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As farsas dos moços de capela
As farsas dos moços de capela
As farsas dos moços de capela
E-book378 páginas5 horas

As farsas dos moços de capela

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Sobre este e-book

A trama de As Farsas dos Moços de Capela é ambientada no período da alta renascença em Portugal e traz elementos da forte proximidade estabelecida entre o Rei e a religião, na época.

O título é uma menção às peças de teatro que no Séc.XVI eram chamadas de farsas. Os protagonistas são dois jovens sacristães, também chamados de moços de capela. A narrativa mescla fatos históricos com a ficção. Durante o reinado de Dom João III os mosteiros femininos passaram por momentos críticos por conta do que se falava em termos de promiscuidade e de falsa prática religiosa. Este rei estava decidido a acabar com estes mosteiros e teve um foco muito centrado num deles, que foi o Mosteiro de Lorvão. Este mosteiro foi habitado durante um longo tempo por uma geração de mulheres da família Eça que eram descendentes de Inês de Castro, a conhecida, na história de Portugal, como a rainha morta. Nesta fase da história, o mundo passava por uma intensa confrontação dos dogmas da Igreja católica. A reforma de Lutero estava se formando e ganhando vulto e a Inquisição era, também, um dos objetivos da Corte portuguesa junto ao papado. A perseguição aos judeus e a qualquer outra prática religiosa eram fatos. As bruxas e a magia floresciam naquele ambiente em que o sobrenatural incomodava os poderes instituídos. Neste contexto, um importante sacerdote franciscano, intelectual e muito influente bibliotecário, vira alvo de investigações sigilosas por conta de uma suposta relação com as idéias da Reforma. E foi unindo os interesses destes poderes que cria-se uma grande trama (ou farsa!) e os dois protagonistas são manipulados dentro de um jogo de intrigas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de jun. de 2019
ISBN9788468538341
As farsas dos moços de capela

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    As farsas dos moços de capela - Carlos Hiran Goes de Souza

    As Farsas dos Moços de Capela

    Carlos Hiran Goes de Souza

    © Carlos Hiran Goes de Souza

    © As Farsas dos Moços de Capela

    Capa: Raul Fernandes

    Foto de capa:Valentino Sani/Trevillion Images

    ISBN formato epub:

    Impreso en España

    Editado por Bubok Publishing S.L.

    Reservados todos os direitos. Salvo exceção prevista pela lei, não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, nem a sua incorporação a um sistema informático, nem a sua transmissão em qualquer forma ou por qualquer meio (eletrónico, mecânico, fotocopia, gravação ou outros) sem autorização prévia e por escrito dos titulares do copyright. A infração de ditos direitos implica sanções legais e pode constituir um delito contra a propriedade intelectual.

    Dirija-se a CEDRO (Centro Espanhol de Direitos Reprográficos) se precisa de fotocopiar o digitalizar algum fragmento desta obra (www.conlicencia.com; 91 702 19 70 / 93 272 04 47).

    Dos que creem no amor de filho, sou dos tais que preferem ter uma mãe a viver, ao menos, nos sonhos. Prefiro assim, que não a tê-la de vero diante dos olhos e aos afagos. Percebo o quanto isso me faz bem ao coração. Penso que os que dormem e sonham com ela sofrem menos a dor da falta dessa mulher!

    (Lucas de Cela)

    Aos meus pais

    Luiz e Osmarina

    A Cândida, Yuri e Lara

    A razão de tudo.

    Índice

    CAPÍTULO 1 Mistério glorioso: « A morte e a ressurreição do moço de capela » (Segundo Lucas)

    CAPÍTULO 2 A vida depois da ressurreição do moço de capela. (Em nome do Pai)

    CAPÍTULO 3 « Mea culpa! » (Segundo Lucas)

    CAPÍTULO 4 « O Mistério da purificação e outros mistérios dolorosos. » (Em nome do pai)

    CAPÍTULO 5 « As revelações do anjo no sétimo dia» (Segundo Lucas)

    CAPÍTULO 6 «A transfiguração dos anjos» (Em nome do Pai)

    CAPÍTULO 7 «As revelações do sacerdote e o desencanto do moço de capela» (Segundo Lucas)

    CAPÍTULO 8 «A farsa das farsas» (Em nome do Pai)

    CAPÍTULO 9 «O mistério doloroso da verdade pura» (Segundo Lucas)

    CAPÍTULO 10 «A salvação pela denúncia» (Em nome do Pai)

    CAPÍTULO 11 «Pelo sinal» (Segundo Lucas)

    CAPÍTULO 12 « As aves sem pouso» (Em nome do Pai)

    CAPÍTULO 13 « Eis o milagre da fé» (Segundo Lucas)

    CAPÍTULO 14 « O dia do final do juízo» (Em nome do Pai)

    CAPÍTULO 15 Mistério luminoso: « A assunção dos filhos de Maria » (Segundo Lucas)

    CAPÍTULO 16 « O último rosário à mãe de misericórdia e as farsas dos velhos moços de capela» (Segundo Lucas, em nome do Pai eterno)

    Notas do autor

    Uma nota de carinho

    CAPÍTULO 1

    Mistério glorioso:

    « A morte e a ressurreição do moço de capela »

    (Segundo Lucas)

    De nada adiantaria ficar ali a gastar lamentos.

    Precisava despachar-me. O sítio era um pouco distante, mas não seria nada prudente por-me a correr feito um fugitivo da casa para doidos. Dali por diante, a respiração ofegante e o baque surdo das velhas botas passaram a marcar o ritmo do meu regresso. Parti cauteloso mas aos passos largos, o que seria o esperado para a ocasião!

    Por dentro, estava tomado pelo profundo pavor dos perseguidos. Falo aqui, do dito medo intenso que numa fuga desembestada, embrenha-se pelos músculos das pernas a provocar tremores incontroláveis. E, como acréscimo, tranca-nos mais os dentes, deixando-nos a boca em trismo.

    Valha-me Deus!

    Além de todo cuidado e travas, custava-me crer na menor das possibilidades de ser avistado naqueles cantos, por àquelas horas. Custava-me imenso a crer, pelos olhos da cara! Pois é por demais sabido que Lisboa tem para lá de quatrocentas ruas, uma centena de travessas, oitenta e poucas ruelas e sessenta e tantas praças onde um encontro indesejado, daquela espécie, poderia vir a acontecer a qualquer outro mortal!

    Pelos Santos Óleos!

    Não haveria de ser naquelas vielas estreitas, cheirando a sardinhas fritas, que se daria justo cá comigo! Não haveria de ser eu o mais querido da fatalidade. Mas, como só Deus é quem sabe o que nos reserva o destino dos homens, por pura cautela, preparei-me para o inesperado. Mantive-me atento qual um felino, a olhar para todos os cantos em minha volta enquanto tomava meu rumo reto até o Rossio.

    Entrego a Deus! Pensei comigo com a cabeça elevada aos céus.

    O Pai todo poderoso há de dar-me a sua santa misericórdia!

    Pois, ninguém mais teria poder suficiente para salvar minha alma e pele, naquela, já, madrugada!

    O eco do coração subia-me à garganta e voltava à boca do estômago. Estava a temer até a perseguição da minha própria sombra, mas tinha comigo a consciência de que o mais prudente não seria pôr-me em disparada. Descia eu a colina! E mesmo sabendo que para descer todo santo nos dá alguma ajuda, um passo falho que fosse, e não haveria um deles que me segurasse o tombo! No entanto, era preciso andar o mais rápido que pudesse, para encurtar minha chegada ao hospital. E, isto era mais que necessário, sim senhor! Senti que o vento e a garoa fina tentariam diminuir as minhas passadas, mas, simplesmente, segui disposto, em frente, mesmo com os músculos contraídos e mal conseguindo abrir a boca. Se, por um lado, toda aquela apreensão aquecia-me imensamente o corpo, por outro, o suor do pavor que me corria por dentro dos fatos, desafiava o frio que circulava ao redor!

    Creio que não há cristão, na face desta terra, que aguente tamanha penitência! Pois, eu, um pobre penitenciado, não rogava outra coisa a Jesus Cristo que não fosse levar-me são e salvo até a minha amada sacristia. E rápido, se assim o merecesse! Desejava imenso, lá chegar sem dar nas vistas de ninguém, bem antes que qualquer outro ser de carne e osso! Ansiava adentrar manso, em silêncio, e postar-me para as minhas tarefas com a mesma serenidade de sempre. Tudo como de costume, sem que nada parecesse fora do habitual na preparação da primeira missa.

    Preocupava-me com as obrigações que tenho logo cedo, bem antes do clarear.

    Como regra, os padres capelães dizem todos os dias, antes do nascer e ao pôr do Sol, duas missas de sufrágio pelas santas almas dos fundadores do Hospital Real de Todos os Santos, El-rei Dom João II e Dom Manuel, o Venturoso.

    Consta do Regimento Maior do hospital que todos os empregados, os enfermos das quatro enfermarias e os internos da casa para doidos têm a obrigação de participar destas celebrações diárias. O que não está escrito, é que esta obrigação individual não é maior que o desejo de cada um destes filhos do Senhor em estar presente de corpo e coração em todas as ações litúrgicas promovidas pelos dois principais sacerdotes: O nosso capelão vigário Dom Miguel Fernandes Martins, o Frei Miguel e o segundo capelão Dom Ângelo de Lucena, o jovem Frei Anjo. Nestas horas, todos, internamente, sem exceção, compartilham um sentimento comum e unem-se em oração para a remissão dos pecados, a remediação das dores e a busca da graça da salvação na fé cristã e na devoção católica. As missas de adoração e agradecimento aos benfeitores do maior nosocomium do mundo são, portanto, momentos imperdíveis e muito aguardados por todos. Os padres capelães, diga-se mais, são responsáveis, não só, por estas celebrações, mas também por toda a assistência espiritual e religiosa do hospital. Para estes santos homens, os dias são curtos para o que tem de afazeres. Pois, com o trabalho que não é pouco, é de se calcular que precisem de ajudantes para dar conta de tudo, a tempo e hora. Para isto, estão sempre lá, lado a lado, fielmente a segui-los com todo amor em Cristo, dois sacristães.

    Dois homens feitos, que se diga, com os pelos dos bigodes a engrossar nos rostos, que, entretanto, são conhecidos por moços de capela.

    Pois, sim ! Sou um destes moços.

    O outro, chama-se Augusto Homem dos Reis.

    Nós, os dois, somos os benditos escolhidos para esta função para lá de honrosa e mui cobiçada entre os jovens religiosos deste reino. Uma função com muitas obrigações, como se pode imaginar! Digo sempre, que trabalho há o suficiente para ocupar-nos mente, pernas e braços. E isto é todo santo dia! A hora que for, desde antes dos galos até a hora dos anjos!

    Nem bem clareou, e já lá estamos a limpar a sacristia, a varrer o altar-mor, os cantos e as capelas da igreja. De porta a porta, de soleira a soleira! Há que se deixar o chão a brilhar e tudo muito bem arrumado para as celebrações diárias. Na sequência da labuta, cuidamos do preparo e a guarda dos santos óleos e das santas hóstias. Nas missas, pois que chovam raios, temos que estar sempre a postos a auxiliar do canto introdutório à benção final. Nas horas das tardes, é da nossa alçada cuidar dos enfermos moribundos para que não passem da hora de suas encomendas. Quando acontece de irem desta para a outra, somos nós que carregamos a cruz nos seus enterros. E aqui não há como negar, cruz para carregarmos é o que não nos falta. Cá, em Lisboa, não há procissão sem cruz e não há cruz sem um moço de capela na sua guarda. Se já não bastasse, uma outra parte da nossa nobre missão é fazermos leituras em público. Durante as refeições do dia e da noite, pomo-nos a ler textos sagrados, curtos ou longos, além de trechos bíblicos escolhidos pelos capelães. Temos ainda o dever de sair a propagar, de canto a canto, para todos os empregados e enfermos, as normas e as boas regras estabelecidas pelo Regimento Maior do Hospital Real de Todos os Santos.

    Todas estas, nos são tarefas da rotina diária, mas como somos pau para toda obra, nos convocam, volta e meia, para uma ajuda extra no ofício dos monges copistas. Estes padres capuchinhos que gastam todo o tempo do universo encerrados na biblioteca sem ver a luz do Sol, dedicam-se a transcrever, traduzir e a iluminar livros e mais livros. Tantos quantos cheguem das livrarias lusitanas ou diretamente do porto como novidades. Ao menos, para mim, esta é, com certeza, a tarefa mais penosa de todas! Para bem desempenhá-la, tem-se que ser por demais atento, hábil e talentoso no lidar com a arte do desenho e da gravura, coisa que não me encorajo muito! Porém, mais que os requisitos artísticos, que as paredes não nos ouçam, é preciso ter-se a paciência de Jó com o azedume habitual daqueles padres ranzinzas. A impaciência deles com os aprendizes é clara e evidente! Nunca vi religiosos tão aversos à burrice alheia. Neste caso, refiro-me à minha própria, pois, então!

    Fora esta penitência eventual, quando se trata de qualquer outra obrigação dos padres capelães, damos a nossa ajudazinha a qualquer tempo que somos chamados. Em razão disto, temos a máxima confiança deles e os dois padres, além do que nos encarregam, costumam também querer-nos por perto quando ministram as confissões, comunhões e unções, dentro e fora.

    Diariamente, terminada a primeira missa, tanto Frei Miguel quanto Frei Anjo saem a olhar pelos enfermos de dentro, levando-lhes o consolo e dando-lhes a conformação necessária para superar suas amarguras. Falam com as famílias, na medida do possível, e seguem assim com sua obra cristã. Não bastando, estes frades incansáveis, gastam algumas horas das suas tardes a visitar fora das paredes do hospital, de casa em casa, os pobres envergonhados e os debilitados que vivem ao Deus dará ou que não se atrevem a esmolar pelas ruas.

    Para completar, um dos padres, normalmente o segundo capelão, acumula também o cargo de tesoureiro da igreja e tem sob a sua responsabilidade a lavratura dos testamentos dos enfermos.

    Existem três exigências no Hospital Real de Todos os Santos.

    Para que um suplicante seja aceito nas enfermarias ou na casa para doidos, é preciso, primeiro, que haja a plena concordância de um médico físico ou de um cirurgião da casa. Depois, deve haver o ato de confissão do enfermo. E a terceira, a mais importante de todas as exigências, é que a pessoa deixe, logo que chegue, um testamento por escrito. O testamento é a grande oportunidade que o enfermo tem de livrar sua alma do purgatório através da fé e da razão. Ao documentar e registrar, ainda em vida, o destino pós-mortem para a herança de seus bens e riquezas pessoais ou de familiares, o suplicante doador torna-se digno de uma chave santa para a sua entrada, em paz, no reino do céu. Muito melhor para si, que fique claro, é que a dita herança seja destinada para a Santa Madre Igreja, de coração em caritate. A doação de bens em vida é sempre vista como uma atitude, por demais, magnificente e redentora e que serve de extrema ajuda espiritual para a redução e resignação do sofrimento causado pelos males do corpo. Portanto, o testamento exigido na entrada, por mais simples ou curto que o seja, é tido como um documento da suma importância. Ele deve ser lavrado respeitando-se o ritual descrito nos mínimos detalhes no Regimento Maior. O ato solene da lavratura acontece no interior de um scriptorium exclusivamente reservado para isto, sob os olhos de, pelo menos, cinco testemunhas de bem. Depois de lido e assinado, o documento é guardado numa arca de madeira escura com três fechaduras. Uma das chaves da arca fica com o escrivão, o homem da mais alta confiança do Provedor do hospital. Outra fica sob a guarda do próprio Provedor e a terceira é entregue ao capelão tesoureiro.

    Quando há falta de testemunhas para estes acontecimentos regimentais, os sacristães são chamados a presenciar as ditas escrituras. Nestes casos, dão-nos a grande honra de observar a tudo, durante todo o tempo que durar a solenidade. Devemos, entretanto, manter-nos sentados no nosso canto, bem atentos e no mais absoluto silêncio. Somos orientados a expressar, apenas, com os movimentos da cabeça, nossa plena concordância com for dito durante o ato. Quando nos convidam para estas lavraturas, geralmente, nos deixam sob juramento mortal. O que vem a significar que, perante as leis divinas, o nosso importante testemunho torna-se um segredo inviolável ad infinitum. Portanto, válido para os séculos e séculos!

    Por estas razões tão óbvias, a escolha de um moço de capela é sempre mui rigorosa e demorada.

    Os indicados para esta função são interrogados e investigados por vários e vários dias antes da apreciação final do capelão que lhes será o tutor no sítio do novo trabalho. A primeira investigação dos candidatos é feita pela sagrada Diocese de Lisboa. A avaliação dos padres de lá é conhecida pelo imenso rigor nos pormenores. Somos examinados dos pés à cabeça, das unhas aos dentes. Anotam nossa estatura, o modo de vestir e de falar. Olham-nos nos mínimos detalhes, do barulho ao andar ao comportamento à mesa. A regra geral é bem clara! Os escolhidos devem ser gajos jovens e saudáveis. Jovens de bem, sem vícios e sem males. Crescidos com boa fama, bem afeiçoados e filhos de pessoas honradas e trabalhadoras. Mas, neste aspecto, não é impossível de acontecer, numa destas curvas da vida, por obra de um destino misericordioso, que se aprovem pretos, órfãos pobres e enjeitados. O que se espera, entretanto, é que estes mal-nascidos sejam limpos e sem problemas com a justiça. De outra forma, a grande chance desta gente desafortunada pode também chegar um dia por milagre, se, por acaso, forem apadrinhados por clérigos de respeito ou por nobres que apresentem provas cabais da boa índole, feitio e boa higiene dos seus protegidos.

    Para nossa glória e graça, eu e o Augusto Homem dos Reis fomos agraciados por este dito destino misericordioso.

    Graças a Deus! Demos de frente com a tal sorte grande! Esta que só se encontra uma vez na vida ou na hora da extrema unção! Enfim, posso dizer-lhes, francamente, que fomos escolhidos para o bendito milagre!

    Oficialmente, nós os dois, somos declarados órfãos protegidos.

    Eu mesmo, não cheguei a conhecer minha mãe, tão pouco meu pai. O que sei bem, é que nasci numa vila de camponeses e cresci pelas mãos dos padres de Alcobaça. Aprendi, desde miúdo, que vivo e sobrevivo pela vontade do Divino Espírito Santo.

    Augusto, pelo o que passam adiante, é um descendente de ciganos.

    Dizem por aí, que veio de uma das famílias Calon, um dos grupos mais numerosos e antigos dos que migraram para as Espanhas. Comentam que foi deixado recém-nato na roda dos enjeitados de uma igreja. Outras estórias dão conta de que ele se desgarrou do grupo quando tinha lá os seus quatro anos e, uma vez encontrado a perambular pelas ruas, foi entregue, como eu, aos monges brancos do Mosteiro de Santa Maria para receber o batismo e a educação católica.

    Como era o dia dos Santos Reis, logo que os padres receberam aquele miúdo-homem, deram-lhe o sobrenome que carrega desde então - Homem dos Reis.

    Augusto não contesta nem renega estória nenhuma. No entanto, por sua conta e obra, o gajo costuma apregoar, aos quatro cantos, que tem a mãe viva. Há quem confirme isto no mosteiro. Corre o boato que, por mais de uma vez, uma cigana andou a bater-lhes à porta na procura de um miúdo desgarrado. Muitos padres contestam e asseguram tratar-se de balelas sem os pés nem a cabeça de quem as inventam. Augusto rebate e jura de pés juntos que sonha todas as noites com a dita mulher, mesmo sem nunca tê-la visto em canto nenhum desse mundo!

    No dito pelo não dito, dou fé a ele ainda que tudo seja fruto da sua fértil imaginação.

    Dos que creem no amor de filho, sou dos tais que preferem ter uma mãe a viver, ao menos, nos sonhos. Prefiro assim, que não a tê-la de vero diante dos olhos e aos afagos. Percebo o quanto isto faz-me bem ao coração. Penso que os que dormem e sonham com ela, sofrem menos a dor da falta desta mulher!

    Enfim, creio, firmemente, que foi mesmo pela interferência do tal destino misericordioso que depois de esgotada a rigorosa investigação, fomos considerados dois gajos limpos, sem vícios, caridosos e pacientes.

    Para Augusto, é seguro que a sua boa feição e seus olhos esverdeados serviram-lhe bastante para a decisão da escolha. Entretanto, o que mais pesou para o veredito final não foi outra coisa senão a fiança de nossa boa índole dada por alguém do mais alto prestígio no Clero e na Corte Real.

    Para a nossa benção e graça, fomos beneficiados com a confiança de um mestre e protetor comum: Dom Inácio de Avelar.

    Este mui respeitado beneditino, bibliotecário do Mosteiro de Alcobaça, foi o padre que no passado, acolheu-nos, os dois, em tempos diferentes da infância. Foi ele, que deu-nos morada, deu-nos o que comer, nos vestiu os corpos e nos educou com as melhores letras. Ele, em pessoa, depois que nos tornamos, bem dizer, homens, com os pelos dos bigodes, nos preparou e nos indicou para este primeiro e mais importante emprego das nossas vidas, que apesar de mal nascidas foram mui bem iniciadas por ele.

    Com isto, sim, penso eu, tornamo-nos dignos para a missão da sacristia.

    E a nossa vida seguiu normal durante os cinco primeiros meses de trabalho.

    Ontem, justamente ontem, antes dos galos, Augusto, no que se levantou, começou a reclamar do enfado e das dores agudas que sentia. Dizia ele que ali estava um mal qualquer que tomou-lhe, durante a noite, o corpo por inteiro. A moléstia dolorosa corria-lhe pelas juntas das pernas e dos braços subindo-lhe às costas, a crescer da nuca até a fronte da cabeça. A dor latejava e o deixava zonzo e lerdo.

    A todos, que encontrou e pôde, queixou-se dos amargos da vida. Durante toda a jornada, esteve pelos cantos, murcho, sem render o que fazia. Gastou as horas da manhã e da tarde, daquele jeito: mais para lá do que para cá!

    Na hora da sopa noturna, o gajo fraquejado e dolente não conseguiu sequer ler o trecho da história de São Cosme e São Damião que lhe era da incumbência, tamanho o distúrbio interno que lhe perturbava a concentração na leitura. Senti-me, pois, na obrigação cristã de fazê-lo. Li a história completa dos gêmeos por ele e para ele, rogando aos dois santos médicos, em oração, primeiro o seu perdão, e depois que o livrassem de toda aquela mazela mal chegada.

    Mas, ao término da leitura e da ceia, quando nos recolhíamos aos nossos aposentos, meu companheiro de capela sentiu-se de mal a pior.

    Daí para o fecho final foi um pulo!

    O coitado sucumbiu, de repente, sem sequer um santo que desse-lhe a mão! Faleceu, sem aviso prévio ou sinal n’alguma meia hora e pouco depois!

    Augusto veio a esmorecer pelo caminho de volta, bem nos corredores que nos levam para a casa de fora", um dos prédios colados ao hospital que alberga os frades capuchinhos copistas, e onde moramos de favor desde que fomos aceitos pela capelania.

    Sem quê, nem o porquê, faltaram-lhe todas as forças e o gajo tombou desfalecido. O susto fez-me correr, aos sobressaltos, a pedir o socorro do segundo enfermeiro-mor Aziz, que prontamente ajudou-me a levá-lo para a enfermaria de São Vicente, onde se internam os homens de febres. Chegando lá, fez-se de todo o possível e o impossível para impedir o que menos se pede a Deus!

    Como seria muito difícil achar um físico naquela hora da noite, o próprio enfermeiro encarregou-se dos cuidados finais tentando reavivá-lo com o que sabia e enquanto havia um sopro de vida. Experimentou-se de tudo, a justiça seja feita! Aziz fez o que lhe era do dever, bem dizer, apenas não arriscou a sangria, haja vista, que este tipo de intervenção não lhe é mais da competência pelas novas regras do cirurgião-mor da Corte Real. Depois de esgotar com tudo o que sabia, já sentindo a frieza das mãos e vendo a falta do sangue na pele do moribundo, o enfermeiro deu-lhe, pois, por morto e correu a buscar os panos brancos de algodão. Tratamos de amortalhar o corpo enquanto rezávamos alto pelas almas santas benditas e livres de penitência. Tão logo concluímos o pacote da morte, o enfermeiro pôs-se a fazer, como manda a regra de número 5 do Regimento Maior, o devido registro no livro dos mortos.

    Foi mais um, entre tantos que fizera naquele dia.

    Na coluna destinada ao registro da causa escreveu a palavra mais usada nos últimos tempos - desconhecida. Tratando-se de um mal súbito sem explicação certa e com tamanho poder letal, resolvemos, eu e Aziz, pela retirada imediata do morto das dependências da enfermaria, para evitar que o contágio fosse desencadeado e, com isto, viesse a dar-nos panos para as mangas, mais tarde.

    - Não se pode demorar! - Repetia o enfermeiro num tom receoso e com a voz trêmula.

    Na pouca luz que havia, parecia-me que suava aos cântaros. Assim como eu!

    Precisávamos levá-lo para bem longe do hospital. Em sã consciência, cumpríamos à risca outra regra, a de número 9 do Regimento Maior, que dita sobre as febres desconhecidas e fulminantes que acometem os mal nascidos e os desprovidos da sorte, que diz:

    ... aos pobres, mulheres de ganho, órfãos enjeitados ou forasteiros que, por ventura, não tenham direito ao enterro cristão por razões de dinheiro, cor ou pecado mortal, no agoiro ou maldição de uma morte desconhecida: retire-se o corpo amortalhado de branco da cama da morte, sem alardes nas enfermarias e de pronto carregue-se para fora da cerca da cidade e abandone-se acolá à sorte dos cães famintos, para que assim não reproduzam os seus malefícios entre os vivos bem-aventurados. Encomende-se, se este for o caso, por caridade cristã, duas missas pela salvação da alma do infeliz.

    Sugeri, de imediato, levar o corpo para os lados de onde os lisboetas acostumaram chamar de Largo Santo Loio.

    Tinha ouvido falar que por trás do Convento de Santo Elóy existia uma passagem para uma das portas da Cerca Moura. No outro lado da muralha encontra-se um grande pátio que dista não mais que cem passos da Igreja de São Vicente de Fora. Para ali se destinam os cadáveres dos enforcados para sempre, os tais infelizes levados à forca sem direito a enterro algum. Para lá se encaminham os corpos dos condenados ao sofrimento eterno por conta da gravidade da sua causa mortis ou pelo tamanho do seu próprio merecimento. E seria ali que o nosso amigo defunto jazeria e ficaria aguardando a última quarta-feira do mês, junto com os outros justiçados que lá estão a apodrecer. É neste dia que acontece a procissão dos irmãos obreiros da misericórdia que costumam recolher estes corpos, ou o que resta deles, e dar-lhes um destino mais digno às suas próprias custas. Cumprem desta forma, uma das 14 obras da Irmandade que é a de sepultar os mortos.

    Como Augusto não tinha mesmo onde cair, dependeria, portanto, desta caridade alheia depois de perder a vida. Mesmo tratando-se de um cadáver tão bem afeiçoado, como costumava alardear, seria muito difícil que algum homem de bem se apiedasse a enterrá-lo, simplesmente, por admirar seus lindos olhos verdes!

    Arrumamos, pois, o corpo amortalhado numa velha carroça puxada por duas mulas, guiada por um menino de recados que bem conhecia o rumo a tomar, segundo Aziz. Agradeci ao amigo enfermeiro pela imensa ajuda e parti sem delonga. Tínhamos lá um caminho tortuoso a seguir colina à cima.

    Subiríamos pelas trilhas da encosta do Castelo.

    Pela direção traçada, o sítio ficava quase em Alfama, se já, lá não fosse!

    Meu coração vinha à boca e voltava. Não sei dizer se tremia tanto mais pelo pavor ou se pelo frio que me tomava as entranhas ensopadas pelo suor. Agarrei-me firme ao saco de vestes que carregava e deixei-me ir ao lado do pequeno, calado e emburrado condutor. Cabia-me nada mais que rezar em silêncio, e rogar pela minha própria salvação.

    Até chegarmos ao largo, passamos por um labirinto, aos solavancos.

    O caminho pela encosta estende-se por um emaranhado de ruas, ruelas, travessas e becos estreitos de chão batido e pedras. Em alguns destes, tivemos que dar meia-volta posto que a carroça

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