Fábulas De Ansiedade
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Fábulas De Ansiedade - Romário Rodrigues Lourenço
Fábulas de Ansiedade
histórias do meu bloqueio criativo
Romário Rodrigues Lourenço
Edição do Autor
Direitos autorais © 2019 Romário Rodrigues Lourenço
Todos os direitos reservados
Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou falecidas, é coincidência e não é intencional por parte do autor.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou armazenada em um sistema de recuperação, ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou outro, sem a permissão expressa por escrito da editora.
A cópia e/ou reprodução total ou parcial desta obra é infração prevista na Lei de Direitos Autorais Nº 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Plágio é crime. Respeite os direitos do autor.
Design da capa por: Romário Rodrigues Lourenço.
Impresso no Brasil.
Primeira Parte
melancolia
Era primavera de algum ano da segunda metade do século dezenove quando Isabel nasceu, de forma quase espontânea. Quando cresceu, e aprendeu a caminhar, viu-se uma garota franzina, subnutrida e que tinha os cabelos alourados sempre sujos e oleosos. Se um dia lhe perguntassem onde vivia, a menina Isabel acharia uma forma poética de responder que não tinha referências familiares:
"É difícil fincar raízes quando se é uma folha ressequida de carinho. Ao vento, estou livre para viver as mais afáveis brisas da manhã e enfrentar as mais tortuosas tempestades vespertinas. A qualquer que seja o vínculo afetivo, eu mesma me abstenho. O charme da solidão é menosprezar as necessidades humanas que nos tornam tão dependentes. Não tenho casa. Tenho o mundo e o mundo não me merece."
Entre verdades e meias-verdades, a garota crescia, diferenciando com exímio primor, sua realidade dura de seus desejos mais profundos. Cresceu abstendo-se de grandes desejos materiais e, por medo da morte, desejava apenas amanhecer viva no dia seguinte. Isso para ela era uma grande vitória e, por alcançar seus objetivos um dia após o outro, sentia-se vitoriosa.
"Venha... está frio aí fora!", às vezes uma beata um pouco mais disposta a ser caridosa o bastante para financiar seu lugar no céu, lá pelos anos que se sucedessem à sua morte, acolhia a menina e lhe dava um prato de sopa rala antes de fazê-la dormir em um canto do tapete forrado de lençóis que o faziam menos duro e mais agradável que o sereno da noite no lado de fora da porta.
Quase sempre, Isabel vivia suas noites entre sonhos lúcidos de ar nostálgico, onde sua mania de se fazer de independente caia por terra, quando no âmago de seu ser, comemorava com fervor estar acolhida em um almoço de família, brincando com primos imaginários e, entre peripécias e estrepolias, reclamava por receber castigos e repreensões de seus pais. De manhã, quando acordava, permanecia quieta, até que a dona de casa bondosa lhe convidasse para um rápido dejejum e anunciasse os limites de sua caridade deixando-a pronta para perambular pelas ruas mais uma vez.
O primeiro grande aprendizado da garota mau cuidada era estar sozinha, mesmo que, no auge de sua juventude e inocência, não tivesse discernimento para entender a diferença entre estar, ser ou sentir-se sozinha. Ao longo de sua infância medíocre estar sozinha não a incomodava tanto quanto parecia.
Assim, Isabel viveu os primeiros anos de sua infância e adolescência, fingindo indiferença, mas, internamente se perguntando se em algum lugar, suas feições poderiam soar familiares e seus hábitos poderiam aparentar um reflexo de honra parental.
— Hum... Você é muito bonita, espere algum tempo até que tenha se tornado uma mocinha, será muito bem vinda ao meu lado! — dizia-lhe a velha Dona Catarina, uma senhora alta, elegante e que estava sempre fumando parada nas esquinas do bairro, enquanto observava o caminhar desajeitado de um ou outro homem casado com alguma dona-de-casa que, por ela passava como se não a conhece.
Dona Catarina morava no casarão mais bem frequentado da vizinhança. Tinha hábitos incomuns, se comparados aos das senhoras que acolhiam Isabel nas noites frias e era naturalmente uma inimiga em comum de todas elas. Seus vestidos longos, coloridos e decotados a faziam parecer um pavão deslocado se posto ao lado das moças que usavam chapéus comportados, vestidos floridos e xales de tons pastéis sobre os ombros.
"Velharia hipócrita! Um dia você vai ver que elas não são essas santas que pintam para você!, dizia Dona Catarina, entre um trago e outro em seu longo cigarro enquanto a menina Isabel a ouvia atenta e desconfiada.
Venha, vou lhe pagar um café com leite, você deve estar morrendo de fome..." e assim caminhavam juntas rumo à padaria mais próxima, para a alegria da menina.
"Essa mulher é muito mau vista, garota... Afaste-se dela.", certa vez o padeiro lhe disse às escondidas.
"Você não deveria ser vista com alguém como ela, ou como as... ‘Amigas’ dela. Ainda há futuro para você!", algumas pessoas lhe falavam sempre que Dona Catarina a deixava sozinha e entrava em seu casarão pouco antes do pôr-do-sol. Isabel não entendia por que falavam tão mal de Dona Catarina e, também não entendia qual futuro poderia ter, se nem ao menos rumo tinha. À essa altura, no florescer de sua adolescência, Isabel tinha clara convicção de sua realidade: estava sozinha e assim permaneceria.
E por não ter qualquer rumo, quando já passava dos quinze anos e ainda via em seu reflexo a sujeira sobre os cabelos desgrenhados e olhar faminto quando aceitou o convite de Dona Catarina:
"Venha trabalhar conosco! Você é linda, garota! Um vestido bonito... Uma maquiagem harmoniosa e não faltarão pretendentes que paguem rios de dinheiro para ter uma noite com você!", ela exclamava.
— Eu não sei... — dizia-lhe a garota, visivelmente indecisa; à essa altura, sabia bem quem era Dona Catarina e o significado do ranço que os vizinhos nutriam por ela e o porquê era tão mal vista. — Eu não tenho nada, é verdade... Eu tenho somente a mim mesma e não queria terminar dependente do meu corpo para sobreviver.
— Não é diferente do que você já faz. — disse-lhe a mulher. — Mendigando esmolas... Estragando mãos tão macias em faxinas pesadas por trocados...! A diferença é que comigo e com minhas garotas você terá um teto, comida e se for inteligente agarrará um homem que a leve embora e a trate como rainha. Prometo te ajudar. Gosto de você, garota.
Dona Catarina não estava mentindo, Isabel logo descobriu. À sua maneira, e da forma que sabia, ela estava tentando ajudar Isabel a mudar sua realidade e por isso, Isabel também gostava daquela mulher excêntrica.
— Veja, este vestido branco é divino! — ela exclamou, quando Isabel entrou pela primeira vez no quarto em que viveria enquanto estivesse sob sua tutela. — Claro... Não é novo... Mas pedirei a costureira que faça alguns ajustes... Você é tão magrinha... Ele ficará perfeito em você! Usará em sua primeira noite! Uma virgem de vestido branco! Um anjo imaculado em lençóis vermelhos! Hahaha! Como eu nunca pensei nisso antes?! — ela falava de forma ácida e debochada enquanto a garota olhava em volta, prestando atenção nos detalhes peculiares do quarto convidativo à luxúria, passando as mãos nos finos lençóis vermelhos deixados sobre a cama.
Isabel sabia que, dali em diante sua vida seria diferente da vida que a maioria das garotas de sua idade viviam, mas aceitou seu destino como uma folha ao vento aceita sua direção.
— Você não será uma vendedora de quinquilharias... Você venderá realizações... E com isso, minha querida... Você pode conseguir qualquer coisa! Um sonho realizado é a moeda mais valiosa que se pode ter. — dizia Dona Catarina, acalmando o nervosismo e ansiedade da garota que debutaria para o mundo, não como uma dama, não como uma princesa, mas como um desejo proibido.
Em toda sua vida, Isabel não teve tempo para exacerbar os excedentes de uma adolescente rebelde, apaixonada por um rapaz de má índole. Ao invés disso, fingia amor à todos que adentravam pela porta do quarto que ocupava e os tratava como se estivessem em sua própria casa – mesmo que ela própria não se sentisse em casa (à esta altura, Isabel já sabia como era sentir-se sozinha, mesmo que não estivesse tão sozinha assim).
Com Dona Catarina aprendera a encenar o furor das emoções, mas com a própria vida aprendera a reagir de