família – eu, Vital Farias, só músicos paraibanos. A polícia na época era a DOI-CODI e ela odiava nordestinos. Uma vez, terminaram pegando a gente na (Avenida) Brigadeiro Luís Antônio, onde era o teatro (em São Paulo). A gente dormia na parte de cima e embaixo era o teatro. Nessa época, aconteceu um incidente na Paraíba, e eu, com saudade, já que fazia muito tempo que não ia, fiz Ponta do Seixas. Que é uma praia e é uma das músicas que as pessoas exigem que esteja no repertório do show.
CONTINENTE Você falou da saudade. A saudade parece estar muito associada com a cultura e, sobretudo, a música nordestina. E essa experiência de saudade também é comum a muitos músicos do Nordeste, nesse processo de migração para o Sudeste. Mas queria lhe fazer uma provocação: como é que a gente faz pra lidar com tanta saudade sem correr atrás do passado?
CÁTIA DE FRANÇA Danou-se, rapaz! Isso aí é um mote pra fazer uma peleja (para um tempo e anota no papel) Rapaz… é impossível você arrancar, entende? Porque senão fica uma coisa sem substância, sem tutano. Eu sou aquilo que vivi, as camadas, os tropeços, as escolhas