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Homicídio em Myrtle Bay
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E-book351 páginas5 horas

Homicídio em Myrtle Bay

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Sobre este e-book

Quando a redatora Ruth Finlay e a sua amiga mais velha, Doris Cleaver visitam um mercado de colecionáveis e antiguidades, na pequena cidade de Myrtle Bay, elas encontram muito mais do que esperavam.


Depois de o antigo treinador de ténis de Ruth ser encontrado morto, elas descobrem que, o que não falta, são pessoas que guardam um ressentimento contra a vítima, e um grande emaranhado de laços familiares e mentiras começa a ser desvendado. Mas será que Ruth e Doris conseguem descobrir o assassino a tempo de evitar um segundo homicídio?


Um mistério agradável e excêntrico, misturado com intriga, Homicídio em Myrtle Bay é o primeiro livro da série ‘Mistérios de Ruth Finlay’, de Isobel Blackthorn. Localizada numa pequena cidade da Austrália, é a escolha certa para qualquer fã de policiais clássicos e mistérios aconchegantes!

IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de out. de 2023
ISBN9798890083395
Homicídio em Myrtle Bay
Autor

Isobel Blackthorn

Isobel Blackthorn holds a PhD for her ground breaking study of the texts of Theosophist Alice Bailey. She is the author of Alice a. Bailey: Life and Legacy and The Unlikely Occultist: a biographical novel of Alice A. Bailey. Isobel is also an award-winning novelist.

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    Homicídio em Myrtle Bay - Isobel Blackthorn

    1

    — O Tupperware está lá em cima — disse ela, apontando para o longo e baixo edifício da fábrica. — Lá mesmo ao fundo.

    Doris estava ansiosa por continuar. Ela tinha metido na cabeça que alguém iria chegar primeiro que ela à tampa que procurava. Uma tampa para a sua tigela de plástico cor de laranja. Ela tinha telefonado antes para ter a certeza de que o vendedor tinha uma. A querida velhinha tinha sempre que encontrar uma lógica válida, para ela, por trás de tudo o que fazia. Eu fazia-lhe a vontade. Que boa vizinha não o faria? Mas já lamentava tê-la convidado para vir comigo.

    — Só mais uma foto da pérgula. — Tentei falar em tom firme.

    Os jardins eram uma característica central da fábrica Goodfellow. Estávamos paradas na extremidade oeste, perto da entrada principal do mercado. A pérgula compreendia vigas de madeira pintadas de vermelho brilhante, sobre colunas brancas de estilo dórico. Por baixo, duas fileiras de bancos de cores vivas flanqueavam um caminho de jardim.

    Doris foi e encostou-se a uma das colunas. — Quer que eu faça uma pose? — Ela pôs uma expressão atrevida.

    Não, não quero que faça uma pose. Mas não valia a pena dizer nada. Mesmo assim, ela colocou-se de lado.

    Click, click, clik.

    Era um dia ensolarado e eu queria aproveitar o céu limpo. Atrás de nós, a leste, a escultura do telhado — uma enorme ovelha a olhar para Myrtle Bay — parecia mais icónica do que nunca contra todo aquele azul. Depois, havia o próprio jardim ornamental. Estávamos no fim da primavera e os canteiros de flores eram uma profusão de cores. Os relvados estavam imaculados, as exibições muito bem organizadas, e havia fontes, jardins ornamentais e esculturas para apreciar. E topiária. Eu tinha que admitir que era louca por um jardim bonito. Quando a Southern Lifestyle me convidou para escrever um artigo de seis páginas sobre a fábrica, aproveitei a oportunidade de escrever uma peça no meu próprio quintal. Sem precisar pesquisar, sem precisar viajar. Um bónus.

    A fábrica costumava fazer calças e fatos de lã, e tinha uma história e tanto, uma em que comecei a aprofundar-me, mas naquele dia, eu estava lá para me focar no presente, pois algumas décadas após a fábrica ter fechado, parte dela foi transformada num mercado de antiguidades e colecionáveis. Uma atração turística. E se queria fazer justiça ao lugar, precisava de algumas ótimas fotos.

    Tirei mais algumas e depois uma nuvem rebelde deslizou para a frente do sol, levando consigo grande parte do calor de que eu tinha estado a desfrutar. Ao ver que a paciência de Doris se estava a esgotar meti a minha câmara na mala. Ela tinha um ar suficientemente impassível. Mas estava a abrir e a fechar os punhos. Era uma coisa que fazia quando estava a sentir-se reprimida. Aproximei-me dela e dei-lhe uma ligeira cutucada.

    — Vamos lá, então.

    — Agora, provavelmente, já se foi — disse ela amargamente.

    Não pude evitar soltar uma pequena gargalhada.

    — Mas quem é que havia de a comprar?

    — Algumas daquelas pessoas, só para começar. — Ela acenou com a mão para um grupo de turistas que estava a sair da fábrica. — Para não falar de qualquer um saindo pelas traseiras.

    — Aposto que nenhum deles está interessado em Tupperwares. — Este grupo não parece ser desse tipo.

    — Como é que sabe?

    — Acredite em mim. Eu sei.

    — Não pode saber.

    Eu sabia. Quase ninguém da minha geração tinha sequer ouvido falar de Tupperwares. Dei-lhe outra ligeira cutucada.

    — Café e bolo, depois. Eu pago.

    Isso animou-a.

    — Na The Tarts?

    — Onde é que havia de ser?

    Deixei-a ir à frente. Ela era magra para a idade, pequena e ágil, com cabelos cinzentos, espessos e longos presos num rabo de cavalo, as madeixas em redor do rosto puxadas para trás com uma bandana tingida com tie-dye. Tinha-se vestido para a ocasião com umas calças largas Aladino e um casaco de moletão preto, grosso e com capuz, a completar o visual uns ténis turquesa claro. Havia sempre um toque teatral em Doris Cleaver.

    Quando entrámos pelas portas de vidro reparei na descida súbita da temperatura e comecei a cobiçar a roupa dela. Tive que parar para rearranjar o meu cachecol — nunca ia a lado nenhum sem um — apertando o tecido bem junto ao pescoço antes de abotoar todos os botões do meu casaco fino de algodão. Tinha-me esquecido de como o mercado podia ser frio mesmo num dia quente, e Doris tinha estado com tanta pressa que eu tinha esquecido de vestir um casaco de lã.

    — Você está bem? — disse ela com preocupação, parando subitamente à minha frente, e voltando-se para trás.

    — Vou ficar bem.

    Embora as minhas mãos já começassem a arrefecer.

    Seria essa peculiaridade da minha natureza que me predispunha a compreender as peculiaridades dos outros? Talvez fosse. Sabia que não era fácil ser sensível ao frio. Não na costa sul de Victoria, onde os ventos cortavam e o inverno se arrastava duas vezes mais do que alguém gostaria. A minha mãe sempre disse que eu pertencia aos trópicos.

    Continuámos por um corredor largo e alcatifado até à receção. A secretária — grande, velha e de madeira — estava posicionada à frente de uma pequena área de mezanino entre os dois pisos do edifício. Atrás da secretária, o mezanino estava revestido atrás e dos lados, com armários cheios de gavetas e prateleiras, nenhum dos móveis indo além da altura da cintura, o que permitia a quem estivesse a trabalhar vislumbrar grande parte do piso inferior. À esquerda da secretária, escadas conduziam ao andar superior. Mais à frente, uma rampa descia para o piso inferior.

    A fábrica foi construída na década de 1940, depois da Segunda Guerra Mundial e era uma espécie de miscelânea. Havia vários edifícios que alojavam áreas de corte, andares de costura e uma cantina. Uma fachada simples tinha sido pregada na frente da estrutura principal. O mercado estava alojado no edifício original, no que eram antes os escritórios, por cima, e áreas para maquinistas, por baixo. Atrás do que se tinha tornado na receção do mercado, um pátio central permitia, a quem estivesse no piso superior, ver a atividade lá em baixo. No geral, era a localização perfeita para um mercado de colecionáveis. O lugar era cavernoso, e a sensação industrial realçava a densa confusão de artigos expostos em barraca após barraca, após barraca.

    Uma peculiaridade do design fazia com que a inclinação da rampa começasse antes da secretária, o que queria dizer que, quem estivesse de pé, à frente, a esperar ser atendido, sentia-se um bocadinho inclinado.

    Joe estava de serviço, como disse que estaria. Todos os vendedores faziam turnos, mas Joe tinha um papel mais de superintendente por ser também arrendatário. Ele gostava de guitarras e brinquedos vintage e todas as coisas da década de 1950. Ao ver-nos aproximar, sorriu. Ele tinha uma cara grande e redonda que condizia com o seu físico e a sua personalidade, e eu sempre tinha gostado dele.

    — Escolheu um belo dia para isso — disse ele.

    Entregou-me um envelope grande e eu remexi no conteúdo e encontrei-o cheio de fotocópias de recortes de imprensa com fotos, cartas antigas e extratos de diário. Apoio para a minha reportagem.

    — Se precisar de mais alguma coisa, diga.

    — Tenho a certeza de que é suficiente, obrigada.

    Reorganizei o conteúdo da minha mala para arranjar espaço para o envelope. Doris estava prestes a subir as escadas quando Bob chegou pela rampa acima. Passou por trás de nós e foi colocar-se ao lado de Joe, atrás da secretária. Um homem careca, na casa dos sessenta, Bob era um amigo próximo de Joe, o tipo de homem que estava sempre pronto a dar uma mão quando era necessário.

    Pôs as duas mãos em cima da secretária, os dedos afastados, inclinou-se para a frente e disse:

    — Olá, Doris.

    — Bob.

    Ela dirigiu-lhe um olhar superficial antes de se virar para mim.

    — Vamos?

    Eu fiquei calada. Senti-me instantaneamente envergonhada. Ela podia ser muito taciturna, quando queria. Bob era membro da comissão da pista de caminhada da qual Doris era a fundadora e presidente. Eles nem sempre estavam de acordo. E Doris não era pessoa de esconder a sua irritação. E mais, ela estava mais ansiosa do que nunca para ir buscar a sua tampa. No que me dizia respeito, nada disso desculpava os seus modos bruscos.

    Doris dirigiu o olhar para a secretária e esperou. Bob recuou com aparente antecipação. Joe fez rolar uma esferográfica de um lado para o outro, em cima da mesa. Ninguém parecia saber o que dizer a seguir e instalou-se um silêncio constrangedor. Eu quebrei-o sugerindo a Doris que fôssemos dar uma vista de olhos lá em baixo.

    Ela não se mexeu.

    — É melhor — disse eu. — Não há ninguém aqui.

    — Há alguns — disse Joe.

    — Eu vou só lá buscá-la — disse Doris.

    Toquei-lhe no ombro porque ela estava prestes a ir-se embora para o Tupperware.

    — Er, não. É melhor ficarmos juntas.

    — Eu podia encontrar-me consigo no carro. Melhor ainda, lá perto da outra entrada, visto que o carro está estacionado lá ao lado.

    — Doris.

    — Vocês, hoje, não vão poder sair por esse lado — disse Joe. — A saída das traseiras está fechada. Nós estamos com falta de pessoal e temos tido problemas com essa porta. De facto, Brad deve estar lá em baixo a arranjar a fechadura, neste momento.

    — Vocês podem encontrar-se aqui — disse Bob, deliciando-se com a crescente agitação de Doris. Ele olhou para mim e piscou o olho. — Nós tomamos conta dela.

    — Não sou uma criança — disse Doris com azedume.

    Joe parecia um pouco confuso e Bob à beira do riso.

    — Se se for embora, Doris, há grandes chances de eu não a encontrar — disse eu.

    Joe sorriu. — Sempre podemos enviar um grupo de busca.

    Perante isto, Bob não conseguiu conter o riso.

    — Não, não. A Ruth tem razão — objetou Doris. — Ela, às vezes, tem dificuldade em encontrar-me. Deve haver alguma coisa errada com a visão dela. Estou sempre a dizer-lhe para ir ver isso.

    Doris tinha transferido a culpa, mas eu não reagi. Mais do que tudo, senti-me aliviada, ao lembrar-me daquele dia em Dumfries, quando passei duas horas inteiras à procura dela.

    Aquele dia tinha sido quente, e ela tinha entrado num mercado parecido, na esperança de encontrar algum alívio. Atirou-se para cima de uma cadeira antiga numa das barracas para descansar. Só que, a cadeira em que estava sentada tinha um espaldar alto e estava escondida atrás de um grande expositor e eu não podia vê-la do corredor. Depois de uma busca frenética, quase telefonei para a polícia. Acabámos por perder o autocarro de regresso a Myrtle Bay e tivemos que ficar numa pensão.

    — Vamos embora — disse eu. Pensei que o meu corpo se ia transformar num bloco de gelo se ficássemos mais ali.

    Estava prestes a conduzir Doris pela rampa abaixo quando Brendan Taylor chegou, num passo apressado. Passou rapidamente por nós a caminho da saída, todo musculado em calções de trabalho e uma camisola de alta visibilidade. Olhei para trás e vi-o sair do edifício. Brendan, um local e um dos canalizadores premiados da região, e nem sequer uma inclinação de cabeça para reconhecer a minha presença.

    Brendan tinha estado três anos à minha frente, na escola, só que ele tinha frequentado Myrtle Bay High e eu tinha ido para o Siena College. Público e privado, a grande divisão, mas os nossos caminhos cruzavam-se todos os dias, de e para as nossas respetivas escolas e a mãe dele tinha trabalhado, durante algum tempo, como rececionista do meu pai. O meu pai era dentista. E foi por isso que me senti um bocadinho ofendida por Brendan não me ter cumprimentado quando passou. Ele deve ter-me visto. Apesar de parecer mesmo preocupado.

    Era tempo de uma grande distração, do desprezo, do atrito e, sobretudo, do frio.

    — Prometo-lhe que essa tampa ainda lá vai estar — segredei a Doris enquanto nos dirigíamos para as barracas no andar de baixo. — Entretanto, vamos divertir-nos um pouco.

    Há anos que eu não vinha a este mercado. Olhando em volta, vi que o espaço, graças ao design aberto da fábrica, as paredes brancas e uma boa iluminação, proporcionava o cenário perfeito para fotos. Vasculhei dentro da minha mala, tirei a minha câmara e passeámos de barraca em barraca, primeiro por um corredor, depois por outro, maravilhando-nos com o que era um festival colorido de mercadorias.

    Doris depressa entrou no espírito da coisa. Ela deliciava-se a bisbilhotar as exposições de quinquilharias vintage, apontando para uma bugiganga ou um objeto decorativo com — eu tinha um desses — tirando livros velhos e raros das prateleiras, ao acaso, e exclamando — eu nem acredito — e examinando a capa de um livro de capa dura de Enid Blyton, que ela tinha lido quando era criança. Ela experimentou a joalharia, nova e antiga e pegou em vidro, cerâmica e porcelana fina. Divertimo-nos ambas no meio da moda retro. Passámos lentamente pelos discos LP, brinquedos vintage, relógios e caixas de música, observando isto e aquilo. Nenhuma de nós estava muito interessada nos quadros, cerâmica e artigos para presentes e passámos rapidamente pela militaria. Anda assim, havia coisas para todos os gostos. O mercado era um tesouro e um lugar para nos perdermos completamente.

    Estávamos a dirigir-nos para a parte de trás da fábrica quando Doris deu uns passos atrás e esbarrou com Kathy Williams que soltou um grito agudo. Kathy tentava passar por nós e Doris conseguiu pisar o pé dela. Kathy não parecia nada satisfeita. Ela era uma mulher enérgica que usava o cabelo louro, comprido, dividido ao meio e nunca usava maquilhagem nenhuma. A cara dela tinha aquela aparência áspera, apesar de vigorosa, de alguém que tinha passado a vida inteira ao ar livre. A família dela tinha a quinta ao lado da casa dos meus avós, em Bowerdale.

    — Olá, Kathy — disse eu. — Que bom ver-te.

    — A ti também. — Nem um sorriso.

    — Eu não tive intenção… — disse Doris.

    — Está tudo bem. Eu devia ter escolhido a outra entrada.

    — Esta está a abarrotar — disse Doris, olhando em volta.

    — Claro que está. Mas os produtos não se vendem se não estiverem expostos, por isso…

    — Nunca pensei que gostasse de vidro colorido — disse Doris, a olhar para a tigela na mão de Kathy.

    — É para uma amiga. Ela gosta muito de cor-de-rosa.

    — Parece-me bem.

    Deixámo-la entretida e continuámos pelo corredor.

    Kathy era a segunda pessoa conhecida que me tinha olhado friamente, naquele dia. Porque a frieza? O pé dela não podia ter doído assim tanto e, além disso, não fui eu que a pisei. No fundo, eu desconfiava que me tinha tornado na papoula alta da cidade. Tinha a mania que era mais que os outros. Uma jornalista. Definitivamente, não era de confiança. Mas eu achava que aquela atitude não era nada justa, e doía um bocadinho.

    Estávamos a aproximar-nos da entrada das traseiras. Eu sentia-me gelada até aos ossos e o entusiasmo de Doris começava a esmorecer.

    — Temos mesmo que ver as barracas todas? — gemeu.

    — Vamos lá, então, Sr.ª D, vamos lá levá-la ao Tupperware.

    Voltámos para a rampa, passámos pela receção e subimos as escadas. Eu corri na frente para fazer circular o sangue, com um pouco de sorte, até às pontas dos dedos.

    — Para que lado? — disse eu, assim que chegámos, as duas, ao pátio central.

    — É mesmo lá ao fundo.

    Ela indicou o caminho.

    Aqui em cima era muito mais claro e luminoso, e a configuração, marcadamente diferente. No pátio central, armários de vidro estavam alinhados lado a lado ao longo de algumas paredes. Mais além, um corredor largo, cheio de mercadorias, levava a diversos espaços de escritório dedicados a grandes exposições. Era uma configuração confusa, uma sensação aleatória, no início, e divertida. No entanto, as mercadorias não eram tão convidativas, fotograficamente, como as do piso térreo, e meti a minha câmara dentro da mala.

    Por fim, depois de muito esquivar e ziguezaguear, chegámos a uma pequena barraca cheia de plástico colorido. Havia recipientes de todas as formas e tamanhos, muitos com tampas, organizados por cor, em prateleiras, ao longo da barraca e num expositor central.

    Doris parecia saber exatamente onde encontrar a tampa que procurava. Acenou-me com ela e sorriu.

    — Que sorte.

    Eu não respondi. A sorte não tinha nada a ver com isso. Ninguém ia chegar ao mercado com a missão de comprar precisamente aquela tampa. Algumas coisas eram tão improváveis que eram impossíveis.

    — Já acabámos?

    Eu achava que sim. Havia apenas a área do outro lado do Tupperware e depois podíamos regressar pela outra metade do piso superior para completar a volta.

    Começámos a passear pelo mobiliário antigo. Eu estava a admirar uma cómoda grande e a pensar onde é que a iria pôr, quando Doris murmurou:

    — Ruth.

    Foi o tom baixo da voz dela. Foi a forma como ela disse o meu nome. Foi a forma como ela parecia congelada no lugar que me fez virar imediatamente.

    Ela estava de pé entre um armário e uma mesa de jantar. Fui até lá e encontrei-a a olhar para os pés. Aproximei-me mais, vi que olhava fixamente para um corpo deitado, de rosto para baixo, em cima de um tapete persa. O sangue escorria da parte de trás da cabeça. Era um homem. Reparei nas calças de ganga, na camisa azul. A cara dele estava virada para o outro lado. Dei a volta e ajoelhei-me ao lado dele para ver se ainda estava a respirar. Estava. Mas a cara estava contorcida de dor.

    — Vai ficar bem — disse eu. — Nós vamos buscar ajuda.

    Ele esforçou-se por falar. Inclinei-me para mais perto dele.

    — Não fui eu — sussurrou.

    O que é que não foi ele? Perguntei-me.

    Sentei-me nos calcanhares e lancei um olhar desesperado a Doris.

    — Vá buscar Joe.

    Ela afastou-se a correr.

    Sentei-me por um momento sem poder acreditar. Quando baixei de novo o olhar para a cara do homem, ele mal estava consciente. Depois expirou. Foi o seu último suspiro.

    A jornalista em mim entrou em ação. Enquanto Doris não vinha, olhei em volta, para me certificar de que estava sozinha. Estava. Aproveitando o momento, mergulhei a mão na minha mala, tirei a câmara e tirei algumas fotos discretas do cadáver. Sentia-me macabra, mas também, de alguma forma, vital.

    Quando guardei a câmara, o meu coração começou a bater acelerado. Senti uma descarga de adrenalina percorrer-me. Não era a primeira vez que testemunhava uma morte. Mas a outra vez foi diferente. Foi num hospital. E a pessoa que estava a morrer era a minha mãe. Neste momento, eu não sabia se devia ficar a guardar o corpo ou deixá-lo e procurar Doris. Após alguns momentos de indecisão, fui-me embora.

    Cheguei à receção quando Joe estava a acabar de ligar para a polícia. Bob pairava ali por perto e Doris estava de pé em frente do balcão. Pensando rapidamente, tirei o meu telemóvel. Era melhor gravar as vozes do que confiar em notas. Menos óbvio, também. Eu não estava inteiramente segura do que estava a fazer porque nada disto iria aparecer no meu artigo, mas o instinto tinha tomado conta e eu estava, no mínimo, curiosa. Especialmente porque sabia a quem pertencia aquele corpo: David Fisk.

    Guardei o telemóvel no bolso do meu casaco com o microfone virado para a secretária.

    — Que coisa terrível de ter acontecido — disse eu, de pé ao lado de Doris. — Quem faria uma coisa destas?

    — Nem consigo pensar nisso — disse Joe.

    — Não consigo deixar de pensar que, seja quem for que fez isto, esteve aqui agora mesmo, e a não ser que se tenham escondido algures dentro do edifício, passaram por esta secretária quando saíram.

    — Podia ter sido qualquer pessoa — disse Bob, desdenhosamente.

    — Qualquer pessoa, não — corrigi, naquele momento achei-o tão irritante quanto Doris.

    — Podia ter sido Kathy Williams. Podia ter sido Brad Taylor. Eles estiveram aqui — disse ela.

    — Não seja ridícula.

    — Quem mais esteve aqui, então? — disse eu, dirigindo a minha pergunta a Joe.

    — Tem a certeza de que se quer envolver nisto, Ruth? — ele parecia cético.

    — Bem que ela podia — disse Doris, reanimando-se.

    — Os polícias não vão gostar — disse Bob.

    — Eles não precisam saber.

    — Nós não diremos uma palavra — disse Joe.

    Dei um sorriso agradecido. — Chamem-lhe de um bocadinho de jornalismo de investigação.

    — Você pode chamar-lhe o que quiser — disse Bob, todo arrogante. — Mas ninguém tem nada a ver com isto a não ser a polícia, se quer a minha opinião.

    — Não queremos — disse Doris, rispidamente. — De qualquer forma, o que há de mal em investigar um pouco?

    Ninguém tinha uma resposta e o mezanino ficou em silêncio.

    — Nós só precisamos saber quem é que aqui estava desde, mais ou menos, a hora a que nós entrámos — disse eu, a minha impaciência a crescer. O choque de ver David Fisk enquanto ele morria do ferimento, com o ar frio da fábrica, tinham-me gelado até o âmago e começava a recear que iria começar a tremer.

    — Não foram muitos — disse Joe, sem dúvida aliviado por a conversa avançar um pouco.

    Ele olhou para Bob que encolheu os ombros.

    — Tu é que estavas à secretária. Eu estava a organizar papelada.

    Um ar pensativo apareceu na cara de Joe. — Havia aquele casal de Melbourne, Angie e Hu.

    — Turistas?

    — Disseram-me que estavam numa pousada em Moss Street. Queriam que o Bob entregasse-lhes uma mesa.

    — Não custa nada — disse Bob, baixinho.

    — É a pousada do Frank? — disse Doris.

    — Não há outra casa de férias em Moss Street, que eu saiba.

    Ainda estavam de armas apontadas. Seria de pensar que esse tipo de coisa teria ficado no parque infantil, mas aqueles dois tinham andado às turras desde o pré-escolar e agora era tarde para mudarem. Tomei nota mentalmente para apagar a gravação de voz assim que recolhesse as informações.

    — Quem mais estava aqui? — disse eu.

    Joe pensou por um momento. — Só as raparigas da padaria. Monica e Barb.

    — Da Betty’s Bakehouse — disse Doris. E não era uma pergunta.

    — Conhece-as?

    — Elas costumavam fazer uma boa tarte de creme de pasteleiro.

    — O negócio mudou de mãos alguns anos atrás — disse Bob. — Foi alguém de Melbourne que o comprou.

    — Monica e Barb deixaram o mercado pouco depois de vocês entrarem — disse Joe. — E é tudo, assim de memória.

    Doris não estava satisfeita.

    — Nós vimos um bando a sair quando estávamos a entrar. Então e eles?

    — Eles não foram além da secretária. Aparentemente, não era o que estavam à espera.

    — O que é que vocês vão fazer agora? — disse Bob. — Quero dizer, a polícia irá investigar toda a gente, incluindo vocês duas. Não consigo perceber de que irá adiantar se vocês forem interrogar as pessoas.

    — Tens alguma coisa a esconder, Bobby? — disse Doris.

    Ele irritou-se. Até eu sabia que Bob não gostava que lhe chamassem Bobby.

    — Dificilmente — disse Joe em defesa dele. — Bob esteve sempre aqui comigo, na receção.

    Não havia mais nada a dizer. Como testemunhas principais, nós tínhamos que ficar por ali até que a polícia chegasse ao local do crime. Eu atingi o meu limite no que dizia respeito ao frio e sugeri que esperássemos lá fora, nos jardins. Doris foi a primeira sair.

    O sol ainda estava a brilhar e eu consegui descongelar num banco do parque, de frente para uma área de jardim afundado, ali perto. Havia poucas pessoas por ali.

    — Quem diabo quereria matar David Fisk? — disse eu baixinho, observando uma abelha a abrir caminho para dentro de uma flor.

    — Então também o reconheceu. Ele devia ter muitos inimigos, imagino eu.

    — Acha?

    Antes que ela pudesse responder, dois agentes uniformizados aproximavam-se pelos jardins. Seguimo-los para dentro da fábrica e ficámos ali por perto da secretária. Joe ia já encaminhá-los para junto do corpo quando Doris interrompeu com: — Por favor, se não se importa. Podemos deixar os nossos nomes e moradas e amanhã de manhã ligamos para a esquadra para dar os nossos depoimentos? É só que não me parece que as minhas pernas se aguentem durante muito mais tempo.

    — Ela encontrou o corpo — disse eu.

    Os policiais trocaram olhares. Um deles tirou o bloco de notas e anotou os nossos dados.

    — Obrigada por aquilo — disse eu a Doris quando nos fomos embora.

    — Não tem importância. É melhor se vier de uma velhota como eu. O mais provável é que eles a tivessem mantido ali à espera, até que se transformasse num bloco de gelo.

    Eu ri-me, mas não havia nesse riso muita alegria.

    Voltámos para o meu carro e fomos direitas a casa. Tínhamos ambas, esquecido o meu convite para tomar café e bolo na The Tarts. Durante toda a viagem não me saiu da cabeça o facto doentio de que, se eu tivesse cedido ao desejo de Doris, de visitar primeiro a barraca do Tupperware, era muito provável que David Fisk ainda estivesse vivo.

    2

    Doris tinha um olhar duvidoso.

    — É uma lista de suspeitos muito grande — disse ela.

    Um vento rabugento sacudiu a janela em concordância.

    Estávamos sentadas na minha sala de estar, na manhã a seguir ao homicídio, a olhar para o quadro branco que eu tinha colocado sobre a lareira. No quadro branco estavam os nomes que tinha extraído da gravação — Brad o biscateiro, Angie e Hu de Melbourne, e Barb e Monica da Betty’s Bakehouse — com os nomes daqueles que nós tínhamos visto: Joe

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