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Colapso
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E-book185 páginas2 horas

Colapso

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Sobre este e-book

Colapso" reúne oito contos fantásticos de Ricardo Labuto Gondim, autor premiado de "Corrosão" e "Pantokrátor". O Universo e as esquinas são cenários de narrativas perturbadoras, que desafiam a classificação. Do Reino de Acab no século IX a.C. à noite de amanhã, passando pela ascensão e queda de Dom Pedro II. Da Basílica de Santa Croce, em Florença, às ruas do subúrbio carioca, passando pela última onda da praia de Ipanema. "Colapso" é a emoção e o prazer de ler. Mesmo quando a emoção é o terror.
IdiomaPortuguês
EditoraCaligari
Data de lançamento6 de set. de 2023
ISBN9786580885299
Colapso

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    Colapso - Ricardo Labuto Gondim

    cemitério dos mortos rebeldes

    Deus falou muitas vezes e de várias maneiras aos nossos antepassados por meio dos profetas. Mas nestes últimos dias falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o Universo. O Filho é o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu ser, sustentando todas as coisas por sua Palavra poderosa. Contudo, existem aqueles a quem a Palavra não pode tocar, seja por escolha e vontade do Pai ou pela própria rebeldia, e que buscam no ocultismo e na magia o domínio sobre as coisas criadas pelo Incriado. Como se o eventual controle sobre a Natureza, ainda que extraordinário, fosse prova de que a Palavra é insuficiente ou ilusória. O que compreendi ao longo de uma vida é que Deus é a Realidade Máxima. O que se vê e o que se toca são ilusões. Como disse o Senhor a Jeremias, clame a mim e Eu responderei, e anunciarei coisas grandiosas e insondáveis, que ainda não conheces.

    Tal promessa é cumprida dia após dia, há séculos de séculos, Hic et Ubique.

    A sabedoria ainda velada que ora compartilho não me foi dada pelo Céu. Não clamei, não pedi. Mas o mundo jaz no maligno, e o Mal é a substância do século. Como pode o servo da Piedade viver sem confrontar o príncipe das potestades do ar? Não anda o Inimigo ao derredor, rugindo como leão, buscando a quem possa tragar? Quem duvidará que existem coisas vivas e mortas excêntricas ao nosso viver e morrer? Pois eu vi a Estrela Caída atormentar a matéria dos defuntos. Audiat sapiens et addet doctrinam, et intellegens dispositiones possidebit.

    Neste ano do Senhor de 1889, a tirania militar destronou Sua Majestade Imperial dom Pedro II, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil; que nunca perseguiu ninguém, nunca se lembrou de uma ingratidão, nunca vingou uma injúria, pronto sempre a perdoar, esquecer e beneficiar. É verdade que tardou em libertar os escravos, é verdade que à alforria seguiu-se um desamparo, é verdade que manteve o Beneplácito Régio, que submetia as disposições e disciplina da Igreja à expressa aprovação de si. Mas também é verdade que nós, vigários da Palavra na Terra, com frequência falamos sem ouvir à Deus. Pois, neste ano, aprouve ao Céu enviar-me o sinal, serei poupado de testemunhar a extinção das luzes do amor de Sua Majestade à Sabedoria e às Ciências.

    Nasci a 7 de abril de 1831, o mesmo dia em que dom Pedro I abdicou da coroa e partiu ao estrangeiro, contra o usurpador infante dom Miguel, e em defesa do trono de sua filha mais velha, D. Maria II de Portugal. Vim à luz na mesma gloriosa data que elevou o príncipe dom Pedro de Alcântara à governança do Império.

    Por cinquenta e oito anos regeu o bom monarca, amante do progresso e do conhecimento. Aos cinquenta e oito anos, eu já não quero viver. Vim ao mundo entre prosperidades e morrerei Ordo Fratrum Minorum. Uma dor, uma convulsão, e a paralisia do lado direito do corpo anunciam, aproxima-se o dia em que, como toda criatura, desde a fria sepultura devo ser ali chamado, para ser por Vós julgado, Vós, Jesus, meu doce Bem. Deus, dai-me o descanso eterno, Amém.

    Mas não agora.

    Devo refutar as invenções que os literatos da Europa subtraíram às tradições da plebe. Fantasias que, elevadas à dimensão de Poder da palavra impressa, se difundem como a peste. A imaginação mais viva serve ao Mal e à Morte quando falseia as compleições do mito. Depois de tanto arrostar o Inferno e seus demônios, devo zelar para que prevaleça a Verdade. E rogar-Te, Senhor, supplex et acclinis, cor contritum quasi cinis, para que o meu fardo se passe adiante.

    Eu, o menor dos frades menores, batizado na Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro com o nome do apóstolo João, fui chamado de néscio, parvo e palerma desde a infância à puberdade, não recebendo outra instrução que me favorecesse a dúvida. Meu pai, Manoel Domingos, um tanoeiro de posses, fugiu do maior genocida da História, o infame Bonaparte, com minha mãe, seu primogênito, meu outro irmão, a corte e El Rei Dom João VI. Chegando ao Brasil, o senhor Domingos caiu prisioneiro dos olhos de uma cativa, no que jamais retornou à Portugal. Não era homem perverso, mas educado na fé inconvertível de que possuir e acumular são o propósito da carne. A mesma que obsequiou aos vermes sem mais exigir que não a cova. Minha mãe o secundou. Meus irmãos me desampararam. O Convento de Santo Antônio recebeu parte do espólio e herdou um órfão. A Ordem de São Francisco ganhou um frade, e eu, a Salvação.

    Os que não conhecem a Verdade e as obras da Divina Providência dirão que fui redimido pelo acaso. Mas Deus elegeu Frei Francisco do Monte Alverne, OFM, Pregador Oficial do Império do Brasil, filósofo e teólogo respeitado, para me salvar da inimizade do Eu. Frei Francisco reconheceu em mim o dom que o mundo louva à distância, mas rejeita e esmaga a qualquer proximidade, a Compaixão; o sentimento que meu pai, minha mãe e meus irmãos confundiram com parvoíce. Requiem Aeternam, todos dormem no Senhor. O doutíssimo Francisco, meu primeiro mestre, que mesmo amando Aristóteles repudiou as doutrinas de São Tomás e, de resto, toda a escolástica, jaz nas catacumbas nos fundos do Convento, de onde nunca mais saí, exceto para combater as obras do diabo.

    As duas linhas que justificarão a minha vida serão registradas no Necrologium Conventus Ordinis Fratrum Minorum. Se me estendi ao apresentar-me, fi-lo, não pelo pecado da vaidade, porque sou carne e vento que caminha e não volta, mas para que este testemunho não seja desprezado no futuro como apócrifo.

    Em 1854, jovem ainda, com razoável domínio do grego koiné e do clássico, fui convocado ao gabinete do Frade Superior em presença do venerável e douto frei Umberto, nascido Amaro Bezerra de Gonzaga em Ilha Terceira dos Açores. O decano de nossa comunidade e, de fato, muito avançado em anos. O Superior permaneceu calado e desconfortável durante todo o encontro. Frei Umberto, que primava pela firmeza que o corpo debilitado não prometia, entrou direto no tema.

    "Tu, menino, que conheces bem o grego. Ouvistes falar em empusai e lamiai?"

    Eu conhecia um pouco de mitologia grega e respondi de pronto, mesmo estranhando a pergunta.

    Lamia era uma jovem líbia de grande beleza, concubina de Zeus, e que lhe deu filhos. Hera os matou a todos por ciúme e perseguiu Lamia. A moça se escondeu numa caverna e, em seu desespero, se transformou num monstro que devorava crianças.

    O desespero transforma todos em monstros, disse frei Umberto, no áspero sotaque açoriano. "Mas e as lamiai?"

    "As lamiai são mulheres demônios que procedem do mito de Lamia. Assim como as empusai procedem de Êmpusa, um fantasma do séquito de Hecate, que assombrava mulheres e crianças e se alimentava de carne humana."

    "Podemos dizer que são succubus", sentenciou.

    "Ita, fratris optime. A comparação é aceitável."

    Lâmia é citada na Bíblia, ele disse. "Isaías 34:14. ‘Et occurrent daemonia onocentauris et pilosus clamabit alter ad alterum ibi cubavit lamia et invenit sibi requiem’."

    Receio, irmão Umberto, que apenas em nossa versão latina. Uma má tradução do texto hebraico, que jamais citaria um ente mitológico grego.

    Ele serve, disse Frei Umberto ao Superior, que apenas aquiesceu. O velho frade tomou-me me pelo braço e nos arrastou, com lentidão, entre as escadas do convento em direção à rua.

    "Tu, menino, que conheces bem o grego. Ouvistes falar nos vrykolakas?"

    Não, frei Umberto. Nunca ouvi esta palavra em minha vida.

    Não tem importância, ele disse. "Basta acreditar em mim e entender que os vrykolakas não existem."

    E calou. Seguimos de charrete para a Santa Casa da Misericórdia, na praia de Santa Luzia, perto do matadouro. Nas ruas, o que se vendia se gritava. Sorgo, milho, arroz, feijão, pão, vinho, azeite, goiabada, marmelada, melado e o mais que se podia carregar no artesanato das cesteiras. Desconhecendo os eventos terríveis que se avizinhavam, me distraí seduzido pela Babel nas ruas da Corte. Aqui e ali se ouvia a língua inglesa, os dialetos dos pretos, o lundu e as ladainhas da capoeira, e se percebia o idioma português caldeando pouco a pouco com o novo falar desta terra. Senti o calor criminoso, aspirei a poeira e os cheiros das comidas das biroscas e dos tabuleiros, o mijo nas esquinas e as fezes que escorriam dos tonéis que os cativos despachavam. Meditei que nossa vocação para a mestiçagem forjava uma nação.

    Não era um pensamento novo, mas algo que sonhava e discutia com meus irmãos no Convento. Rezando e confiando nos anseios do Imperador, que naquele ano favorecera a inauguração de nossa primeira ferrovia, criando ainda o Imperial Instituto dos Meninos Cegos. Meus confrades viam problemas na administração pública, mas eu era um cristão paciente e devoto. Se havia um argueiro no olho de Dom Pedro II, o nosso sustinha uma trave. Nós, Ordo Fratrum Minorum, os pobres de Deus e de Francisco, somos uma das ordens mais ricas da cristandade.

    Na Santa Casa fomos recebidos por um médico ilustre, o Conselheiro José Martins da Cruz Jobim, da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. O primeiro professor de tanatologia do Brasil, de louvada memória na Secretaria de Polícia da Corte, e que me encarou contrariado.

    Frei Umberto, disse ele, suspirando. Um menino?

    Nos trópicos, a vida dura e insalubre escava uma Jerusalém na face dos homens quando ainda são meninos. Eu, por alguma razão, fui poupado. Aos vinte e três anos, decerto parecia mais jovem, embora demonstrasse o vigor que a disciplina de trabalhos do Convento requisitava. Levantei a mão para protestar com o respeito devido, mas Frei Umberto baixou-a como quem espanta um inseto.

    O rapaz conhece o grego e fez votos, doutor Conselheiro, disse ele. Tudo vai acontecer em sigilo.

    O doutor Jobim pesou as mãos em meus ombros.

    Me encare, rapaz, me encare. Você não me conhece, nunca me viu, e hoje, jamais esteve aqui.

    O novo hospital ainda estava em construção, consumindo como um cancro o edifício velho, de que ninguém se lembra mais. Descemos uma escada nos fundos e seguimos por um longo, longo corredor inclinado, que avançava sob a terra. Lá longe, no fim, o lampião a óleo era a única luz a nos guiar (Perdoa-me, Senhor, porque pequei. O que mais pode fazer um pecador? Lux perpetua nos guiava, porque et lux in tenebris lucet et tenebrae eam non conprehenderunt) ardia em uma haste ao lado da pesada porta de jacarandá. Tudo era fuligem e imundice.

    Apoiado em meu braço, Frei Umberto claudicava. Parecia hesitar, menos por efeito da velhice que por alguma razão desconhecida. O Conselheiro Jobim nos precedeu, girando com dificuldade uma chave imensa na fechadura velha como o Tempo.

    "Tu credis quoniam unus est Deus?, meu confrade murmurou, citando as Escrituras. A Palavra de Deus reverberou de eco e Poder no corredor. Bene facis; et daemones credunt et contremiscunt!"

    "Amen, respondi. O que viemos fazer aqui, Frei Umberto?"

    Testemunhar a realidade do Mal, tremeu. "Viemos ouvir o vrykolakas."

    "Mas afinal, irmão, o que são os ‘vrykolakas’? Se o senhor mesmo disse que eles não existem..."

    Não existem. É o falso nome do pai da mentira.

    Mesmo com a pressa que não conseguia esconder, o doutor Conselheiro Jobim era um cavalheiro. Com o lampião estendido para o interior da câmara, sustentou a porta de jacarandá à nossa passagem e nos secundou. Foi preciso forçar para que fechasse, o que gerou uma trovoada e, depois, tremendo silêncio.

    O aposento estava cercado de estantes e escuridão. Um fedor contido, mas de caráter abominável, impregnava tudo. Havia três mesas compridas no extremo do recinto. Uma estava vazia. Nas demais, adivinhei dois cadáveres jazendo sob encerados encardidos. O Conselheiro Jobim despiu a casaca, vergou o guarda-pó e um avental de couro manchado.

    Mais luz aqui, rapaz, disse ele. As macas.

    Sobre cada mesa pendia um lampião. Na medida em que luziram, os contornos da sala ganharam relevo. O óleo rançoso rescendeu e trouxe certo alívio.

    As mesas compridas e as estantes eram do mesmo jacarandá pesado da porta, coisas que já então não se faziam mais. As prateleiras guarneciam livros, uma ampla coleção de órgãos humanos em potes com líquidos turvos, instrumentos de medicina e os frascos desconcertantes e belos da química. Não saberia dizer se era um necrotério ou uma sala de anatomia, mas algo ali excedia o silêncio e a ausência que só cabem na morte: uma murmuração ciciante e ao mesmo tempo inaudível; uma articulação imóvel; uma emanação sombria e mais antiga que o Universo. Algo que captávamos em um abismo de tristeza, horror e frio, onde não poderia fazer

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