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A peça que faltava
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E-book426 páginas4 horas

A peça que faltava

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Sobre este e-book

Eva, uma enfermeira e fisioterapeuta, que por culpa da crise não encontra trabalho na área de saúde, aceita um emprego como ajudante de Carmen Grimaldos, uma multimilionária um pouco excêntrica, co-proprietária de uma cadeia de hotéis, junto com Ander Izarra, seu enteado. Carmen, quando descobre o talento de Eva para desempenhar qualquer atividade, decide nomeá-la como gerente, com o único fim de irritar seu sócio. Ambos mantêm gravado no tempo uma relação de ódio e vinganças. Mas o que ela não imagina é que essa decisão mudará sua vida, a de sua empregada e a de todos ao seu redor.

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento6 de abr. de 2019
ISBN9781547576081
A peça que faltava

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    A peça que faltava - Antonia Romero

    A PEÇA QUE FALTAVA

    Antonia Romero

    © Antonia Romero, 2019

    Todos os direitos reservados.

    Data da edição: Fevereiro 2019

    Tradução: Evelyn Marques

    SINOPSE

    Eva, uma enfermeira e fisioterapeuta, que por culpa da crise não encontra trabalho na área de saúde, aceita um emprego como ajudante de Carmen Grimaldos, uma multimilionária um pouco excêntrica, co-proprietária de uma cadeia de hotéis, junto com Ander Izarra, seu enteado. Carmen, quando descobre o talento de Eva para desempenhar qualquer atividade, decide nomeá-la como gerente, com o único fim de irritar seu sócio. Ambos mantêm gravado no tempo uma relação de ódio e vinganças. Mas o que ela não imagina é que essa decisão mudará sua vida, a de sua empregada e a de todos ao seu redor.

    Para Carmen, Cristina, Marta y Silvia, por sua generosidade.

    Para Laura y Montse, pelo carinho.

    Para mi Madre, por tudo.

    «É uma verdade mundialmente reconhecida que um homem solteiro, possuidor de uma grande fortuna, precisa de uma esposa».

    Orgulho e Preconceito, Jane Austen

    CAPÍTULO 1

    Camareira ou dama de companhia?

    —Outra vez chegarei tarde.

    Eva pegou a jaqueta, que havia deixado pousada na noite anterior sobre a cadeira da sala de seu apartamento, e colocou os sapatos a caminho da porta. Fechou—a com uma batida e chamou o elevador ao mesmo tempo em que fechava o relógio de pulso, que pouco serviço lhe prestava. 

    Já do lado de fora, correu até a rua principal e fez sinal para um taxi que se aproximava. O taxista cruzou na frente de um carro que freou para que ele subisse no meio fio. O motorista do carro esbravejou pela manobra e se afastou dali pisando no acelerador.

    —Que mau humor já pela manhã! —disse o taxista, ligando o taxímetro.

    Eva disse para onde deveria levá-la e recostou-se no assento para relaxar. Disse a si mesma que era um caso perdido, que merecia que lhe escapasse essa oportunidade. Afastou uma mecha do cabelo do rosto e a colocou atrás da orelha.

    « Vai ficar com orelha de abano» —escutou em sua cabeça a voz da mãe.

    Sua mãe não era precisamente fã da filha, agora mesmo sentia que a frustrava. Como sempre. Quando foi viver sozinha na capital, longe do pequeno povoado onde havia sido criada, não imaginou que tudo seria tão difícil. Havia conseguido um bom trabalho em uma clínica no centro de Madri, pensava que ia ser verdade o que diziam: «de Madri ao sol. » Depois a demitiram e teve de trabalhar como camareira, como telefonista, inclusive foi substituta de uma caixa de supermercados, qualquer coisa desde que não tivesse que voltar a viver com sua mãe. Vivia em um apartamento de merda, em uma rua do subúrbio, e pagava um aluguel tão alto que pelas noites só podia desejar jantar cereais sem leite, porque o que ganhava não dava para mais.

    Por isso aquela era uma oportunidade que não deveria ter perdido. Talvez o fato de que havia sido sua mãe quem havia conseguido influenciara em seu incompreensível atraso pela manhã. Olhou pela janela apoiando a cabeça em sua mão direita. Realmente acreditava que havia sido seu subconsciente que havia parado o relógio? De verdade? Sacudiu a cabeça tratando de acordar os neurônios que lhe faziam falta para pensar com mais clareza. Suspirou, o dano estava feito, fazia meia hora que a esperavam na rua Príncipe de Vergara, e estava certa de que sua chance estava perdida.

    Recordou-se da ligação de sua mãe na tarde anterior.

    —É uma mulher madura com muitíssimo dinheiro, que precisa de uma dama de companhia.

    —Eu sou enfermeira, mãe, não criada.

    —Claro, por isso está trabalhando em uma cervejaria em que te pagam oitocentos euros para trabalhar dez horas diárias.

    Eva escreveu uma dessas notas mentais que tanto lhe agradava escrever e as colocou em letras maiúsculas: NÃO CONTAR NADA A MINHA MÃE, SUSCETÍVEL DE SER UTILIZADO CONTRA MIM.

    —Você não terá uma oportunidade como esta. O salário é de quatro mil euros por mês. —disse sua mãe dando ênfase na parte mais relevante do assunto. —E não terá que pagar um aluguel pelo apartamenteco como esse onde vive. Nem terá gastos com comida. Menina, é dinheiro puro. Será tudo só pra você.

    Eva estava certa de que sua mãe exagerava. Ou isso ou a velha tinha muita vontade de se livrar de algum dinheiro ganho de forma pouco honrada.

    —E você, como ficou sabendo? —perguntou inocentemente.

    —Bom, porque a senhora Paquita veio esta manhã na mercearia e me contou que seu filho Fran, aquele que estudou para ser advogado. Se lembra? Sim, filha, mas era seu amigo!

    Eva sabia a que Fran ela se referia. Iam ao colégio no primário, ainda que nunca compartilharam uma mesma aula porque era três anos mais velho que ela. Suas mães conversavam na porta do colégio e isso foi motivo suficiente para que a mãe de Eva decidisse que eram amigos. Saíram uma vez quando iam ao Instituto, mas naquela época ela só tinha olhos para Luis, que estava em sua sala, e não quis repetir a experiência. Eva sabia que nada adiantaria tentar que sua mãe mudasse aquelas ideias peregrinas que apareciam do nada e ficavam para sempre em sua perturbada cabeça.

    —Sim, mãe, já sei quem é Fran. —se sentiu ridícula chamando um homem advogado daquele jeito.

    —Então, é ele quem trata dos assuntos dessa senhora e ela lhe pediu que buscasse alguém de confiança para que seja sua dama de companhia. A senhora Paquita sempre gostou de você. Me perguntou como você estava e o que fazia e, quando expliquei como tudo estava ruim para o seu lado, me disse que falaria com seu filho. Faz um tempinho que me chamou para passar o endereço.

    Eva tapou o auricular e bufou tratando de desatar o nó de ansiedade que lhe provocava falar com sua mãe. Estava certa de que não havia guardado nenhum detalhe e que a senhora Paquita conhecia tintim por tintim todos os seus infortúnios na grande cidade.

    —Tudo bem, mãe, agradeça a senhora Paquita e ao seu filho. Amanhã irei a essa entrevista.

    E agora estava ali, enfiada dentro daquele táxi que estava passando um sinal vermelho atrás do outro, com mais de meia hora de atraso e sem desculpa.

    Quando Eva se encontrou dentro do edifício perdeu a fala. Uma preciosa escada de mármore, com tapete e tudo, paredes igualmente de mármore e lâmpadas de teto de cristal. De repente entrou em pânico e pensou em sair correndo.  

    —Está louca ou o quê? —disse a si mesma em um sussurro. —Você daqui não se mexe. Com certeza ver essa casa deve custar dinheiro e você a verá grátis. Espero.

    Quando esteve diante da porta principal pensou se deveria chamar ou esperar ali até que alguém saísse por casualidade. Ainda que a mulher vivesse sozinha, não saía nunca. Mas como ia viver sozinha? Eva começou a imaginar uma anciã decrépita, rodeada de móveis cheios de pó, gatos por todas as partes, teias de aranhas penduradas nas lâmpadas e trajando um vestido de noiva gasto pelos anos.

    —Preciso parar de ler Dickens. —disse a si mesma.

    A porta se abriu e Eva sobressaltou-se, surpresa.

    —O que você está fazendo? Chegou tarde e fica parada aí fora bisbilhotando?

    A mulher, com um tradicional sotaque espanhol, mantinha a enorme porta aberta e a olhava com o cenho franzido e uma careta de desgosto na boca.

    Eva não se fez de rogada e entrou com o corpo contraído que fazia quando se sentia intimidada. Algo que, por outro lado, acontecia com bastante freqüência.

    Sem dizer mais nada, e sem se apresentar, a mulher que lhe havia recebido de forma tão cálida fez um gesto para que a seguisse. Atravessaram um corredor com papéis de parede azul e várias cadeiras com os pés torneados e estofados com estampas florais.

    —Aqui está a garota. —disse e depois deu meia volta e foi embora pelo corredor.

    A anciã tinha... Muitíssimos anos. Por um segundo teve a impressão de que não era a primeira vez que a via e pensou se a teria visto em um desses filmes antigos do cinema clássico americano. Sua cara era um mapa enrugado, mas sua pele era branca como madrepérola e parecia extremamente suave. Trajava um vestido preto rendado que realçava sua esbelta figura e seu cabelo branco tinha um brilho admirável. Eva abaixou os olhos para suas calças jeans e sua camisa branca habitual, tudo isso em conjunto com suas inseparáveis sapatilhas azuis. De repente sentiu como se alguém houvesse acendido uma luz para iluminar seu mal gosto. Naquele cenário e com aquela elegante dama, destoava como uma coxa de galinha em uma peixaria.

    —Vai ficar aí o dia todo? —disse a mulher fazendo um gesto com a mão. —Vamos, entre e sente-se.

    Eva obedeceu com timidez e não tirou os olhos do tapete até que seu traseiro encostou no assento do sofá.

    —Suponho que já sabe que foi Frankie quem te recomendou, ainda que não tenha me dito que era tão tímida.

    Eva se deu conta de que não sabia nada sobre a mulher, nem sequer seu nome, e demorou alguns segundos em relacionar Frankie com Fran, seu colega de colégio.

    —Você é muda ou algo do tipo? Não vai dizer nada?

    —Perdão, é que não pude falar com Fra... Frankie e ele não me deu nenhuma informação.

    A anciã observou a jovem com curiosidade.

    —Ele não te falou sobre mim?

    Eva negou com a cabeça antes de responder.

    —Foi a minha mãe quem me deu seu endereço. Faz muito tempo que não vejo Francisco Medina.

    A mulher assentiu.

    —Entendo. Mas ele falou muito bem de você. Meu nome é Carmen Grimaldos.

    A mulher que a havia recebido na porta entrou sem aviso prévio trazendo em mãos uma bandeja com duas xícaras  de café e biscoitos.

    —Esta é Lisa, está comigo desde... desde muitos anos, tantos que até perdi a conta. —disse a anciã.

    —Coma pelo menos um biscoito. Se alimenta como um passarinho e é preciso vigiar para que não pule nenhuma refeição. —disse Lisa olhando Eva nos olhos.

    Eva assentiu e seguiu a mulher com o olhar, que saiu da sala e desapareceu atrás das portas.

    —Por que Lisa foi embora? —Perguntou tornando a olhar para a anciã.

    —Lisa está indo a algum lugar? —a anciã parecia surpresa.

    —A senhora precisa de outra dama de companhia, não? —perguntou a jovem um tanto confusa.

    Carmem soltou uma gargalhada.

    —Lisa tem sido minha governanta, sempre se encarregou que tudo estivesse ao meu gosto nesta casa. Agora tem pouco trabalho, mas não é minha dama de companhia. Nunca havia necessitado de uma babá até agora. —Pegou a xícara de café que tilintou ao tocar na colherzinha que havia no prato. —Quando anos você tem, menina?

    —Vinte e três.

    Carmem Grimaldos fez uma cara de surpresa.

    —Pensava que era mais jovem. Devem ser estes olhos de velha que já não distinguem. Faz tempo que não vejo mais ninguém além de Lisa e Frankie e perdi meus bons olhos. —ela levou a xícara aos lábios e bebeu com delicadeza.

    Seus movimentos eram hipnóticos para Eva, que não podia deixar de olhá-la.

    —E quantos anos você acha que tenho? —perguntou de repente.

    Eva pensou muito bem na resposta para aquela pergunta. Estava evidente que ela era uma mulher vaidosa a quem lhe importava muito seu aspecto. Ia perfeitamente coordenada em todos os detalhes, inclusive o prendedor que prendia seus cabelos tinham as mesmas pedras que adornavam a renda do vestido. E os sapatos pretos tinham em suas pontas um adorno idêntico a essa renda. Eva também tinha se dado conta de que a anciã tinha suas faculdades mentais em perfeito estado e seu olhar inquisidor era de uma mulher inteligente que havia vivido muito.

    —Não poderia dizer uma idade concreta. —respondeu de maneira ambígua.

    —Pois tenho a idade suficiente para precisar de que alguém se assegure de que continuo respirando. —disse sem afastar seu olhar do rosto da jovem. —Em que trabalhou até agora? Não se preocupe, já sei que nunca havia sido dama de companhia antes.

    Durante alguns segundos, Eva planejou inventar uma história mais interessante do que a realidade. Mas por algum motivo aquela oferta de trabalho havia começado a resultar-lhe bastante atraente. E não era pelo estupendo salário que sua mãe havia dito que ia receber, mas pela curiosidade que havia começado a sentir pela mulher que tinha a sua frente.

    —Trabalhei em um centro médico, de vendedor em loja de roupas, de camareira, de caixa em um supermercado... Mas sou enfermeira e fisioterapeuta. —esclareceu.

    —Não entendo o que faz uma enfermeira trabalhando como vendedora.

    —A crise provocou muitas incongruências. —respondeu Eva tratando de não soar arisca demais.

    —Então o trabalho que te ofereço é um pouco diferente dos que você já fez até agora. —a anciã bebeu o café de sua xícara e a deixou sobre a mesinha com muito cuidado. —Se resume em estar comigo a maior parte do dia e não pense que sou uma anciã adorável, porque não sou. Acha que poderá agüentar?

    Eva não pode evitar sorrir timidamente. Aquela anciã no sabia como era insuportável o dono da cervejaria em que estava trabalhando.

    —Não tenho muitos defeitos.  Acho que é isso o que acontece quando se está morrendo de velhice e já não te dói nada. Mude essa cara porque se tem uma coisa que eu não suporto é pena. —disse muito séria. —O que você gosta de fazer?

    Eva pensou alguns segundos antes de responder.

    —Ler, ir ao cinema, passear...

    —Bem, então será simples. —disse Carmem. —Conhece Barcelona?

    Eva negou com a cabeça. Era uma dessas cidades que sempre dizia que visitaria, mas nunca encontrava o momento. Já havia visitado Paris, Londres, Roma e não conhecia uma das mais importantes cidades espanholas.

    —Tem algo contra os catalães? —seguiu perguntando.

    Eva tornou a negar.

    —Não, não, não é isso. —disse timidamente.

    —Vou voltar para a minha casa. Bom, a casa do meu marido. —disse Carmem pensativa. —Fui embora de lá anos depois de sua morte e tem estado vazia desde então.

    A senhora Grimaldos olhou a Eva de uma forma estranha, como se a estivesse analisando.

    —O trabalho te interessa? —perguntou taxativa.

    Eva não respondeu imediatamente.  Tinha a sensação de que caso aceitasse, sua vida ia dar um giro de cento e oitenta graus e não estava certa se isso era bom. Era verdade que não tinha um trabalho pelo qual valia pena ficar. E não havia ninguém esperando por ela no pequeno cômodo que chamava de casa.

    —A senhora deveria comer um biscoito. —disse levantando a bandeja em sua direção.

    MENSAGEM DIRETA —TWITTER

    ♂ Olá, como foi seu dia?

    ♀ Bom. E o seu?

    ♂ Como sempre. Hoje pensei em você.

    ♀ Ah, sim?

    ♂ Penso frenquentemente.

    ♀ Já será menos.

    ♂ Te conto ou não?

    ♀ Conte-me.

    ♂ Passei em frente a uma lavanderia...

    ♀ Isso soa muito americano.

    ♂ E lá dentro havia uma garota que acabasse sua lavagem. Era morena e usava uma saia plissada e umas botas com correntes.

    ♂ É assim que você me imagina?

    ♀ A primeira vez que nos falamos foi por causa de um comentário de um loco por pés.

    ♂ Se diz fetichista.

    ♀ Que seja. Você colocou uma foto de uma garota com saia plissada e botas. Sempre que vejo uma garota com saia e botas penso em você.

    ♂ Que bonito!

    ♀ Está debochando?

    ♂ Não, não estou.

    ♀ Seria muito triste se estivesse.

    CAPÍTULO 2

    Nenhum lugar agradável para ir

    Depois de um mês trabalhando naquela casa, Eva já sabia a que se referia a senhora Grimaldos quando disse que não ia ser fácil lidar com ela. Era a mulher mais mandona e irascível que havia conhecido.

    A jornada de trabalho de Eva estava dedicada a sua chefe desde as nove da manhã até depois da comida, e desde as cinco até depois do jantar. Todos os dias se levantava às sete e meia e calçava seus sapatos de corrida para sair e correr. Voltava por volta das oito e quinze com os jornais do dia  entrava direto no chuveiro. Depois tomava o café com leite que havia preparado Lisa, junto com duas torradas, manteiga e geleia.

    Às nove em ponto entrava no quarto da senhora Grimaldos e a despertava com toda a suavidade do mundo. Deveria abrir as cortinas exatamente como Lisa a havia ensinado: primeiro a que estava mais à direita, a que estava mais afastada da cama e dois minutos depois a seguinte. Dessa forma até estarem abertas as três cortinas do enorme quarto no qual dormia a anciã. Uma vez com o sol já dentro do quarto, Eva a ajudava a recostar-se sobre suas almofadas e Lisa trazia o café da manhã na cama. Com o jornal em uma mão e uma xícara de café na outra, lia as notícias sempre na mesma ordem: economia, sociedade, internacional e nacional, comentando com linguagem ferina tudo aquilo de que não gostava. De vez em quando deixava a xícara de café para dar mordidinhas em uma torrada com geleia de ameixa, a única que tolerava, e falava um pouco de seu enteado, o centro das atenções de suas queixas.

    Ander Izarra era o nome que mais havia escutado desde que se mudou para viver naquele luxuoso apartamento. Filho de Asier Izarra, o marido da senhora Grimaldos, e de sua esposa anterior, não parecia ser santo de sua devoção. Eva não tinha mais informação sobre as relações familiares que se haviam estabelecido entre esse quarteto enquanto o marido da mesma ainda vivia, mas que não eram boas era bastante evidente e julgar pelo muito que criticava a senhora Grimaldos o seu enteado. Além do mais, não havia uma só fotografia dele em todo o apartamento. Assim, uma noite depois de jantar, se meteu em seu quarto e, pegou seu velho celular, que tinha que ligar com um clip porque havia perdido o botão Power em uma de suas quedas da cama, e teclou no Google  «Ander Izarra».

    Estava decidida que iria gostar daquele homem. Se ele irritava Carmen Grimaldos deveria ser boa pessoa. A primeira coisa que viu foi sua fotografia colorida e de tamanho médio. Não podia negar que era bonito, mas bonito desses de que dá gosto de olhar. Já sabia que era herdeiro, junto com Carmen, do império de seu pai, dono, dentre outras coisas, de uma importante rede de hotéis pelo mundo. Alguém havia publicado uma entrevista que ele havia feito para uma famosa revista de economia e Eva leu com o máximo de interesse e desilusão conforme avançava na leitura do texto. Acabou que ele era um arrogante estúpido e mimado. suas respostas estavam carregadas de cinismo e sua visão de mundo e suas desigualdades lhe provocou náuseas.

    Eva havia fechado a página bufando com o nariz e com vontade de cuspir na tela. Talvez lhe irritava ainda mais ser obrigada a dar razão à sua nova chefe, que acabava sendo quase tão insuportável quanto o dono da cervejaria, esse que a havia deixado sem palavras quando disse que não pagaria o que lhe devia por ir embora sem aviso prévio. Depois de ler tudo aquilo se levantou rapidamente e colocou a orelha na porta. Seu quarto estava bastante longe do da anciã para que pudesse escutá-la, mas preferia se assegurar de que ninguém estava por perto. Foi ao canto mais afastado e se ajoelhou para fazer uma ligação.

    —Está acordada? —perguntou quando sua amiga atendeu ao telefone.

    —Não, estou dormindo e tenho um sonho muito estranho em que conversamos pelo telefone.

    —Eu já vi Ander Izarra. —disse Eva sem responder à ironia de sua amiga, pois já estava mais do que acostumada.

    —Ander quem? —disse a outra.

    —O filho da senhora Grimaldos.

    —Então, Eva, foca aqui. Você me ligou ontem para contar pela enésima vez o quanto insuportável era a bruxa e para que eu dissesse algo para que você pudesse ficar. Mas até agora não havia mencionado nenhum Ander. É algum apelido? Deve ser holandês, no mínimo.

    —É um nome de origem vasca e enteado de Carmen, tem certeza de que não mencionei seu nome? Cris, você pode ser bastante distraída...

    Se conheciam desde a escola. Foram juntas ao colégio e também deixaram juntas a casa de seus respectivos pais, Cris para estudar economia e Eva enfermaria. Os pais de Cris se viraram bem e pagaram o aluguel de um apartamento perto da universidade e ali viveram juntas enquanto estudavam. Nesse tempo conheceram Oscar, namorado de Cris, e durante um ano foram três pessoas, até que Eva conseguiu trabalho em um consultório médico no centro e procurou um apartamento para morar sozinha.

    —Não, você não me falou dele. —insistiu Cris.

    —Que seja. Bom, pois Ander é o enteado de Carmen —disse Eva brincando com uma mecha de seus cabelos e dançando com a ponta dos dedos dos pés. —Seu pai era dono da cadeia Al Hotel & Resorts. Al significa Asier Izarra...

    —Caramba! —exclamou Cris mais interessada. —Poderemos ganhar algum desconto se nos hospedarmos em um dos hotéis? Caramba, Eva, você sabe a vontade que tenho de ir com você a Riviera Maya!

    —Não falei com ela sobre isso. Foco! Carmen não se dá bem com seu enteado, não há uma foto dele em todo o apartamento.

    —É filho da outra mulher do marido, não?

    —Sim, por isso é enteado. —disse Eva movendo a cabeça. Às vezes Cris conseguia ser irritante. —É filho da mulher que Asier Izarra abandonou para se casar com Carmen. Então com certeza elas —compartilharam—o mesmo homem durante algum tempo.

    —Um canalha da cabeça aos pés. —disse Cris mastigando alguma coisa.

    —Você está comendo batatas? —perguntou Eva incrédula.

    —Fiquei com fome. Continua, anda.

    —Bom, parece que a mulher de Asier era mais jovem do que ele, muito mais jovem, enquanto Carmen era mais velha.

    —Quanto mais velha?

    —Segundo li na internet, quando de casaram ele tinha quarenta e dois e ela quarenta e cinco.

    —E a outra?

    —Trinta e cinco. —Eva esticou as pernas e olhou para as unhas dos pés. Precisa voltar a pintá-las.

    —Isso sim que é estranho, o normal geralmente é o contrário, que deixasse a bruxa por uma mulher mais jovem. —Cris olhou para o fundo do saco de batatas vazio e se levantou para ir à cozinha buscar outra.

    —Não sei o que aconteceu com a senhora Grimaldos e o mimado de seu enteado, mas a questão é que ela sempre encontra um motivo para lhe criticar. —seguiu Eva.

    —Olha só —disse Cris tentando abrir o saco sem soltar o celular. —, a mãe deve ter feito todo o possível para que o garoto lhe arruinasse a vida sempre que estivesse perto. E com certeza seu pai deixou mais prêmios para ele do que para ela quando terminou.

    —Não sei, ela tem muito dinheiro. E na entrevista que li de Ander em uma revista diz que são sócios igualitários em todos os negócios de seu pai.

    —E não perguntaram sobre a relação com a madrasta?

    —Sim, mas ele desviou e acabou falando do novo hotel que havia inaugurado na Toscana.

    —Deus, você tem que conseguir esses descontos! Percebe como seria incrível?

    —Não sei como. —respondeu. —Não é como se Carmen fosse muito amigável comigo. Como vou pedir algo...

    —Todo mundo sempre se deu bem com você. É simpática e conquista a todos, não é como eu... —disse Cris sem ironia. O que acontece é que você se comporta como um ratinho assustado e ela nota se aproveita.

    —Eu preciso do dinheiro, Cris.

    —Já sei. É que, quem mais pensa estudar enfermaria nos dias de hoje?

    —Nem todos podem ser economistas. —disse Eva com sarcasmo —não há dinheiro suficiente para contar. Pelo menos nos bolsos das pessoas simples.

    —Haha. —respondeu Cris. —Bom, vamos deixar de conversa porque amanhã levanto às seis.

    —Boa noite. Mande lembranças a Oscar.

    —Ele está mandando um beijo. —disse Cris.

    —No domingo tem cinema, Agulhas —escutou a voz de Oscar.

    —Diga a ele que tudo bem, mas que não me chame mais de agulhas. —disse Eva sorrindo.

    —Amanhã ligue um pouco mais cedo, está bem? —disse Cris.

    Desde aquela conversa havia se passado três semanas e ainda era difícil para Eva conseguir colocar o sono em dia naquela casa. A única companhia agradável de quem desfrutava era de Lisa. A mulher sentia ternura por Eva. Não tinha filhos, nunca havia se casado e ter uma pessoa jovem e sem radicais mudanças de humor lhe resultava agradável, para variar.

    Eva se preocupava com o tipo de vida que levava a senhora Grimaldos. Nunca saía de casa. Com oitenta anos precisava caminhar por pelo menos uma hora ao dia. Sua rotina se limitava a deslocar-se do quarto para a sala, da sala para a sala de jantar e da sala de jantar para o quarto, indo ao banheiro de vez em quando. Comia como um passarinho, como havia dito Lisa, e não falava com ninguém, além delas duas. Era muito difícil para ela manter uma conversa sobre qualquer tema sem discutir. Eva havia tentado muitas vezes, mas não conseguia atravessar a casca grossa da anciã.

    Quando já estava há um mês e meio naquela casa aconteceu algo que alterou a rotina das três mulheres. Durante todo o dia a jovem havia observado com preocupação o rosto da senhora Grimaldos. Orelhas muito inchadas, cara vermelha, olhos fundos. Antes de jantar foi ao quarto buscar o aparelho de pressão e, não dando ouvidos às advertências da anciã, subiu a manga de seu vestido, colocou a braçadeira sobre o estetoscópio e começou a medir a pressão. Girou a válvula para soltar o ar e atentamente escutou as batidas do coração. Quando soltou o velcro da braçadeira a cara de Eva era de preocupação.

    —Precisamos chamar o médico. —disse caminhando até o telefone antigo, forrado em preto, que havia sobre a mesinha.

    —Não se atreva a fazer isso! —respondeu a anciã. —Essas não são horas de incomodar a ninguém.

    —Escute bem, senhora Grimaldos, a senhora vai ficar caladinha e tranqüila enquanto eu chamo o doutor Campos, porque se sua pressão sobe mais um ponto eu vou precisar é chamar uma ambulância e a senhora terá de passar a noite em um hospital.

    A anciã não pode disfarçar a surpresa por aquele arroubo de caráter. Fechou a boca e se reclinou

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