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Manaquiri - Terra de Caranã: a comovente história do amor de um caboclo por sua terra
Manaquiri - Terra de Caranã: a comovente história do amor de um caboclo por sua terra
Manaquiri - Terra de Caranã: a comovente história do amor de um caboclo por sua terra
E-book558 páginas8 horas

Manaquiri - Terra de Caranã: a comovente história do amor de um caboclo por sua terra

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Sobre este e-book

Manaquiri – Terra de Caranã apresenta a história de Caranã, um enfermeiro-parteiro que dedicou 40 anos de sua vida a cuidar das comunidades ribeirinhas na Bacia do Manaquiri e do Castanho. A obra contém simbolismo e imagens que refletem a riqueza da cultura ribeirinha do Estado do Amazonas. Desenrola-se ao longo de décadas, mostrando as lutas, as conquistas e os fracassos desse herói anônimo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de mar. de 2024
ISBN9786553557116
Manaquiri - Terra de Caranã: a comovente história do amor de um caboclo por sua terra

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    Pré-visualização do livro

    Manaquiri - Terra de Caranã - Aluizio Felipe da Silva

    capaRostoCréditos

    Dedico esse romance a meus filhos

    Alexander, Alisson, Luciana, e a meus

    netos Alan, Camyle, Isabela e Felipe.

    AGRADECIMENTOS:

    – A Yaweh, o Deus da minha fé;

    – A minha esposa Luciênia Ribeiro de Souza Silva

    – A meus filhos Alexander, Alisson e Luciana

    – A meus sobrinhos e colaboradores: Kelly, Cristiane e Wilsom

    – As minhas primas Francisca, Marialva, Luiza, Fátima e Conceição

    – As sobrinhas e colaboradoras Geovana e Yamile Lemos

    – Aos parceiros: Geovani, Gian, Jairo, Junite, Marcos, Miguel, Natal e Patrícia

    – Aos nossos fotógrafos: Marcos e Ana Sofia Lima.

    – A equipe editorial da DIALÉTICA, pela excelência desta obra literária

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    ESCLARECIMENTO AOS LEITORES

    Este romance foi inspirado na saga das famílias Mesquita e Marreiro, que aceitaram desbravar o Manaquiri, a terra Preta e o igarapé do Fuxico, na década de 1900.

    Tudo começou com o casal de cearenses Raimunda e Felipe Marreiro, e seu amigo João Mesquita, filho de portugueses que sequestrou e casou-se com uma índia Apuriná.

    O icônico caboclo Caranã, nasceu para mostrar ao mundo como foi o Amazonas e suas excentricidades nas décadas de 20 a 60. A população do Manaquiri, do Fuxico e adjacências, sobrevivia em completo abandono, e as condições degradantes da saúde, tornava os ribeirinhos verdadeiros párias da sociedade amazonense e brasileira

    Em seu nobre ofício, Caranã orientou seu povo a melhorar suas condições sanitárias. Salvou a vida de muitas caboclinhas e de seus bebês e, por suas ações, ajudou a combater os surtos de diversas moléstias e a mortalidade infantil.

    Infelizmente, como tantos outros, Caranã foi apenas mais um entre os tantos heróis anônimos, ignorados e por isso esquecidos, pelos sertões, pelas caatingas e pelas ribanceiras dos rios, Brasil à fora.

    Raimunda e Felipe Marreio, João Mesquita e sua índia Apuriná, Jurandi, Cristina, não existem mais; apenas Antônio, Olga, Bebiano e Raimunda. Dos Marreiros; apenas Mercedes, Francisca, Vicência, Carmosa e Nilo estão vivos. Sebastiana, Zila e Adelson ainda vivem na cabeceira do paraná do Fuxico. Mas o legado dessas famílias pioneiras, cala fundo no coração de seus descendentes, espalhados pelo Estado do Amazonas, os quais me inspiraram a dizer do Manaquiri, do paraná do Fuxico, de Caranã, de Sebastiana e de sua história de amor.

    Neste ano de 2003, constato que no Manaquiri já existe escolas e serviço médico. Já pouco se ouve de caboclinhas morrendo durante o parto, e a mortalidade infantil vem diminuindo. Os botos e as cobras que engravidavam cunhatãs, hoje somente existem no imaginário dos caboclos incautos.

    As bisnetas de Caranã e Sebastiana, Yamile e Geovana, são as guardiãs de seu relicário.

    APRESENTAÇÃO

    Amazonas é um dos estados brasileiros mais encrustado na selva amazônica, pois se encontra entre a floresta e a imensidão de inúmeros, lagos e igapós.

    Júlio Verne (1828-1905), em seus escritos, certa vez identificou a Amazônia como um imenso inferno verde. Mas, sabemos, a Amazônia é, antes de tudo, imenso paraíso esmeralda em meio a flora e fauna, exuberantes.

    Pela grandiosidade da floresta e os infinitos mananciais, o clima é úmido, o calor escaldante o que causa a sensação é de se estar num ambiente sempre abafado.

    Mas, a Amazônia como um todo, é muito, muito mais que um inferno verde pois é responsável pela purificação do ar, no planeta. É o habitat de milhares de espécies e misteriosas formas de vida.

    O imenso Rio Solimões/Amazonas, depois de nascido nas montanhas do Peru com o nome de Apurímaque, depois Ucaiale, com seus milhares de afluentes, igarapés e paranás, sustenta também milhares de formas de vida em todas as suas formas e peculiaridades.

    O período de cheia dos rios, ano após ano, torna-se às vezes, devastador. Os afluentes transbordam e os igarapés inundam os igapós. No entanto, quando as águas baixam, as terras surgem fertilizadas com todo potencial para manter a vida nativa, em todas as suas espécies.

    As árvores de sumaúma, de umbaúba, de castanheiras, araçá, mangueiras, ingás, cupuaçu, cacau, bacaba, açaí, laranja, tangerina, e tantas outras espécies, logo se apresentam exuberantes e viçosas.

    Para o ribeirinho, do Amazonas, quando as águas baixam, é o momento perfeito para plantar a mandioca, a macaxeira, o cará, a batata doce, os feijões, a melancia, o melão e a juta. Laranjeiras, tangerineiras, cacaueiras, cupuaçuzeiras, açaizeiras, bacabeiras, buritizeiras e as ingazeiras, florescem naturalmente.

    Todo esse cultivo natural acaba por incorporar-se à mata nativa, tornando o lugar de uma aquarela natural, perfeita, proporcionando à vista tonalidades de cores inimagináveis em qualquer outra região do planeta.

    O alvorecer sempre festivo se motiva por um sol dourado, todos os dias a despontar por entre copas de imensas árvores, despertando aves e todos os habitantes da mata.

    As ciganas, sempre as primeiras, junto com gaivotas, bem-te-vis, uirapurus e mais uma imensidão de aves, dão o ar de sua graça, logo cedo. De repente, todas as demais espécies dão o ar de sua graça, como num imenso festival de cores, pios e bailados.

    Os peixes, de inúmeras espécies aiuam na superfície dos rios, lagoas e igarapés. Os jacarés, as sucuris, as jiboias, tracajás e outras tantas espécies de tartarugas, povoam ar margens dos rios, dos lagos, dos igarapés e dos igapós.

    Os murirús, os aguapés, as canaranas e as vitória-régia, parece vão se transformando pouco-a-pouco num manto esverdeado por sobre as águas. A brisa suave ou aquecida dos igapós, trazem junto os cheiros e os aromas característicos do lugar.

    A cidade de Manaus, capital do estado do Amazonas, oriunda das tribos Manaós e Barés, localizada à margem esquerda do Rio Negro, teve seu início com o Forte de São José da Barra do Rio Negro, idealizado pelo capitão de artilharia Francisco da Motas Falcão, no ano de 1669.

    Na década de 1910, Manaus possuía população estimada em 100 mil habitantes; mas, em todo o Estado, impossível de contabilizar, pois espalhada pelas margens dos rios Negro, Solimões, Baixo-Amazonas e centenas de igarapés; por sua vez, povoados por dezenas de tribos de diversas etnias.

    O rio Solimões, alto-Amazonas e o baixo-Amazonas, ‘o rio mar’, com suas águas barrentas e caudalosas, anualmente no período de cheia, avança por sobre as ribanceiras, inundando igapós impenetráveis e os vilarejos dos baixios.

    O rio Negro também sofre influência das cheias, mas sua primordial função, parece, é embelezar as cercanias da cidade de Manaus. O encontro das águas do Negro e do Solimões, apresentam um espetáculo incomparável.

    A biodiversidade proporcionada pela cheia dos imensos rios e dos igarapés, se impõem por entre a floresta, por meio das aves, dos grandes pássaros e passarinhos, dos imensos botos-cor-rosa e tucuxis, da fauna esplendorosa e da flora exuberante.

    O pequeno rio Manaquiri a 70 quilômetros de Manaus, afluente do Rio Solimões, quase esquecido por entre a selva, na década de 1900 era um verdadeiro manancial selvagem em sua essência, indescritível pela percepção humana.

    O hoje município do Manaquiri, conhecido no passado como Vila do Jaraqui, registrou seu primeiro povoamento a partir do ano 1877, quando de grande fluxo migratório nordestino no Amazonas.

    Pelas características da região, historiadores e pesquisadores deduzem que também a região do Manaquiri, há séculos, era habitado por inúmeras tribos indígenas, pertencentes ao ‘Grupo Étnico Muram’. As nações indígenas do Amazonas são das etnias: Apuriná, Muras, Caxinuwa, Kokama, Mundurucu, Ticuna, Miranha e Saterê Mauew.

    O nome Manaquiri, tem sua origem nas palavras indígenas que significam Manah (uma planta medicinal) e Kiri (Cabeça pequena). Por isso se diz que Manaquiri surgiu da Lenda da formiga (Formiga da cabeça pequena).

    Nos anais da história do Amazonas, consta que em 1849, o cientista britânico Alfred Russel Wallace, passou dois meses viajando pelo Manaquiri, fazendo pesquisas, como ele mesmo narra em seu livro ‘Viagens pelos rios Amazonas e rio Negro’.

    Nos anais históricos regionais, consta que em meados do século XIX, Manaquiri era apenas uma pequena fazenda do nacional português Antônio José Brandão. Ali ele criava animais de pequeno porte, cultivava fumo, cana-de-açúcar, e todo tipo de frutas tropicais, a exemplo da laranja, da banana, do abacaxi, e também tubérculos, como a batata doce, cará e mandioca.

    Consta que José Brandão, era casado com uma mestiça, neta do chefe Manau Comadre, de Mariuá.

    Naqueles idos, a comercialização dos produtos era feita somente em Manaus. Os produtos do Manaquiri eram transportados em grandes canoas, denominadas UbBAR, movidas a remo, e a viagem demorava vários dias.

    É dentro deste contexto que me proponho narrar, por meio do Diário de Caranã, a impressionante história de amor desse caboclo, por sua terra, o Manaquiri.

    PREFÁCIO

    Adentrar a densa selva amazônica é como desvendar um tesouro de infinitas maravilhas e mistérios. A Amazônia, esse vasto território encravado entre florestas exuberantes e as águas serpenteantes de inúmeros rios e igapós, é uma terra de contrastes que desafia a compreensão e inspira reverência.

    Neste livro, mergulharemos nesse mundo de sonhos e realidades, onde a natureza se apresenta em toda a sua majestade.

    O autor desta obra é um homem notável, um verdadeiro filho da Amazônia, que, após décadas de dedicação incansável, está realizando seu sonho de compartilhar essa história única com o mundo. Sua trajetória é um testemunho vivo de resiliência, estudo, dedicação, inteligência e obstinação. Ele mergulhou profundamente nas entranhas da Amazônia, absorvendo seus segredos e desvendando sua rica história.

    A Amazônia, citada por Júlio Verne (1828-1905) como um imenso inferno verde, é, na verdade, um paraíso esmeralda, onde a flora e a fauna se entrelaçam em um espetáculo de vida que desafia a imaginação. Essa região, que abriga uma das maiores biodiversidades do mundo, desempenha um papel fundamental na purificação do ar que respiramos, e é o lar de milhares de espécies, muitas das quais ainda não foram totalmente descobertas.

    As cheias anuais dos rios podem ser devastadoras, inundando vastas áreas e transformando a paisagem. No entanto, quando as águas se retiram, a terra se renova, tornando-se fértil e pronta para sustentar a vida nativa em todas as suas formas. Árvores majestosas, como a sumaúma, a castanheira e o cupuaçu, brotam vigorosamente, enquanto frutas como o açaí, a laranja e o bacaba se revelam em toda a sua exuberância.

    Para os ribeirinhos da Amazônia, o período de vazante dos rios é o momento perfeito para plantar a mandioca, a macaxeira, o cará e outros alimentos que se incorporam à floresta, criando uma paisagem que parece saída de uma aquarela natural. O alvorecer é uma festa para os sentidos, com o sol dourado emergindo por entre as copas das árvores, despertando uma sinfonia de aves e animais da floresta.

    Aves ciganas, bem-te-vis, uirapurús e uma infinidade de outras espécies saúdam o dia com seus cantos e cores deslumbrantes. Os rios se enchem de vida, com uma profusão de peixes, jacarés, sucuris e tartarugas, criando uma visão impressionante de biodiversidade. As paisagens são pintadas com a exuberância das plantas aquáticas, como os murirús, os aguapés, as canaranas e as vitórias-régias.

    Manaus, a capital do estado do Amazonas, é um ponto de convergência entre o mundo urbano e a natureza selvagem. Sua história remonta aos tempos em que era um simples Forte de São José da Barra do Rio Negro, em 1669. Hoje, a cidade é um centro pulsante que guarda as memórias e os segredos de um passado marcado por exploradores, tribos indígenas e pioneiros.

    No coração do Amazonas, o pequeno rio Manaquiri, com seus 70 quilômetros de extensão, é um oásis de tranquilidade que quase se perde na vastidão da selva. No passado, era uma terra selvagem, onde tribos indígenas como os Apuriná, Muras, Caxinuwa, Kokama, Mundurucu, Ticuna, Miranha e Saterê Mauew deixaram suas pegadas. O nome Manaquiri deriva da língua indígena e evoca a Formiga da cabeça pequena, lembrando-nos das lendas que permeiam essa região.

    Através deste livro, mergulharemos nos recantos do Manaquiri, do Fuxico e do Castanho, para desvendar a extraordinária história de amor do caboclo Caranã, primeiro enfermeiro, parteiro e dentista, por sua terra.

    Prepare-se para uma viagem que o levará a lugares que desafiarão a sua imaginação, onde a natureza e a história se entrelaçam em uma dança eterna. É a Amazônia, um tesouro da Terra que merece ser descoberto e preservado. Digo eu, vale muito à pena esquadrinhar cada página desta obra literária, para conhecer a impressionante epopeia do caboclo Caranã.

    Alexander Felipe Ribeiro de Souza Silva, filho de amazonense, é um brasiliense que adotou o coração carioca desde 2006, é um apaixonado pelas neurociências tendo sua especialização através da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além disso é contador especialista em planejamento com ampla visão de negócios, reforçada pelo seu MBA em gestão empresarial e por sua larga experiência em grandes empresas multinacionais.

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    Era o mês de julho do ano de 2003.

    Eu me encontrava em Manaus para participar de eventos ligados a movimentos religiosos. Na palestra que proferi na noite da sexta-feira, enfatizei a importância cultural e religiosas das populações ribeirinhas através dos anos, com seus ritos e credos herdados de seus ancestrais.

    No encerramento do evento, um casal jovem abordou-me e manifestou seu interesse em encontrar-me num outro momento, num outro ambiente, para relatar-me uma história que julgavam de muita importância para sua família, e que também enriqueceria bastante meus futuros pronunciamentos sobre a região amazônica e seu povo.

    Na noite do sábado, por volta das 19h, na portaria do hotel Amazonas onde me hospedara, recebi o casal que viera para jantar comigo e para desfrutarmos um momento de descontração, quando também me dariam a conhecer o teor da história a que haviam se proposto me relatar.

    Tratava-se de Wilson e de sua esposa Karina, um casal, na minha percepção ainda bastante jovem. Aquele jantar havíamos combinado previamente, por ocasião do evento religioso do qual eu participara.

    Recebi o casal no hall do hotel e nos dirigimos ao restaurante no oitavo andar do edifício. Nos acomodamos a uma mesa próxima às janelas, de onde teríamos uma visão privilegiada do rio Negro e do porto de Manaus.

    Pedimos bebidas leves, não alcoólicas, para daí então nos darmos a conhecer melhor. Wilson e Karina fizeram questão em saber de minha vida acadêmica e profissional fora de Manaus, uma vez que eu era amazonense.

    Explique a eles que desde cedo me interessei pela formação acadêmica nos campos da teologia e da sociologia, cursos esses que, na minha adolescência, não era possível alcançar a formação em Manaus.

    Por felicidade nossa, nos serviram petiscos de pirarucu frito em pequenos blocos. No prato principal nos serviram tucunaré ensopado acompanhado de arroz branco e farinha d’água. E, ali, passamos momentos agradáveis e descontraídos com muitas gargalhadas, próprias de um casal tão jovem.

    Me falaram de seus pais, de suas famílias, de seus estudos, de sua vida e da felicidade de ser naturais do estado do Amazonas.

    Fomos informados de que naquela noite o restaurante encerrava suas atividades às 22h. Mesmo assim, nos informaram que poderíamos permanecer no ambiente pelo tempo que desejássemos.

    Hoje, aqui diante de meu computador, confesso, me senti aliviado porque a história que eu viria a conhecer mudaria minha percepção sobre a vida dos ribeirinhos e das comunidades no Amazonas.

    Na minha adolescência, eu, como voluntário, acompanhara um casal de missionários americanos, numa de suas primeiras viagens missionárias pelos rios cercanos a Manaus, na década de 1960.

    Após o jantar, agora com a mesa contendo apenas nossos copos e as latinhas de guaraná tuxaua, partiu de Karina a iniciativa de colocar sobre a mesa, uma pasta de plástico transparente, em cujo interior era perceptível um calhamaço de folhas em papel almaço, amareladas e desgastadas.

    Num gesto aparentemente simplório, mas de acentuada emoção, o casal colocou suas mãos uma sobre a outra sobre aquela pasta. Olharam fixamente nos meus olhos, quando eu pude observar os olhos de ambos lacrimejando como em sintonia.

    Foi Wilsom quem falou primeiro:

    – Professor, nessas folhas rotas se encontra a história mais linda da nossa família, do Manaquiri e do estado do Amazonas!

    Ele pouco me conhecia, mas aceitei a mesura. Meu coração chegou a disparar por um instante dado a ênfase emocional das palavras do rapaz.

    Karina então, completou:

    – A história maravilhosa narrada nessas folhas manuscritas, tem muito a ver inclusive com a nossa própria história de amor. Ela nos uniu!

    Wilsom então tomou a iniciativa da narrativa:

    – Professor, reescrever essa história, editá-la se possível, é o grande desafio que lhe propomos nesta noite.

    Eu nem havia cogitado em aceitar tal desafio, mas ele completou:

    – Trata-se do diário de nosso saudoso e inesquecível tio Caranã, falecido no ano passado; onde ele narra sua saga pelos rincões da região do Manaquiri e do Fuxico, como primeiro enfermeiro, parteiro e dentista prático.

    Aquela declaração, embora me parecesse pitoresca veio cheia de emoção e significado quando, ato contínuo, aqueles dois empurraram aquela pasta surrada na direção de minhas mãos.

    Hoje, recordo quando meus dedos tocaram àquela pasta. Uma emoção indescritível tomou conta de minha mente enquanto meus olhos cruzaram com os olhos úmidos de Karina e Wilsom.

    Por um instante ficamos a nos fitar, em silêncio. Eu diria hoje, aquele nosso encontro certamente esteve escrito nas estrelas por tempos imemoriais, tal a sublimidade daquele momento para mim.

    Wilsom então, em linhas gerais, apresentou o conteúdo do ‘diário’ de seu tio Caranã. Falou de seu falecimento no ano passado e da maneira como sua tia Zila, filha única de Caranã, lhe presenteara com aquela pasta de plástico transparente contendo aquele calhamaço de folhas surradas.

    À medida que Wilsom narrava e Karina confirmava suas palavras, meu coração ia se envolvendo com aquela história intrigante. Minha mente pouco a pouco foi se impregnando com as nuances do relato que eu ouvia.

    Em meu coração estava claro que eu aceitava o desafio que aqueles jovens me propunham. Só não sabia ainda se teria capacidade intelectual e cognitiva para realizá-lo. Mas Wilsom fez questão de enfatizar:

    – Professor, saiba que somente Karina, eu, tia Zila e agora o Senhor, temos conhecimento da existência desse diário de nosso amado tio.

    E completou enfaticamente:

    – Sentimos que o Senhor é a pessoa que tornará conhecida ao mundo a história de nosso tio Caranã.

    Aceito por mim aquele desafio, tomei em minhas mãos aquela pasta contendo aquelas folhas amareladas. Combinamos nossos contatos e acertos, fizemos nossas juras, nos abraçamos com ternura, e nos despedimos. O relógio na portaria do hotel já badalava a meia-noite.

    De volta a meu aposento, sequer tive coragem de abrir aquela pasta. Imediatamente a acomodei com carinho no fundo de minha mala. Naturalmente que naquela noite perdi o sono. Sinceramente, cheguei a ouvir o trinar dos primeiros passarinhos daquele amanhecer.

    Na tarde daquele domingo, na antessala de embarque do aeroporto de Ponta Pelada, antes de meu embarque, Karina e Wilson estavam lá, para um último abraço.

    Trocamos algumas palavras, nos fitamos com cumplicidade e nos abraçamos. Notei que as lágrimas molhavam os olhos dos dois. Karina, não aguentou e soluçou enquanto me abraçou uma última vez.

    A viagem para casa, no Rio de Janeiro, me fez pregar os olhos na imensidão da floresta abaixo de nós. Imaginar o que estaria escrito naquele diário de Caranã que tanto impactara a vida de Wilson e Karina, me intrigava. Que história estaria tão intrinsecamente ligada àquela floresta, aos seus rios, igarapés, e às pessoas daquele lugar, eu me perguntava.

    Uma interrogação pairava em minha mente: – por que o casal me escolhera para entregar aquela pasta contendo o diário? Seria uma premonição a respeito de minha pessoa? Por que confiaram em mim?

    Era chegar em casa e encontrar as respostas, respostas aquelas que somente eu encontraria se tivesse a coragem para abrir aquela pasta.

    Em casa, não sei exatamente por que ainda esperei dois meses, até ter coragem de ler apenas o registro que Wilson fizera por ocasião do falecimento de seu tio Caranã, escritos em poucas laudas.

    Mas o momento chegou numa noite chuvosa de início de verão. Em minha cama, olhando para o teto enquanto escutava o ruído das gotas de chuva se debatendo na vidraça do meu quarto, eu não conseguia adormecer. De repente, foi como a imagem de Wilson e Karina aparecessem como pirilampos a se projetar na minha visão do teto.

    Levantei-me e me dirigi à cozinha para preparar um chá. Parece, era como a imagem enigmática daquele jovem casal começasse também a se projetar na fumaça que subia da xícara de chá.

    Tomei então a decisão de, naquela mesma noite, abrir a pasta e ler pelo menos o registro que Wilson fizera por ocasião da morte de seu tio.

    Me dirigi ao escritório, tomei a pasta e soltei os elásticos que prendiam suas bordas, com muita reverência. Num gesto instintivo, de repente me peguei acariciando aquela pasta antes de abri-la.

    Com cuidado tomei as laudas manuscritas por Wilson e iniciei a leitura. Assim ele iniciava seu registro: – A história de amor do meu tio Caranã, começa a ser conhecida a partir do dia em que ele morreu.

    Seu relato ipsis litteris: Foi no alvorecer do dia 28 de setembro de 2002, que as lágrimas dos Marreiros se misturaram às águas mansas e escuras de um dos paranás do igarapé do Fuxico.

    Aquele alvorecer, envolto em brumas como soe ser as manhãs sobre os igarapés amazônicos, não seria diferente se nele o alarido da fauna se retardasse. Pássaros e passarinhos se demoraram a gorjear, macacos pareceram silenciar, a brisa não soprou e as folhas se negaram a farfalhar.

    Um choramingar intenso cortava o silêncio do lugar. Aquele lamento se emanava da casa simples dos Marreiros, como a elevar-se aos céus numa prece reprimida pela dor.

    As duas canoas da família permaneceram atracadas e solitárias no porto simples às margens do paraná. Apenas a canoa com motor de rabeta deixara aquele porto quando ainda estava escuro, em direção à Vila do Jaraqui, a sede do Município de Manaquiri.

    Os caboclos da casa naquele alvorecer, sequer haviam saído para recolher os peixes capturados na malhadeira e no espinhel. Ninguém saíra também para os roçados de mandioca, de milho, de feijão e das melancias nas cercanias da casa.

    Todos os membros da família que se encontravam ali, à exceção dos que partiram cedo para a vila, permaneciam reclusos e choramingando pelos cantos da casa.

    Sobre a rústica mesa de madeira na sala, de um imenso bule em alumínio contendo café, tênue fumaça se elevava na direção do teto. Mas ninguém se animara a tomar uma caneca com café, naquela manhã.

    A voz rouca e potente do pai da família, tio Caranã, depois de 82 anos, se calara para sempre na madrugada daquele dia a alvorecer.

    Seu imenso corpo de pele queimada pelo sol, jazia inerte por sobre uma esteira de palha estendida no chão da sala. Todas as redes já haviam sido recolhidas a seus respectivos ganchos, naquela madrugada.

    Os olhos verdes de tio Caranã, ainda se encontravam arregalados, mas sem o brilho da vida. Filetes de sangue ainda escorriam pelo nariz, pela boca e pelos ouvidos, testemunhando sua intensa agonia. O derrame cerebral (AVC), fora fulminante ao ceifar a vida daquele lendário caboclo.

    Ele desfalecera nos braços de Sebastiana sua fiel companheira; na companhia de Adelson e Zila seus filhos, e de Zimar e seu esposo Gilmar.

    Não demorou e o sol se ergueu imponente, penetrando por cada fresta da casa, iluminando com seus raios o interior daquela sala lúgubre, e também se permitindo refletir nas águas mansas do paraná.

    Pouco a pouco pequenas canoas começaram a atracar ao porto da casa. Naqueles dias as águas do igarapé ainda estavam altas, quase abaixo da casa. Naquelas canoas chegavam os parentes e os vizinhos que moravam nas cercanias.

    Tia Sebastiana, a companheira de juventude de Caranã, agora viúva, já em seus 80 anos de idade, é o único membro da família fora da casa. Amanhecera assentada, solitária, num banco de madeira fincado no terreiro. Ali mantinha-se em profundo silêncio, olhar fixo nas águas do paraná.

    É a ela a quem os vizinhos se dirigiram primeiro ao chegar, com suas condolências. Em seguida, um após outro, vão adentrando à casa para abraçar Zila e Adelson, os únicos filhos de Caranã. Ali também se encontram Afonso, José e Idemar. As filhas de Zila, Zilene, Zilane e Zineia, viviam na casa da família, na Vila do Jaraqui.

    Na sala, após os cumprimentos, volta a reinar o silêncio sepulcral, entrecortado apenas pelo choramingar dos presentes. Todos se comunicam apenas pelo olhar condolente.

    Alguns até, silenciosamente vão pegando café numa caneca esmaltada. Um ou outro, pega também um pedaço de beijú ou um pouco de farinha-de-tapioca, para comer em silêncio.

    Por volta das 10 horas, aportou a lancha da prefeitura. Nela se encontravam um enfermeiro, o secretário do prefeito, um funcionário do Cartório, o beato da paróquia de São Pedro, alguns amigos e as filhas de Zila.

    Na lancha já se encontrava um caixão simples, doado pela prefeitura para acomodar o defunto.

    Cumpridas as singelas e respeitosas formalidades, o defunto, já vestido com sua veste mortuária, foi acomodado no caixão. O secretário do prefeito, os familiares e o beato, combinaram a saída do féretro para as 13h, rumo ao Cemitério Municipal, nas cercanias da Vila do Jaraqui.

    Por volta do meio-dia o porto da casa já se encontrava apinhado de batelões e canoas para acompanhar o féretro. Eram vizinhos de toda a região do Igarapé do Fuxico, e adjacências.

    Todos, após as condolências, vão se concentrando no terreiro, em volta de uma tia Sebastiana bastante abatida. Ela não chora, apenas esfrega o nariz com as costas das mãos. Todos compreendiam seu silêncio. Era o seu o jeito de agir diante da imensa dor que sentia.

    Ali, entre as várias famílias, todos conheciam muito bem a trajetória de vida do caboclo Caranã, naquela região, desde sua juventude.

    Por décadas ele fora o único enfermeiro, parteiro e dentista prático por aquelas paragens. Mesmo depois da inauguração do posto médico na vila, tio Caranã ainda continuou a ser solicitado para cuidar de alguém enfermo ou de alguma cabocla parturiente.

    Eles sabiam que mesmo formado por uma Escola Missionária, na cidade do Rio de Janeiro, tio Caranã decidira se dedicar a ajudar os enfermos e as mães com suas dificuldades no momento de parir, naquela região. Ele mesmo buscava medicamentos, vacinas e material médico junto à Secretaria de Saúde e junto a alguns amigos, em Manaus.

    Tio Caranã nunca recebera ajuda do município para realizar seu trabalho assistencial. Se negava a receber dinheiro por seus serviços médicos. Os alimentos que recebia de seus pacientes como forma de reconhecimento por seus serviços, ele ainda os compartia com os mais necessitados.

    Os dirigentes da Missão Evangélica que fora liderada pelo falecido missionário Harold, sempre o subvencionavam com pequenas quantias, com mantimentos, roupas e calçados. Essa irmandade custeava a compra de gaze, algodão, esparadrapo, analgésicos, mercúrio cromo, seringas e os medicamentos mais necessários para atender aos habitantes daquela região.

    Vários dos jovens e adultos presentes ao funeral, haviam sido aparados por tio Caranã no trabalho de parto de suas mães. Não poucos os homens receberam o nome de Raimundo e de Sebastiana, numa homenagem singela que seus pais faziam a seu benfeitor e esposa.

    Tio Caranã, também fizera escola orientando muitas jovens a proceder a enfermagem e à obstetrícia em situações emergenciais. Algumas daquelas jovens, agora, já eram parteiras reconhecidas. Outras se encontravam em Manaus se preparando para seguir o exemplo de seu velho mestre.

    Nos últimos 20 anos, com a construção do Posto Médico na Vila do Jaraqui, tio Caranã já quase não atendia aos enfermos e às parturientes. Mesmo assim, com seu barco de pesca, transportava os enfermos e as parturientes ao posto médico ou, nalguns casos, a Manacapuru.

    Nos últimos anos, sem apoio para continuar com seu trabalho assistencial e com a saúde já um tanto abalada, dedicara-se mais à família, à pesca e à produção de alimentos, que seus netos comercializavam no flutuante de Bebiano, em Manaus e em Manacapurú.

    Por não se deixar envolver com as correntes políticas da região, preferiu levar uma vida simples e reclusa, quase incógnita.

    O Posto médico da Vila do Jaraqui agora mantinha duas enfermeiras fixas. A cada 30 dias um clínico geral e um pediatra as apoiavam durante uma semana. Anualmente se procedia a prevenção contra malária e outros vírus. Mas os medicamentos e material médicos, ainda eram escassos.

    Todo o pessoal médico, era funcionário do Estado. Tio Caranã jamais recebera qualquer subvenção do Estado ou do Município. Ele nunca se envolvera com a política, pois entendia sua missão como um sacerdócio. Essa atitude até o prejudicara nalgumas ocasiões.

    Como era bastante conhecido na Secretaria de Saúde e gozava da amizade de alguns amigos em Manaus, além do pessoal da igreja e da Missão, ele sempre regressava para o Manaquiri com alguns insumos hospitalares, medicamentos, vacinas, roupas, calçados e víveres.

    Tio Caranã, tratou-se de um ser humano único em seu procedimento como profissional, como cidadão, como pai-de-família e como amigo. Nunca se aproveitou de seus pacientes e amigos. Levou vida simples, mas correta. Nunca almejou enriquecer com o que ele chamava de sua missão na Terra.

    Às 13 horas o féretro iniciou sua viagem até o cemitério. Os batelões e as canoas foram sendo amarrados à popa da lancha da prefeitura, formando uma fila comprida. E assim, lentamente seguiram rio abaixo.

    O beato embarcado na lancha, ia puxando uma ladainha triste que era repetida por todos os que conseguiam ouvi-la. Aquela ladainha se embrenhava pelos igapós e ecoava pela mata. As águas do igarapé e do rio se apresentavam mansas naquela tarde, como a homenagear aquele que fora um filho valoroso daquela terra.

    Chegados ao cemitério, uma cerimônia singela de encomenda do corpo foi realizada. Uma ladainha mais, foi repetida. Um padre-nosso, uma salve rainha e algumas ave-marias encerrou aquele momento pungente.

    O prefeito encerrou a cerimônia dizendo algumas palavras em homenagem ao morto. Ele também conhecera a epopeia de tio Caranã:

    – Meus amigos, não cabe tristeza neste momento, pelo descanso de nosso amigo Caranã. Algum filho de nossa terra fez tanto por nossa gente, como ele fez? Alguém deu mais alegrias a nossas famílias, como deu Caranã? Quantas vidas ele salvou, quantas crianças ajudou a nascer, quantas dores aliviou? – E continuou:

    – Quantos Raimundos, quantos Caranãs, quantas Marialvas encontramos pelo beiradão dos rios e dos igarapés de nossa região. Todos esses são fruto de partos difíceis, que vieram à luz pelas mãos benditas de nosso amigo Caranã.

    – Então, meus amigos, devemos estar felizes porque desfrutamos a companhia de Caranã conosco nos últimos 70 anos. Nossas vidas foram mais alegres porque tivemos o privilégio de conviver com Caranã. Hoje ele morre para esta vida, mas continuará vivendo para sempre em nossas lembranças.

    No encerramento da cerimônia, velas acesas foram fincadas na terra em volta da sepultura de tio Caranã. Algumas flores silvestres foram colocadas sobre a sepultura.

    O sol declinava rapidamente. Logo todos, silenciosamente, foram embarcando em suas canoas e batelões. A lancha da prefeitura os rebocou de volta à comunidade do Fuxico e, dali cada um tomou seu rumo. Aquele fora um dia bastante tristeza!

    Tia Zila, com as filhas, permaneceram na casa da Vila, onde aguardaria os parentes que viriam de Manaus no final-de-semana. Apenas Afonso e José seguiram para o Fuxico, pois precisavam alimentar as galinhas, os porcos e os cachorros.

    Na sexta-feira, por volta das onze horas, os parentes vindos de Manaus desembarcaram na Vila do Jaraqui. Vieram as irmãs Francisca, Mercedes e Vicência com alguns de seus filhos eu, inclusive, um dos netos de Francisca filho de Wilson e Vera. Tia Zila nos recebeu a todos em sua casa na Vila, pois somente na manhã do sábado iríamos ao cemitério para uma cerimônia mais familiar.

    No sábado, por volta das nove horas, a lancha da prefeitura transportou a família ao cemitério. Alguns poucos amigos pediram para acompanhar a família e foram atendidos. O beato da igreja também nos acompanhou.

    No cemitério foi realizada uma cerimônia de caráter religioso, bem singela. Entoamos algumas ladainhas, rezamos e a cerimônia foi encerrada. Colocamos algumas flores e acendemos algumas velas, inclusive sobre sepulturas de outros parentes ali, e já embarcamos para retornar à Vila.

    Tia Zila permaneceria na Vila com tia Sebastiana, Idemar e as meninas, até a tarde do domingo quando as tias retornariam para Manaus.

    Eu, preferi seguir para o sitio no paraná do Fuxico, junto com os primos. Chegados lá, lançamos tarrafa para pescar alguns peixes para o almoço e jantar. Aproveitamos também para mergulhar um pouco nas águas escuras do paraná. Comemos peixe assado, com farinha, acompanhado de café e de uma cachacinha; aproveitando que Zila não se encontrava por ali.

    Passamos o resto da tarde rememorando os dias felizes que passáramos na companhia de tio Caranã. Ao anoitecer, colocamos um fogareiro no meio da sala para afugentar os carapanãs. Tomamos café com farinha-de-tapioca e jogamos ‘damas’.

    Varamos quase a noite inteira conversando, até que cada um pegou no sono. Eu, no entanto, demorei a conciliar o sono, tanta era a saudade que sentia do tio tão querido. Notei que o baú de tio Caranã ainda se encontrava num canto da sala. Lembrei que era dali que o tio sempre tirava seus causos e estórias que tanto nos encantavam.

    Fui até o baú, mas me dei conta de que se encontrava trancado. Preferi então esperar pelo amanhecer. Os primos deveriam ter a chave do baú. Deitei-me e adormeci rapidamente.

    Só despertei ao ouvir a voz de Zila e de tia Sebastiana. É que após embarcar os parentes, elas se dirigiram para o tapirí no paraná do Fuxico. Já passava do meio-dia. Os meninos já estavam até com o almoço pronto. Abracei as duas com carinho e chorei um pouco com elas; choramos, todos!

    Enquanto a gente comia, indaguei sobre a chave do baú do tio. Zila já foi logo dizendo:

    – Não há muita coisa aí dentro. Só os documentos do pai, os dois jalecos brancos, algumas roupas, os sapatos, umas quinquilharias, e um maço de folhas escritas. Como papai gostava muito de você, caso queira, pode levar esse baú pra Manaus com você; com tudo que tem dentro!

    Agradeci e aceitei com alegria a oferta de tia Zila. Tomei a chave e, com muita reverência, destranquei o baú e levantei sua tampa, cuidadosamente. Mas não tive coragem de tocar no que havia lá dentro. Tia Zila se antecipou e retirou as roupas e os sapatos que poderia aproveitar para os filhos. As quinquilharias, as entregou para tia Sebastiana.

    Tia Zila me informou que desde que o tio parara de atender as pessoas, resolveu doar ao posto médico da Vila todos aqueles instrumentos médicos que ele possuía. Ele ainda esperou o nascimento dos netos e netas antes de fazer a doação.

    Falei a tia Zila que desejava ficar apenas com o pacote, que imaginei, continha as estórias escritas pelo tio. Eram muitas folhas escritas manualmente em ambos os lados. Num impulso abracei carinhosamente aquele pacote mas preferi não abrir.

    – Vou levar para casa! Assim poderei ler cuidadosamente tudo que o tio escreveu. – disse

    Tia Zila apenas meneou com a cabeça, concordando.

    No domingo seguinte já passavam das 12 horas quando, já no porto de Manaus, no Mercado das Bananas, eu embarquei num Jeep com destino ao bairro de São José onde residia com minha mãe Vera e minhas irmãs. Levava junto um cacho de bananas, uma saca com assai, uma saca com bacaba, uma saca com cupuaçu e outra com castanhas.

    Minha mãe Vera, era viúva de meu pai Wilsom, o filho mais velho de minha avó Francisca com meu avô Gregório.

    À noite, sozinho, sentado à mesa da cozinha, resolvi abrir o pacote de folhas escritas por tio Caranã. As folhas estavam acomodadas numa pasta de plástico bastante encardida, imaginei, pelo uso.

    Ao abrir o pacote, as lágrimas umedeceram meus olhos ao ler o que estava escrito já na primeira folha: – Sou Raimundo Marreiro Felipe. Caranã para meus familiares e amigos desde a infância. – E esta é a história de amor da minha vida!

    Mas decidi não iniciar a leitura e recoloquei aquela folha na pasta. Refiz o embrulho, abracei-o e não contive as lágrimas. Aquilo era um verdadeiro tesouro para mim.

    Tomei então a decisão de, no sábado seguinte, passar a tarde em Ponta Negra junto com minha namorada Karina. Ali, diante do Rio Negro, eu iniciaria a leitura da história de amor da vida do nosso inesquecível tio.

    O sábado era de sol causticante e calor insuportável. Mesmo assim, embarcamos num ônibus em direção à Ponta Negra. O rio Negro se apresentava com bastante banzeiro naquela tarde. Alguns periquitos farfalhavam por entre as palhas de um velho coqueiro.

    Assentamo-nos à sombra de uma árvore de copa baixa, tendo junto um pacote de bolachas, uma garrafa de guaraná tuxaua e uma garrafa com água. Tomei o pacote contendo as folhas escritas e, levantando-o à nossa frente, silenciosamente fiz pequena prece mentalmente, em homenagem ao nosso inesquecível tio Caranã.

    Cuidadosamente, quase em reverência, abri o pacote. Foi com grande emoção que reli aquela folha de rosto mais uma vez. De repente me parecia estar ouvindo a voz rouca do tio repetindo aquelas palavras: – Sou Raimundo Marreiro Felipe – Caranã para meus familiares e amigos desde a infância. – E esta é a história de amor da minha vida!

    Por todo aquele restante de tarde, e algumas outras tardes nos dedicamos a ler o diário do tio Caranã, naquele lugar. Mas, como eram muitas laudas eu, em casa, dediquei várias noites àquela leitura tão intrigante e reveladora.

    Demorei três meses para ler aquele diário. Embora tão jovens, resolvemos casar-nos em dezembro, e decidimos gozar nossa lua-de-mel visitando o Manaquiri e o Fuxico, para checar algumas informações contidas no diário e relê trechos que nos intrigaram bastante durante sua leitura.

    Durante viagem, relemos vários trechos do diário enquanto visitávamos alguns lugares mencionados nele. No retorno para casa, chegamos à conclusão de que era necessário tornar conhecido o diário de tio Caranã ao mundo. Mas, nós não tínhamos condição e fazer aquilo.

    Decidimos então procurar alguém de confiança que pudesse fazer aquilo para nós. Isso durou pouco mais de 6 meses, quando esbarramos com um palestrante durante um evento religioso, realizado no teatro Amazonas, em Manaus.

    Nos chamou bastante atenção o conhecimento que ele possuía do Amazonas. Era final do mês de julho de 2003. Ele abordou um tema que dizia bastante da vida dos ribeirinhos, de seus desafios, de sua cultura interiorana e de suas crenças herdadas de seus ancestrais.

    Ao final nos apresentamos ao palestrante e solicitamos a ele nos receber em seu hotel, pois desejávamos apresentar-lhe algo muito especial sobre o Manaquiri e nossa família desbravara aquele lugar e ali residia desde o início do século XX.

    Ele, apresentando-se bastante curioso com nossa solicitação, educadamente nos convidou para jantar com ele no hotel Amazonas onde se encontrava hospedado, no dia seguinte, um sábado.

    Naquela noite, retornando para casa, sentimos no coração que aquele palestrante era a pessoa que a vida escolhera para tornar conhecido ao mundo o diário de nosso tio Caranã.

    Dessa forma, passamos às suas mãos o diário de nosso tio Caranã.

    Eu, após ler o relato de Wilson, tomei coragem para fazer a leitura do Diário de Caraná. Me arrependi de haver demorado tanto tempo até abrir aquela pasta. A leitura do relato de Wilson me causou impacto indescritível.

    Senti no coração uma vontade incontida de retornar ao Amazonas o quanto antes, e conhecer o Manaquiri, antes de iniciar a leitura do diário de Caranã. Eu, quando adolescente, já estiver no Manaquiri e, pelo relato de Wilsom, certamente eu conhecera Caranã.

    Na segunda quinzena de janeiro de 2004, fiz a viagem ao Amazonas. Apenas os de casa sabiam daquela minha viagem.

    Na viagem levei junto apenas o relato de Wilson; o diário, preferi deixei em um lugar seguro. Meu voou foi noturno e, às sete da manhã, já me encontrava embarcado uma lancha de passageiros com destino ao Manaquiri. A distância fluvial até a Vila do Jaraqui, a sede do município, girava em torno de três horas e meia de navegação.

    De repente eu me encontrava embarcado naquela lancha de motor barulhento, singrando as águas do Rio Negro, do estreito do Xiborena, e em seguida as águas caudalosas do rio Solimões.

    Havia em mim um misto de apreensão, contentamento e de solidão, na busca da epopeia do único enfermeiro-parteiro e dentista prático que existiu na região banhada pelo rio Manaquiri, nos anos 40, 50 e 60.

    Notei que o rio Solimões já começava a avançar pelas ribanceiras e alagava as a floresta às suas margens. Notei também a quantidade considerável de casebres sobre palafitas na ribanceira. Me peguei a imaginar como vive aquela gente ribeirinha, naquelas condições.

    Mesmo assim é grande meu deleite navegando por aquelas águas que eu conhecia somente pelos livros em minhas pesquisas. Minha mente então vaga pelo singelo relato de Wilsom, sobre tudo aquilo que agora eu estava conhecendo, literalmente.

    Depois de navegar por cerca de duas horas, alguns quilômetros antes da embocadura do Manaquiri, a lancha atracou no porto da cidadezinha de Janauacá. Alguns passageiros desembarcam e outros embarcam.

    Quando a lancha adentrou à foz do rio Manaquiri, senti meu coração em sobressalto. E fui esquadrinhando cada metro daquele rio

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