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Concerto das Almas
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E-book322 páginas4 horas

Concerto das Almas

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Sobre este e-book

Nos 17 contos de Concerto das Almas — com a música como fio condutor entre todos eles — desfilam os mais diversos personagens, povos e épocas: um rockstar alcoólatra e decadente da Califórnia em busca do sentido da vida, um burocrata brasileiro solitário e fã de ópera italiana que se mantém vivo por um único sonho, um sineiro da antiga URSS com retardamento mental e deformações qual um Quasímodo do século XX sobrevivendo a inúmeras mudanças, um médico soldado em meio à Guerra do Paraguai, um bluesman do sul dos EUA no início do século passado, uma estranha experiência genética na Austrália, um paulistano negro da Mooca tentando compor seu primeiro samba, um poeta haiku em peregrinação espiritual no Japão do século XVIII, um indígena tukano e suas indecifráveis experiências espirituais. Isto e muito mais é o que você encontrará nestas páginas, tecidas como a partitura de um complexo concerto — quem sabe, o concerto da própria vida.
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento3 de mai. de 2024
ISBN9786525475981
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    Pré-visualização do livro

    Concerto das Almas - Carlos Vicente Coutinho Neto

    Rapsódia de conto de fadas

    A floresta de sombras e de segredos, salpicada por árvores sábias e centenárias, cortada ao meio pelo Lago de Prata, reino translúcido em que a fada Viviane criara Lancelot, agora testemunhava um pôr-do-sol pálido, digno de luto.

    Os animais, em suas tocas, cavernas, ninhos e moitas, pranteavam à surdina.

    Os canários entoavam cantatas de Bach e de Beethoven, as abelhas conduziam pálidas coroas de flores em voo rasante, macambúzio, os coelhos roíam relógios, as formigas formavam colunas de exílio.

    O urso pardo — célere estalajadeiro, empreendedor pioneiro no ramo hoteleiro, anfitrião de Cachinhos Dourados e provedor de asilo político perpétuo aos Três Porquinhos — estava morto.

    Quão injusta fora a guerra contra humanos! A intromissão da Realidade em sua Vila de Fantasias fora desgosto demasiado ao ursídeo bonachão. Infarto fulminante, relatara a Vovozinha, também tão gordo, coitado… Seria ela a próxima?

    Como sobreviver às tempestades e inundações, se o Reino dos Sonhos era minado, a cada dia, pela dura realidade imposta às crianças sonhadoras?

    Mickey Mouse chorava desconsolado em seu jardim já revirado pela chuva amarga de dias difíceis, a bermudinha vermelha em frangalhos, os sapatos amarelos já sem solas. Uma Minnie abatida pelos anos sem público, viciada em barbitúricos, lhe acompanhava num madrigal de revolta muda, rodeada de fadinhas lilases, que brilhavam como vaga-lumes para poder consolá-los.

    As estopas multicoloridas de açúcar-candi que choviam incessantemente na primavera agora pareciam uma cruel ironia, com o inverno no coração de todos. A Casa de Doces fora demolida, pois tudo era amargo. Quanto tempo desde que João e Maria mataram ali a fome e queimaram viva a Bruxa! Desde então são comedores compulsivos de açúcar e lutam contra o diabetes mellitus.

    Alice não habitava mais o País das Maravilhas — essas universidades em cidades distantes… — Branca de Neve e a Bela Adormecida não encontraram seus príncipes encantados — esses homens de hoje, tão fúteis, tão volúveis… — Cinderela ficara para sempre trabalhando como escrava de sua madrasta — esse corte de benefícios previdenciários, esse neoliberalismo matando direitos trabalhistas… — e o Patinho Feio nunca se transformaria num belo cisne — esses critérios de beleza inatingíveis!

    As crianças de Peter Pan, hoje prisioneiras da Terra do Nunca em decorrência de deterministas laudos psicológicos, aprenderam a dar consultoria e ensinavam a Walt Disney, Mark Twain e Monteiro Lobato como contar novas histórias a essas crianças tão exigentes, nada crianças, nada felizes…

    Agora que Chapeuzinho Vermelho morrera estraçalhada pelo Lobo Mau — essa perigosa invasão de condomínios fechados em áreas de proteção ambiental! — e Pinóquio tinha sua alma eternamente presa num corpo de madeira — ah, essa vida platônica! — tudo se acabava e se desfazia, no caminho de volta para casa, nunca encontrado pelas crianças que seguiram o flautista de Hamelin (esses pedófilos da internet são um perigo…).

    A ausência total de um desenvolvimento sustentável foi a forma mais estúpida de autodestruição de gerações e gerações de inúmeras espécies e de povos originários. O Pequeno Príncipe jamais reveria sua rosa e seus baobás. Jawas, ewoks e wookiees foram aculturados demais para poderem oferecer algo original aos antropólogos interestelares…

    Dorothy não podia mais fazer previsões meteorológicas exatas o suficiente para pegar um ciclone de volta ao Kansas. Era obrigada a trabalhar para a companhia de vias públicas, recapeando a estrada de tijolos amarelos com um asfalto horrível (e ela sempre se lembrava daquela música do Elton John e daquela da Judy Garland dos pássaros azuis da esperança além do arco-íris enquanto fazia isso…), ia ficar tudo quente demais, ela avisou! Essas mudanças climáticas estão pavorosas! Além do mais, ela tinha que fazer tudo sozinha — o Homem de Lata estava fazendo um tratamento de galvanização estética para tirar a ferrugem e o Leão desaparecera, a polícia trabalhava com a hipótese de ter sido assassinado por caçadores ilegais ou estar trabalhando clandestinamente num circo chinês. E quem foram os idiotas que votaram no Espantalho para prefeito???

    Nem mesmo Tom Sawyer e Emília — a Marquesa de Rabicó e Condessa de Três Estrelinhas — vêncedores hors concours do Concurso Anual de Mentiras, conseguiam mascarar a Realidade que berrava do Areópago Onírico em tempo de Despertar Tanático.

    Foi por isso que quando quatro crianças inglesas saíram de um guarda-roupa procurando por uma tal de Nárnia, todos gritaram — Voltem pra lá! Este mundo está pior que o de vocês!

    Foi por isso que quando apareceu uma trupe de quatro hobbits, um elfo, um anão, um mago e dois cavaleiros medievais, procurando uma tal de Mordor, todos gritaram — Levem essa porcaria de anel de volta, aqui já temos maldições demais!

    Então, como um cometa que prenunciava o desastre, um menino cabeludo metido a herói, montado num dragão branco e peludo com cara de cachorro pequinês, atravessou o céu, à busca da cura da Imperatriz Criança, como um profeta do Antigo Testamento, gritando que o grande Nada estava devorando cada pedaço deste mundo pós-moderno…

    E o pobre menininho crescido, num quarto de hotel, na noite anterior de uma reunião de negócios, queimava os livros de Collodi, Andersen, Perrault, Lewis Carrol, J.M. Barrie, Joseph Jacobs, Irmãos Grimm, Saint-Exupéry, George Lucas, Frank Baum, C.S. Lewis, J.R.R. Tolkien, Michael Ende, sem saber se seu mundo mitologizado não valeria mais a pena que seu mundo real.

    Dissera-lhe a sombra pálida do Sr. Ford, ao fundo: Tempo é dinheiro. Menino, é tempo de crescer….

    Sonata de angústia em tom menor

    Sinto que a aurora rompe em sangue. A brisa tece-me o tecido da raiva passada e o amor ruge dos cantos do Universo.

    Antigos deuses e abstratos anjos imploram pelo âmbar dos homens.

    Prometeu acorrentado é liberto, Proteu profetisa cavalgando as marés, Pandora lacra sua caixa quando já é tarde, Morfeu derrama o último punhado de areia pela ampulheta dos olhos, Cronos corta as asas de Eros, o fim está próximo.

    Todas as mulheres que amei (amei?) agora me olham com piedade e espanto.

    O arfar de meu peito é sôfrego e torpe. Estou morrendo.

    A ânsia dos rios é o correr em minhas veias. O sangue represa-se às células.

    Um dia julguei ser eterno. Mas meu século é findo, meus pais e avós não podem proteger-me, as honras foram só ilusão. Os dias felizes estão mortos, os tristes também. A isquemia não mais é irrelevante no prontuário do médico.

    Um pássaro atravessa a janela… por quê?

    Estes lençóis ainda estão quentes, talvez pela minha febre ardente, talvez pela dama da morte sentada aqui que me acaricia.

    Não sou o que fui: estou calvo e grisalho, minha pele é áspera e ictérica. Não sou aquele menino que brincava outrora em verdes gramados, não sou mais ágil ou sonhador, não sou o homem das núpcias com minha jovem esposa, ela também repousa abaixo do chão.

    Meus netos, com sentimentalismo fingido, observam as gotas de soro que caem; todos querem saber sobre meu pulso, meus batimentos cardíacos, meu miserável testamento.

    Minha alma impregna-se de espelhos, labirintos, águas profundas, pontes medievais.

    Um carro passa na rua, gritos de criança me sacodem.

    Sinto todas as luzes da cidade, seus bancos, restaurantes, edifícios e tecnologias decadentes, seus ladrões, assassinos, buscadores ávidos de emoções, senhores sérios, senhoras maternais, vagabundas de sonhos fúteis, políticos em campanha, tudo sempre igual…

    Agora estou frio, agonia reinante do sufocamento. Figuras brilhosas flutuam ao redor de mim. Vou… volto… para onde?

    Fui um guerreiro, um pária, um santo, um amante, um contemplativo alquimista amargo, um cavalheiro à vitoriana, um comedor de ópio à baudelairiana, um rei deposto pela burguesia, um migrante proletário que sonhava demais e o que sou agora, e o que está morrendo. Se todos os meus antigos eus pudessem me olhar agora, o que diriam com suas bocas irônicas, cínicas e tão ingênuas, ingênuas… eu queria retrucar-lhes, avisá-los…

    Mas é tarde, é sonho, é névoa, acabou.

    O tempo que me resta eu utilizo para sentir o frio do mármore, o frio fraseado do meu epitáfio.

    Enfim, a vida, isto que se chama vida, que arde tão intensa e que cobra um preço tão caro, matou-me.

    E digo um adeus demorado, verborrágico, meio apolíneo, meio dionisíaco — como sempre vivi — com lágrimas de poeta.

    A menina estoica e o menino epicureu

    Vi nestes dias, num dia depois de uma chuva de verão, dois pequenos irmãos a andar pela rua.

    Rua de bairro, com poucos carros, destas que convidam os desavisados a desprezar as calçadas e apinhar o asfalto.

    Tratava-se de um menino e de uma menina: a menina, mais velha e condutora, o menino, caçula e mais à vontade.

    De repente, o moleque larga de vez a mão da irmã e sai — instinto universal de Gene Kelly, que poucos têm coragem de realizar — a sapatear sobre poças deixadas pela tempestade recém-terminada.

    A irmã entra em pânico, gelada, branca, com o peso da espada de Dâmocles sobre a cabeça, a provar que o poder é um peso a carregar pelos outros e que se compensa, às vezes, com o sadismo secreto de vingar-se neles com gosto.

    De certo que a mãe lhe incumbira de zelar pelo mais frágil — ó bela missão que corrói a qualquer um… — e ai dela se chegasse em casa com o irmãozinho nesse estado. E se pegasse um resfriado então?

    Começaram daí os gritos: — Para com isso! A mamãe não disse que você ia apanhar se fizesse isso de novo? Olha a sua roupinha nova! Nunca mais ajudo a te comprar nada!!!

    A roupinha nova, os tênis e seus cadarços difíceis de colocar e amarrar, as unhas limpas, as máscaras e os embustes! Ah, o menino mandava tudo às favas!

    E a menina, fiel zelador ordenado por imposição de mãos episcopais e rito escocês da maçonaria, pela própria mãe zelosa, sacrossanta, mariana, guardiã da ordem e dos bons costumes, presa entre a decepção e a impotência…

    Eu me pus a pensar se eles continuariam a crescer assim e que rumo tomariam em suas vidas. Seria a menina a estoica convicta, tudo suportando como inevitável e elegendo os outros como prioridade, enquanto sua couraça a acastelaria num mundo de virtudes e mofo?

    E o menino? Um epicureu desnaturado, faustoso, madaleno, guiado pelo cio insaciável dos prazeres e — injustiça das injustiças, e por isso mesmo tão comum — o único dos dois a se dar bem na vida, a imagem da leveza que todos queriam ver e recusando qualquer peso, como o atleta que corre só para o pódio, mandando ao inferno tudo que acontece ao seu lado?

    Talvez. Ou talvez não sejam mais do que pessoas comuns, como a maioria de nós, a ter os dois dentro de si, brigando como trevas e luz, e sempre sentindo ao final um certo vazio por qualquer dos dois que ganhe a luta. Mas e se…

    E foi então que a mãe chegou. Ralhou com os dois, distribuiu puxões de orelha, a um por ingerência, a outro por insubordinação.

    Depois de averiguar a história, exercendo o contraditório e a ampla defesa, houve por bem comprar um doce, um doce só, só para a menina. O recurso de apelação do menino, com direito a choro, blasfêmias, orações imprecatórias e uma baita falta de compostura, não renderam o esperado resultado de reforma da decisão (que já nasceu transitada em julgado), mas atraiu olhares curiosos e estampou um sorriso disfarçado de contentamento satânico na menina (ah, o irmão do filho pródigo olha de canto…).

    Quando os três entraram em casa (ao menos é o que imagino), a mãe contou pormenorizadamente ao pai todo o ocorrido, o pai ouviu atentamente, fez coro de tragédia grega ao recital de corifeu da mãe, deu parabéns frios e solenes à menina (mas sorriu apenas para o menino, quando ninguém estava olhando…).

    E eu, quando cheguei em casa e sentei-me no sofá, pus-me a pensar naquelas duas criaturas infantis — tão Zenão e Epicuro, tão Dom Quixote e Sancho Pança, tão Dorothy esperando o tesouro apenas ao fim do arco íris, Sam ao piano de um bar em Casablanca tocando em looping As Time Goes By: a eterna perda de seu chefe Rick, e o outro tão Carlitos, deixando pra trás a linha de montagem da fábrica, os regimes totalitários, a polícia, a sociedade, os palcos, tudo, sem qualquer remorso! Tão Rhett Butler indo embora para sempre dos ardis de Scarlett O’Hara em E o Vento Levou: Frankly, my dear, I don’t give a damn! ¹ — que concluí que, se quando finalmente adultos, não se fundissem numa criatura inteira e só, Yin e Yang, contradição imprescindível a tudo o que é vivo, que seria, apesar de seus voos de águia em pensamento, apenas mais um velho em sua odisseia de poltrona.


    1 Francamente, minha querida, eu não dou a mínima!

    O Lied de Adolf

    Um velho decrépito se arrasta pelos amplos salões de um abrigo subterrâneo, portando uma arma de fogo e uma ampola de cianeto.

    Sua esposa Eva já encerrara com a própria vida, agora jazia ensanguentada sobre um divã.

    Ele sabe o que deve fazer, e, como todo ser humano possui a estranha mania de recapitular o passado nos seus derradeiros momentos, assim também lhe sucedeu.

    Lembrou-se então das tenras planícies pastoris de Braunau-am-Inn, de quando era o menino Adolf Shickelgrüber — seu registro não continha o sobrenome do verdadeiro pai, então usava o da mãe — filho de uma dona-de-casa submissa e de um severo padrasto funcionário de alfândega, alcoólatra e trinta anos mais velho que a esposa.

    Crescera com espírito livre e solitário, vagando pelos pomares do sul da Áustria, brincando com miniaturas de tanques de guerra e lendo sobre as táticas de batalha.

    Napoleão, César, Alexandre, Carlos Magno, Frederico II, habitavam seus sonhos como as meninas habitam as fantasias dos adolescentes.

    Em pouco tempo, descobrira que esta distância da realidade o transformara num garoto incapaz de relacionamentos significativos. Na escola, fora tido como inadaptável, insociável, alienado.

    Assim era e assim se sentia quando espiava de longe a extrovertida Geli, quando esta praticava suas aulas de canto, quando encantava a todos nas rodas de conversa dos cafés, quando se rebelava contra seu amor doentio que a aprisionava num apartamento em Munique, onde finalmente foi encontrada morta em meio a sangue e pólvora de uma pequena pistola. Geli era sua sobrinha.

    Assim era quando se inflamava para responder às perguntas do professor de História e nada conseguia dizer. Costumava ter ataques histéricos quando frustrado ou ignorado.

    A tirania paterna foi outro longo drama, mas que se encerrou quando da morte do encarquilhado Alois.

    Sua vida continuou atribulada; assumiu o sobrenome de um dos amantes de sua mãe, agora seu pai adotivo: passara a se chamar, aos 16 anos, Adolf Hitler.

    Pouco depois, morria-lhe a mãe, a única pessoa a quem confessou amar de verdade.

    Os outros irmãos o rejeitaram. Na realidade, só se aproximaram muito mais tarde, quando sua influência no Partido era absoluta e quando era possível tirar vantagem disso.

    Resolvera então se aventurar. Viajou a Viena, negligenciou os estudos, fez pequenos bicos, instalou-se em inúmeras espeluncas, onde passava a madrugada devorando livros doutrinários e panfletários sobre a culpabilidade dos judeus-marxistas na desordem do país e sobre a necessidade da derradeira unificação entre Áustria e Alemanha, bem como da anexação de todos os territórios onde houvesse um considerável contingente da raça ariana, destinada a dominar o mundo.

    Em nome da superioridade germânica, amava as óperas de Wagner e as epopéias nórdicas, mas foi artista frustrado, desenhista e projetista medíocre. Era homem sem amigos, sem mulheres, sem reconhecimento por seu suposto talento.

    Quem eram os culpados afinal? Os Sábios de Sião por trás de todas as conspirações do mundo? Os especuladores financeiros? A dinastia dos Hohenzollern?

    O ódio se apoderava de sua alma como a paixão autodestrutiva se apoderara de seu herói Siegfried. A timidez o castrara e assassinara, e, desde então, construíra sua carapaça de pedra muito sólida, de ufanismo xenófobo e vingativo fanatismo pessoal.

    Assim foi no silêncio perante a dor, quando baleado no testículo na Primeira Grande Guerra, mas nenhuma dor fora maior do que descobrir a derrota de sua pátria — isso até lhe causou uma temporária cegueira neurótica.

    Assim foi perante o medo, na prisão onde escreveu o seu Mein Kampf, depois do Putsch da Cervejaria de Munique ter fracassado. E assim foi perante o júbilo, nos discursos do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães — o futuro partido Nazista — e também na chancelaria do governo Hindenburg, na posse como supremo ditador, nos Decretos de Nuremberg que mutilaram a Constituição de Weimar, nas aparições públicas nas Olimpíadas de Berlim, na decisiva invasão da Polônia que desencadeou a Segunda Grande Guerra.

    Suas ideias megalomaníacas afundaram a humanidade numa guerra sem precedentes, porém, agora, depois da Batalha de Stalingrado e do Dia D na Normandia Francesa, era a vez e hora dos aliados.

    Britânicos, franceses e ianques de um lado; soviéticos sedentos de sangue de outro; era o cerco à capital.

    O marechal Rommel saíra humilhado do norte africano, a Luftwaffe² de Göring não mais protegia a capital de bombardeios, e Goebbels não conseguia mais incutir patriotismo pela propaganda totalitarista.

    O Führer, prova viva de que uma patologia psicológica individual acolhida pela histeria coletiva e por arquétipos universais pode assumir a Coroa de um Estado, agora tremeria se precisasse falar em público. Aliás, esteróides, metanfetamina, Eukodal — um analgésico duas vezes mais forte que a heroína — e o mal de Parkinson já o faziam tremer há muito tempo.

    Temia ser pego e virar um troféu nas mãos dos desertores, ser espancado, esfolado vivo, urinado, como fora Mussolini com a amante Clara Petacci na Itália.

    Ainda com a costumeira taquicardia, suicida-se na fria manhã de 30 de abril de 1945. Adeus aos malditos croquis e poemas de um passado artístico frustrado, adeus ao maldito fumo das reuniões diplomáticas, adeus ao maldito fantoche de sua esposa Eva Braun!

    Os soldados mais fieis cremam seu corpo inerte, e as ruínas do Bunker, o perpétuo esconderijo, cuidam de lhe servir de jazigo, como se quisessem esconder aquele que não fora capaz de demonstrar amor à mamãe Klara e à apaixonante Geli, mas que demonstrara com ódio supremo a natureza de sua alma a seis milhões de judeus exterminados nos campos de concentração, a cinquenta milhões de soldados e civis mortos, a vinte e cinco milhões de mutilados, e para um mundo arrasado pelas bombas e pela depressão econômica.

    Ali jazia o cadáver daquele que resolveu deixar de ser humano, como os dragões que resolveram guardar o amaldiçoado ouro do Reno e o anel dos Nibelungos…


    2 Força Aérea da Alemanha Nazista.

    A ópera de Petrônio

    Meu nome é Petrônio. Petrônio brasileiro, como milhares de outros Petrônios, com milhares de outros sobrenomes.

    Minha história começa no rigoroso inverno de 1943, ano de guerra, maldita ira insensata dos homens.

    Foi quando vim ao mundo, numa cidadezinha bem ao sul do Brasil, chamada Santa Rita dos Inválidos. Não adianta procurar no mapa, ela não está lá; é tão insignificante quanto eu.

    Como ia dizendo, nasci no tal dia. Minha mãe dizia que eu tinha a mesma cara de sapo assustado que todo recém-nascido tem, mas que, na época, apesar das terríveis dores do parto, ela me achou mais lindo e fabuloso do que qualquer coisa sobre a face da Terra.

    Meu pai levou pecinhas de tricô que eu poderia precisar vestir; agia como tolo, como se aquele primeiro encantamento de paternidade o tivesse reduzido ao mesmo estado de gratuidade e inocência daquele bebezinho, que completava o bucólico Auto de Natal junto ao resto da família.

    Bom sujeito o meu pai: Sr. Gioachino Antonio; mais tarde eu descobri ser por causa do Rossini.

    Como já deve ter percebido, tratava-se de um italiano legítimo. E o governo federal getulista ordenara que os herdeiros do Lácio entregassem seus aparelhos de rádio, fossem proibidos de falar sua língua nativa e de lerem seus jornais. Fizeram o mesmo com os alemães e os japoneses. Depois, foram convocados para lutar contra os fascistas de Mussolini, que já mais pareciam fantoches de Hitler na Abissínia e no Mezzogiorno.

    Falaram-me de mamãe chorando, agarrando-se a ele pelas barras das calças, na nublada tarde de despedida, como uma Tosca ou uma Lucia de Lammermoor, num desespero lancinante de perder o homem amado.

    Durante os muitos meses seguintes, Dona Amália teria de se virar para cuidar de mim. Lavando, passando, cozinhando, costurando para fora.

    Nunca sequer chegara carta da Itália. Comecei a engatinhar, falar, andar. Brincava com um chocalho de lata, às vezes acertava minha própria cabeça e desatava a chorar. Minha mãe logo acudia, preocupada com minhas moleiras.

    Meus avós maternos, portugueses da gema, vieram então ajudá-la nos afazeres domésticos. Nunca saberei ao certo se para exercer solidariedade ou se para preencher o tédio de suas próprias vidas e dar sentido a um casamento esvaído pelos anos. Pelo menos, ao que demonstravam pelos arranca-rabos constantes, parecia estar-se mais perto da última opção.

    Tudo transcorria calmamente como a pequena horta de alface, tomates e manjericão que mantínhamos nos fundos da casa; silêncio total, talvez quebrado por uma briga de pardais, pelo leve roçar de um ouriço nas plantas da cerca ou duma lesma despencando do muro.

    Um dia, eis que surge do horizonte como miragem, eu devia ter lá pelos meus três anos: um homem em trajes militares, um rosto possuído por um misto de melancolia de quem foi e alegria de quem volta, uns olhos fundos de quem tudo viu e preferia não ter visto.

    Papá é aquele, mamã?

    Faz muito tempo, mas me lembro bem dos abraços distribuídos. Lembro até de tê-lo ouvido falar, alguns anos mais tarde, da vitória em Monte Castelo, duma história de descanso boêmio e de mulheres na Suíça não muito bem explicada. Lembro dos almoços com frango assado, espaguete, porpeta. Lembro do cálice de vinho de meu pai e de seu olhar distante que às vezes

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