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Corrosão
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E-book323 páginas4 horas

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Sobre este e-book

VENCEDOR DO PRÊMIO ODISSEIA DA LITERATURA FANTÁSTICA (2019) / FINALISTA DO PRÊMIO ARGOS (2019) 
No Sistema Solar, na viagem mais longa empreendida pela humanidade, a tripulação da nave espacial Nikola Tesla descobre o impensável. Um navio devastado, afundado há mais de dois séculos e à deriva em uma elipse de gás: o Titanic. Não é o princípio de uma história, mas o seu fim. Tudo começou há bilhões de anos. No Universo em que a ocorrência da vida é uma aberração. Sob as forças da Natureza primordial. Antes da CORROSÃO do tempo e do espaço.
Ricardo Labuto Gondim é teólogo, roteirista, professor e ensaísta. É autor dos livros "B" e "Deus no Labirinto". Sobre as obras do autor, o publicitário Washington Olivetto disse ter originalidade e excelência literária e o escritor Raphael Montes achou um boa surpresa lê-lo.
IdiomaPortuguês
EditoraCaligari
Data de lançamento22 de ago. de 2018
ISBN9788594496362
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    Corrosão - Ricardo Labuto Gondim

    Sumário

    I. NO PRINCÍPIO 9

    II. LIMBO 13

    III. CICLO CIRCADIANO 20

    IV. PRIMEIRO INTERLÚDIO 26

    V. VISÕES 29

    VI. DO PODER 35

    VII. O’BANNON 38

    VIII. SEGUNDO INTERLÚDIO 44

    IX. DESACELERAÇÃO 46

    X. HIDROGÊNIO 53

    XI. O DESENHO 58

    XII. INÉRCIA 64

    XIII. SUCATA 71

    XIV. FURACÃO 77

    XV. MÓDULO 2 83

    XVI. O SISTEMA 86

    XVII. ESTORVA 90

    XVIII. AS SETE LETRAS DO NOME 96

    XIX. O NOME 101

    XX. VIAGEM AOS ALICERCES DO MUNDO 108

    XXI. OS VIVOS E OS MORTOS 124

    XXII. NIILISMO 129

    XXIII. A SONDA 136

    XXIV. SALA DE FUMAR 140

    XXV. ARTIFÍCIO 146

    XXVI. TERCEIRO INTERLÚDIO 150

    XXVII. ONTEM, O AMANHÃ 153

    XXVIII. УКЛОНЧИВЫЙ МАНЕВР 157

    XXIX. VAPOR 163

    XXX. ATRITO 168

    XXXI. RESSURREIÇÃO 174

    XXXII. FUNERAIS 180

    XXXIII. ABORDAGEM 186

    XXXIV. FOGO-DE-SANTELMO 191

    XXXV. SINGULARIDADES 194

    XXXVI. NEBLINA 200

    XXXVII. CORROSÃO 208

    XXXVIII. ESFERAS 211

    XXXIX. NUCLEOSSÍNTESE 214

    XL. O POLISSÊMICO 218

    XLI. O SOFISMA 224

    XLII. PARALELOS & MEDIEVOS 230

    XLIII. AURORA 237

    XLIV. UMA DESCIDA NO MÆLSTRØM 243

    XLV. ATLÂNTICO NORTE 248

    XLVI. HEIDSIECK & CO MONOPOLE BLUE TOP BRUT 254

    XLVII. ANNIE 260

    XLVIII. O TELEGRAMA 265

    XLIX. IN EXTREMIS 271

    POSFÁCIO DO AUTOR 275

    I. NO PRINCÍPIO

    No princípio, há quatro bilhões e quatrocentos milhões de anos, a Terra era informe e vazia. Foi quando o planeta irmão Theia consolidou o seu núcleo, entrou em uma órbita caótica e colidiu com a Terra.

    A aniquilação de tudo o que era sólido se consumou. As rochas planetárias e os núcleos ferrosos liquefeitos se enlearam. Um fragmento de Theia se desprendeu da fúria criadora para ser escravizado pela nova Terra que ainda pulsava. O satélite rochoso – a Lua – governou a longa noite do mundo em trevas. Até que um espasmo de energia desencadeou o dilúvio, de onde emergiu o oceano primordial e também a luz.

    A vida surgiu sob a face das águas um bilhão de anos mais tarde. Nos alicerces do mundo, durante quinhentos e quarenta milhões de anos, organismos gelatinosos e artrópodes disputaram a possibilidade dos impérios, das catedrais, da desintegração do átomo. Então sobreveio o descendente do primeiro cordado, que se arrastou na lama, se ergueu no solo, dominou o fogo anterior à origem e sonhou.

    Essa é a genealogia do cargueiro espacial Nikola Tesla, triunfo da civilização do século XXII. Que, do abismo oceânico à profundidade mais fria e silenciosa do sistema solar, consumiu três bilhões e quatrocentos milhões de anos de evolução.

    O Tesla era um leviatã de polímeros e ligas metálicas.

    Uma estrutura de vigas leves e intrincadas, estabelecida em aros e extensões helicoidais, formava o berço, a armação interna. Ao seu abrigo, duzentos e oitenta metros de casco comportavam até seis decks de compartimentos rotatórios. A superestrutura exterior edificava as formas arrojadas e assimétricas da nave.

    Na proa, embora adiante da armação, a meia-esfera sem vigias da ponte parecia recuada: os retropropulsores serviam como escudos, reforçados a bombordo e estibordo pelos intrigantes geradores do plasma de Talich. Em sequência, no convés superior erguiam-se o conjunto dos sensores e antenas. Depois, a superfície regular dos depósitos de carga, revestidos com unidades solares. Os depósitos se dividiam em seções e ocupavam metade da estrutura. A metade inferior guarnecia os acumuladores, os tanques dos combustíveis e de gás. Em linha para a ré, depois de uma pequena extensão de carenagem regular, elevavam-se as cúpulas dos três reatores. O primeiro alimentava os geradores do plasma de Talich. O segundo, o conjunto dos sistemas. O terceiro, o reator-motor Schuricht-Bultmann, gerava a energia termonuclear propelente, utilizando hidrogênio como fluido de trabalho.

    A cúpula do reator intermediário também acomodava os motores de combustível molecular. Para otimizar o desempenho da nave, muitas funções poderiam ser remanejadas. Como o Schuricht-Bultmann e as máquinas químicas alimentavam a vante e a ré, a operação seria executada pelos Éstos, os imensos robôs que imperavam sob os domos.

    Com exceção da área de carga, ao longo do convés superior, costados e bojo do Tesla havia elementos embutidos ou em relevo na superestrutura, como as três naves auxiliares em forma de disco. Máquinas percorriam a face externa sobre trilhos e cabos para realizar procedimentos e manutenção.

    Noventa e seis impulsores de manobras se estendiam ao longo da superestrutura. À ré ficavam os quatro gigantescos propulsores e o par auxiliar. Naquele momento, apenas os geradores de plasma estavam em operação. A nave utilizara a massa planetária de Júpiter – capaz de arrancar um cometa de sua órbita – como estilingue, e o plasma de Talich estimulava a aceleração contínua.

    O sistema de bordo efetuara a manobra espreitando o Universo, colecionando dados e guiando o Tesla na proa de Plutão.

    Classificado como cargueiro por suas dimensões monumentais e cento e cinquenta mil toneladas, o Nikola Tesla era uma nave mineradora e de exploração. Um milagre tecnológico construído em apenas três anos para se adaptar, evoluir e realizar A Missão.

    A armação e o casco foram montados em apenas oito meses no estaleiro da Corporação em órbita da Terra. Rebocados para o dique orbitário da Lua – bem acima das minas e da siderúrgica da companhia –, a armação ganhou a couraça assimétrica da superestrutura. De volta ao estaleiro orbital terrestre, a nave recebeu a equipagem interna e externa. Os reatores, mesmo subindo desmontados, monopolizaram dois elevadores Clarke durante seis meses, exigindo ainda dezenas de foguetes de carga.

    O Tesla foi criado para interceptar, seccionar e carregar um asteroide com vastas reservas de um óxido extraordinário, capaz de manter propriedades supercondutoras sob altíssimas temperaturas sem entrar em fusão. Fenômeno termodinâmico excêntrico, havia uma única amostra do composto intermetálico, descoberta no coração de um meteorito de bilhões de anos escavado em Marte. Análises espectrográficas incidentais e de alta latitude sugeriam a mesma composição e configuração geológica em um asteroide de setecentos metros – classificado como ICG7-51 – que se aproximava de Plutão, em termos relativos, a cada trinta e quatro anos.

    A ambição de encontrar o composto transformou semelhanças em igualdade. A Missão consistia em arpoar o asteroide com mísseis inteligentes, que se cravariam na rocha sólida com o ímpeto dos ferros de Acab nas carnes de Moby Dick. Cada míssil seria um propulsor articulado para refrear o asteroide e guindá-lo em órbita paralela ao Tesla, como uma baleia morta. A abordagem seria executada pelos robôs que operavam os reatores da nave, sob a supervisão do hardware biológico. Como nos asteroides os metais não estão próximos do núcleo, mas distribuídos ao longo da massa, o corpo celeste seria dissecado com lasers de alta penetração.

    Desprezando níquel, cobalto, ferro e, se fosse o caso, metano e nitrogênio, os robôs carregariam platina, elementos raros e o ansiado óxido batizado pela Corporação de MacGuffin – homenagem ao seu descobridor, o geofísico espacial Allen MacGuffin, o nome mais célebre da primeira geração de colonos estabelecida no planeta vermelho.

    As possibilidades de um material supercondutor com as características do MacGuffin eram formidáveis. Mas, em seu íntimo, cada tripulante indagava se os custos da nave e da missão, em um mundo de recursos tecnológicos quase infinitos, estariam justificados. Sem grande entusiasmo, analistas sugeriam que o MacGuffin poderia apresentar propriedades antigravitacionais voláteis ou coisa similar. A possibilidade teria sido mantida em sigilo para resguardar a Corporação de um fiasco de proporções bíblicas.

    A responsabilidade sobre A Missão e o Tesla, que envolvera uma base tecnológica e um esforço econômico sem precedentes na História, pesava sobre os ombros do Comandante Kirill Aleksandrovich Mravinsky, de São Petersburgo.

    II. LIMBO

    O compartimento criogênico jazia em uma glaciação.

    Mravinsky foi desconectado da unidade criônica. Induzindo a estase, a interrupção do fluxo dos líquidos corporais, o sono criônico era morte em suspensão. Um estado único na natureza, em que uma dor extrema se espalhava com o sangue que tornava a circular. Se o cérebro não despertasse com lentidão do abismo letárgico, a agonia seria fatal.

    Uma fina membrana envolvia o corpo com gel e fluidos nutrientes, impedindo a queima da derme pelo material congelante. Enquanto a membrana não se rompeu, persistiu a sensação terrível de imóvel afogamento. Com a elevação da temperatura corporal, o equipamento rasgou e sugou a placenta sintética, inclinando a maca ergonômica no casulo horizontal para que o Comandante não se afogasse no próprio vômito. Uma êmese lenta, espasmódica, aquosa. Mais de uma hora transcorreu antes que ele pudesse se sentar, e quase outra hora até que o metabolismo se elevasse para receber a imensa carga de drogas que o puseram de pé.

    Membro da elite habilitada a fazer a rota de Marte, com aquela viagem decisiva Kirill Aleksandrovich se tornava o primeiro comandante de longo curso na história da navegação espacial. O primeiro a atingir o sistema solar sideral e a ultrapassar as fronteiras de Júpiter. Mravinsky era um homem alto e vigoroso de cinquenta anos presumíveis, rosto sulcado e simétrico, olhos de um azul cinza-aço e sobrancelhas em arco que formavam uma expressão sólida. Uma estreita cicatriz esbranquiçada à direita da face lhe escapava acima da barba grisalha e rente, enaltecendo de algum modo a emanação de segurança e tranquila autoridade.

    Experimentando os próprios passos, o Comandante caminhou para o chuveiro que lhe concedeu quantidades restritas de água, elementos químicos reparadores e flashes de ultravioleta. Vestindo o macacão de cruzeiro, só então se deu conta, fora o único despertado pelo sistema.

    Não era um bom sinal.

    Treinado e condicionado a controlar emoções e jamais demonstrá-las, vivendo em um século orgulhoso da Razão materialista – que faria corar os irracionalistas do século XX que lançaram as bases da Corporação –, Mravinsky não reagiu à solidão em si, mas ao insólito da circunstância.

    Sensores no traje, implantes corporais e nanorobôs moleculares em sua corrente sanguínea trocaram informações com a nave. A.N.N.A., o sistema de bordo do Nikola Tesla reconheceu em Mravinsky sintomas de ansiedade. Uma emoção perigosa, capaz de gerar angústia, o mais letal dos estados anímicos. Sensível ao contexto dos fenômenos e imperativos na interação entre entes biológicos e não biológicos, ANNA primeiro formulou um discurso tranquilizador.

    — Bem-vindo, Comandante — disse a máquina com a voz feminina mais suave e mais bela do sistema solar. A reprodução do áudio era tão perfeita que ANNA parecia existir ao redor dele. — Por favor, não se alarme. A nave está em perfeito funcionamento e continuamos na rota estabelecida.

    Ele suspirou. ANNA mediu o volume do ar expirado e a intensidade do som audível. Traduzindo os indicativos de emoção em logaritmos, concluiu que o Comandante estava bem.

    — Que lugar é este, Anna? Relate informalmente.

    A ordem era para que a máquina reduzisse os dados técnicos precisos a conceitos gerais.

    — Aceleramos na aproximação a Júpiter e quase dobramos a velocidade projetada para o efeito estilingue. Estamos a meio curso da órbita de Saturno, senhor. Seguindo na proa de Plutão.

    — Muito bem — disse Mravinsky. — Por que me acordou?

    A resposta, que embutia um elemento extraordinário, foi suavizada pela graça fluente da voz.

    — Detectei um fenômeno astronômico singular e não posso classificá-lo. Informei à Terra e a resposta chegou há pouco mais de duas horas. A Corporação deseja que o senhor analise os dados para decidir se o fenômeno deve ser investigado in loco ou não. Por isso o senhor foi solicitado.

    — Que tipo de fenômeno, Anna?

    — Não sei, Comandante. A Corporação apelidou de anomalia.

    Se o Sistema A.N.N.A. não podia classificar o evento, pensou Mravinsky, se não fora induzido a erro pelos sensores, detectara um fenômeno jamais observado.

    ANNA era uma máquina neuromórfica. Um ente artificial capaz de aprender. A fusão inextricável entre inteligência artificial e sistemas periciais. Uma programação heurística baseada na experiência registrada e acumulada por milhares de especialistas biológicos e não biológicos, lastreada por todas as teses relevantes, todas as teorias fundamentadas e a súmula de todo o conhecimento historiado desde as primeiras pinturas nas cavernas há trinta e cinco mil anos. Em seus bancos de dados, milhões de livros e a síntese do desenvolvimento humano permaneciam ordenados em bits, qubits, hologramas, moléculas orgânicas e inorgânicas. Se o planeta Terra desaparecesse, a nave testemunharia a História do Universo segundo o Homem.

    O Sistema A.N.N.A. era cada polegada cúbica da nave e o Todo. A interconexão dos milhares e milhares de sensores, processadores, circuitos lógicos, sistemas periféricos autônomos e sencientes do Nikola Tesla, que perfaziam a Unidade Consciente no núcleo de um computador quântico universal. O cérebro quântico – que ordenava átomos de mercúrio a laser para processar informação a milhares de yottaflops – operava em paralelo com os computadores holográficos, moleculares e biomoleculares baseados em ADN. Cada evento ou processo específico – da radiação de um magnetar à cefalgia do Comandante – encontraria a solução ótima de processamento em tempo polinomial.

    — Preciso de um squeeze de café — disse Mravinsky, entendendo que seria necessário mais tempo para despertar e entrar no domínio de si mesmo. — Um café e estarei na ponte.

    A anomalia permanecia muito distante e fora da rota para ser emulada em modo gráfico. Estava representada por números resultantes de medições imprecisas e incontáveis projeções. Mravinsky ocupou o posto do navegador e trabalhou com método, esgotando seu limitado domínio do equipamento. Para tomar a decisão, teria de convocar um especialista capaz de raciocinar com objetividade.

    Quem deveria despertar para sobrepujar a maldição da estase e, talvez, dormir em seguida?

    Considerando a natureza da anomalia, a escolha lógica seria a astrofísica da nave, Anitra Nordraak. Ninguém mais habilitado para julgar a relevância de um fenômeno cósmico. Ao mesmo tempo, ninguém mais suscetível à ideia de investigar algo novo em seu campo de conhecimento.

    A alteração da rota e a possibilidade de desaceleração da nave eram decisões críticas. Havia uma missão a cumprir em prazo determinado. O atraso poderia implicar em um hiato de trinta e quatro anos. A sedução de pura ciência embutida no evento – listas intermináveis de números, equações e perguntas sem resposta – não poderia ofuscar os elementos econômicos e até mesmo políticos envolvidos na decisão. Ordenando a interrupção do sono criônico, a Corporação transferira a responsabilidade da decisão para o Comandante da nave. Mravinsky conhecia a companhia. O gesto não era a omissão do implacável Conselho Corporativo, mas uma expressão de confiança no seu discernimento.

    Kirill Aleksandrovich se decidiu pelo navegador e piloto Oleg Koslov, de Tchaikovsky, no Krai de Perm. Koslov conhecia todos os códigos no âmbito da navegação, dominava o equipamento melhor do que a si mesmo e, em princípio, não teria nenhuma razão particular para se inclinar a uma ou outra escolha. Ele estava ali para testificar a eficiência de ANNA em calcular rotas e conduzir o Tesla sem a ajuda de ninguém.

    — Oleg — disse Mravinsky.

    ANNA repetiu o nome e não fez perguntas.

    Na ponte do Tesla havia cinco amplas poltronas cercadas por painéis de controle, telas, mostradores físicos e holográficos. As poltronas I e II ficavam lado a lado, unidas por um rack de instrumentos e voltadas em linha para a grande Tela de Navegação. A III e a IV, paralelas e opostas entre si, eram perpendiculares às duas primeiras. A V poltrona, maior e mais alta que as demais, distinguia a soberana autoridade do Comandante.

    O conjunto estava sob um teto baixo: uma plataforma de painéis móveis reconfiguráveis, com displays, botões, manoplas e válvulas mecânicas, que se deslocavam com suavidade acima da tripulação como um quebra-cabeça – segundo necessidades operacionais antecipadas por ANNA.

    Mravinsky permanecia de pé ao lado de Koslov, convocado das trevas criônicas para se recuperar num átimo e bocejar sobre os painéis da poltrona I. Mesmo com a plataforma baixa, paredes em curva cobertas de racks e espaços apertados, a meia-luz gerada pelos instrumentos e telas tornava a ambiência do passadiço serena e agradável.

    Agora havia uma imagem representativa. Imprecisa, oscilante, mas superior a tudo que Mravinsky conseguira obter. Uma forma captada por mapeadores de espectro, radiômetros, duas centenas de espectrógrafos, sensores e detectores múltiplos, que processavam dados para gerar representações visuais nas telas dos emuladores da ponte – apelidados com nostalgia de radares. Um traço incerto e borrado piscava em meio a uma mancha muito ampla e indefinida. Ampliada em ângulos distintos, a configuração permanecia indecifrável.

    — Onde estamos, Oleg? — perguntou Mravinsky.

    — A órbita de Saturno está mais perto que a de Júpiter, mas um pouco mais pra lá — e fez um gesto vago, desdenhoso, à direita do radar. Saturno não interessava ao plano de aceleração da nave. Podendo englobar quase oitocentos planetas Terra e tendo noventa e cinco vezes a massa terrestre, o gigante de gás era tão pouco denso que não afundaria em um aquário.

    — E o que é isso? — insistiu Mravinsky.

    Koslov balançou a cabeça sem tirar os olhos da tela e sugou o squeeze que impedia o café de flutuar na baixa gravidade. Descontados os noventa meses de sono criônico acumulados em um cruzador de médio curso, o navegador do Tesla contava trinta e cinco anos de vida. Seu rosto preservava a juventude, mesmo para os padrões de uma civilização que combatia o envelhecimento em nível molecular pela química e pela nanotecnologia; em que os homens nasciam sob a tutela das terapias gênicas; onde a morte se cansava de esperar. A aparência e a conduta seca e informal lhe davam ares de imaturidade, traço que o comportamento confirmava. Koslov tinha consciência dessa fraqueza, mas não se importava. Algoritmos o recomendaram para o posto e, a bordo, a convivência era compulsória.

    — Só posso garantir que é metálico e tem mais de… pelo menos uns duzentos metros de comprimento — disse, sofrendo um leve estremecimento. Ainda sentia frio e a ardência do combate à estase.

    — Você nunca viu nada parecido? — perguntou Mravinsky. — Anna não viu.

    Koslov tratou o Comandante com intimidade. A hierarquia só era invocada durante as operações de rotina da nave, que obedeciam a todos os protocolos, ou nos episódios em que o profissionalismo exigia alguma ênfase.

    — Mesmo estando tão longe e fora de rota, os instrumentos calculam que o objeto tem alguma simetria, Kirill Aleksandrovich. Ele não é cem por cento retilíneo, não é cem por cento curvo, mas parece ter relações de proporção. Foi o que despertou a curiosidade… — Houve uma breve hesitação. — Foi o que chamou a atenção de Anna.

    Mravinsky experimentou algumas funções no emulador. Tudo mudava e nada mudava.

    — Anna — chamou.

    — As chances de ser uma formação natural são remotas, Comandante — disse a máquina. — A simetria do objeto é incomum. Teremos contato visual em setenta e duas horas. O senhor deseja que eu acorde os demais?

    — Creio que sim.

    Koslov bocejou com atrevimento.

    — Muito respeitosamente, não seria melhor esperar e fazer uma nova leitura daqui a setenta e duas horas? Esse negócio de estase é desagradável.

    Mravinsky sorriu.

    — Se daqui a setenta e duas horas continuarmos em dúvida sobre esta coisa, teremos de convocar os outros de qualquer jeito. O veredito de Anna está baseado em números que já possuímos. O contato visual é a concessão aos mortais.

    — Mas…

    Mravinsky encarou o navegador com uma expressão serena. Koslov balançou a cabeça. Confiava no Comandante, sabia que ele estava sendo lógico e não tinha outro argumento além do meticuloso desconforto da estase.

    — Muito bem, Anna — disse Mravinsky. — Ressuscite os mortos.

    ANNA entendeu.

    III. CICLO CIRCADIANO

    O Nikola Tesla tinha corredores estreitos. Alguns não eram mais do que tubos sem gravidade interligando aposentos acima e abaixo. Acessível por duas câmaras de transição, o refeitório era simples, funcional e asséptico. Enquanto o compartimento girava sobre o próprio eixo e gerava a gravidade indispensável à manipulação dos alimentos, infinitas paisagens terrestres, lunares e marcianas se sucediam nas paredes circulares, segundo a vontade de ANNA.

    Além de medir os sinais vitais da tripulação, o sistema lia todas as formas de expressão – como os rictos faciais – para detectar estados anímicos. Os dados eram traduzidos em logaritmos e interpretados. ANNA tentava promover o equilíbrio emocional do hardware humano pela manipulação das imagens, temperatura ambiente, emissão

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