Saber, Poder e Resistência em Discursos Sobre o Professor no Brasil
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Saber, Poder e Resistência em Discursos Sobre o Professor no Brasil - Odália Bispo de Souza e Silva
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM E LITERATURA
Ao Arthur, ao Claudio e aos meus pais, afetuosamente.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Prof.ª Dr.a Kátia Menezes de Sousa, por me orientar no processo de produção deste estudo e pela forma tão generosa com que escreveu o prefácio.
Aos alunos e colegas de profissão com quem tive contato durante o período de gestação desta obra, pois, ao me permitirem verbalizar as inquietações de pesquisa, ajudaram-me a encontrar caminhos e a fortalecer/ressignificar minhas convicções.
Ao Criador do Universo, pela vida.
APRESENTAÇÃO
Quanto ao motivo que me impulsionou foi muito simples. Para alguns, espero, esse motivo poderá ser suficiente por ele mesmo. É a curiosidade – em todo caso, a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou refletir.
M. FOUCAULT, em O uso dos prazeres
Este trabalho, que se ocupa de uma análise da relação entre saber, poder e resistência em processos discursivos de objetivação/subjetivação do professor, é resultante de pesquisa de doutoramento finalizada em novembro de 2016. Como quem promove um ato arqueológico, a atividade de análise dos enunciados é, nesse caso, orientada por um olhar sempre desconfiado das aparências, das verdades cristalizadas, dos discursos de ligeira adesão. Não se admite a normalização, por um lado, de dizeres que sustentam a ideia de que há uma crise no ensino e que o grande responsável por isso é o professor, que não possui formação, não sabe lidar com a tecnologia nem se veste de forma adequada; e, por outro lado, de enunciados que colocam o professor num pedestal intocável, fazendo dele o senhor do saber. Teremos alcançado nossos objetivos se conseguirmos tornar minimamente estranho aquilo que comumente é tomado como familiar, pois acreditamos na importância de se pensar na constituição do sujeito professor e na necessidade de se interrogar acerca dos jogos de relações que envolvem os discursos produzidos acerca dele e por ele mesmo.
Visto dessa forma, a obra apresenta uma análise de práticas discursivas e não discursivas que, ao mesmo tempo em que se ligam, de algum modo, às determinações históricas, as constituem e (re)distribuem/(re)organizam os saberes que objetivam e subjetivam o sujeito professor no Brasil. Em função disso, o estudo analisa o modo como as relações de poder e saber, que funcionam como dispositivos historicamente constituídos, comparecem nos mecanismos de objetivação e de subjetivação do professor e levanta aspectos de discursos proferidos pelo professor, procurando reconhecer em que medida há um processo de (des)identificação com formas de objetivá-lo e, em que proporção, é possível perceber possibilidades de resistência.
A construção de uma identidade docente caracteriza-se como uma temática que, a nosso ver, se constituiu/constitui, há bastante tempo, numa arena de reivindicações, contestações e que suscita controvérsias e discussões incessantes. A partir, especialmente, da abertura da escola com a universalização do ensino, parece haver uma tentativa de (re)definir um perfil ideal para o trabalhador da educação, competências e habilidades para nortear o seu comportamento profissional etc. Consequentemente, jogos de verdade são colocados em funcionamento para instituir e delimitar uma identidade profissional docente por meio de processos que o objetivam e o subjetivam. Visto dessa forma, entendemos que há uma necessidade de se problematizar os discursos, especificamente aqueles que, por se tornarem tão repetidamente corriqueiros, acabam sendo tomados como se fossem naturalmente constituídos.
Nosso modo de operar a descrição dos dados selecionados para análise encontra-se intrinsecamente relacionado à tese de que os discursos sobre o sujeito professor não se desvinculam das práticas sociais e históricas que, em conformidade com as circunstâncias de sua emergência, colocam em evidência um conjunto de saberes e delimitam uma escala valorativa, a qual estabelece, nos processos de objetivação e de subjetivação desse profissional, os elementos que são acionados para instituir o que (des)qualifica seu modo de ser e de agir. Assim, não havendo possibilidade de escapar aos inúmeros atravessamentos de dispositivos vários na constituição de um dispositivo da docência, certamente, torna-se inviável atribuir uma identidade ao professor. Em vez de pensar na existência de um indivíduo que executa tarefas diversas em função dos saberes próprios a sua profissionalidade, propomos que não se perca de vista a constituição de um sujeito, o sujeito docente, em decorrência dos saberes que comparecem e que delineiam formas de objetivação. A isso não corresponde dizer que, em processos discursivos de subjetivação, especialmente quando fala de si, não seja possível encontrar um professor que resiste, que parece negar, contestar certos mecanismos de objetivação.
Goiânia, outubro de 2017.
Odália Bispo de Souza e Silva
PREFÁCIO
SER PROFESSORA: UMA PAIXÃO
Trata-se do interesse que tenho, em relação ao discurso, não tanto pela estrutura linguística que torna possível tal ou tal série de enunciações, mas pelo fato de que vivemos em um mundo em que houve coisas ditas. Essas coisas ditas, em sua própria realidade de coisas ditas, não são, como às vezes se tende muito a pensar, uma espécie de vento que passa sem deixar traços, mas, na realidade, por menores que tenham sido esses traços, elas subsistem, e nós vivemos em um mundo que é tudo tecido, entrelaçado pelo discurso, ou seja, enunciados que foram efetivamente pronunciados, coisas que foram ditas, afirmações, interrogações, discussões etc., que se sucederam. Desse ponto de vista, não se pode dissociar o mundo histórico em que vivemos de todos os elementos discursivos que habitaram esse mundo e ainda o habitam.¹
Michel Foucault, de uma paixão pelos discursos, esteve às voltas, em suas empreitadas investigativas, como ele mesmo afirma², com a busca por produzir uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura, tratando de três modos de objetivação que transformam os humanos em sujeitos: a objetivação do sujeito produtivo pelo fato de viver, falar e trabalhar; a objetivação nas práticas divisoras e as separações operadas na sociedade em nome da loucura, da doença, da delinquência e seus efeitos sobre a constituição de um sujeito pensante e normal; e a objetivação que implanta e transforma o sujeito nas relações consigo mesmo. Em seu curso de 1981, Subjetividade e verdade
, Foucault³ informa que seu projeto está na intersecção de dois temas já estudados, a história da subjetividade e a análise das formas da governamentalidade, sob o aspecto do governo de si por si em sua articulação com as relações com outrem (como se vê na pedagogia, nos conselhos de conduta, na direção espiritual, na prescrição de modelos de vida etc.)
.
Foram esses projetos desenvolvidos por Foucault que movimentaram e desestabilizaram as questões sobre a escola, o ensino e, particularmente, sobre o sujeito professor que já vinham, por suas linhas conflituosas, constituindo-se como a paixão de Odália Bispo de Souza e Silva, professora de Língua Portuguesa e estudiosa dos discursos. Como toda paixão, não há lugar para a calmaria, para as alternativas certeiras ou soluções fáceis, quando se trata de perscrutar os elementos discursivos que tecem a história das práticas e das formas de constituição dos sujeitos. E não foi fácil e nem tranquilo para Silva percorrer o labirinto foucaultiano e chegar ao trabalho que nos apresenta neste livro: Saber, poder e resistência em discursos sobre o professor no Brasil.
Mas, a paixão a empurrava cada vez mais para o interior do labirinto que, em seus pontos cegos, obrigava a pesquisadora a se debater com a verdade que encontrava e temer aquilo que seu olhar ainda não alcançava, mas a atraía e apaixonava. Não podia mais fugir dos perigos da história do mundo revelados pelas relações discursivas e precisava experimentar o inimaginável mostrado por Foucault⁴ em muitos de seus escritos, quando falava dos objetivos de suas pesquisas. A entrevista de 1983 é um exemplo:
Veja bem, o que eu quero fazer não é a história das soluções, e esta é a razão pela qual eu não aceito a palavra ‘alternativa’. Eu gostaria de fazer a genealogia dos problemas, das problematizações. Minha opinião é que nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso, o que não significa exatamente o mesmo que ruim. Se tudo é perigoso, então temos sempre algo a fazer. Portanto, minha posição não conduz à apatia, mas ao hiperativismo pessimista.
A problematização. Essa era a tarefa que ia impondo-se à pesquisadora, quando diante dos dados coletados, e que digladiava com sua ânsia de chegar a uma solução que pudesse ser proposta como verdade para os problemas encontrados. A problematização dos discursos a encaminhava para as relações históricas que sustentavam cada enunciado, mostrando que diferentes soluções puderam e podem ser construídas em épocas e lugares distintos e que as soluções se tornam, em algum momento, novos problemas que nos são colocados. Por isso, a autora já informa, na introdução do livro, a sua expectativa em poder ampliar as possibilidades de percepção do sujeito professor como objeto de pesquisa, posto que cada enunciado analisado seria tomado na sua condição de acontecimento discursivo, como uma irrupção de uma nova regularidade discursiva. Assim, em vez de encontrar culpados como forma de apontar soluções, a pesquisadora se viu diante de um fazer metodológico estranho, imposto pela busca das regularidades enunciativas, dos discursos como acontecimentos e das regras que autorizaram sua emergência, permanência ou desaparecimento; um fazer que a forçava a esmiuçar várias práticas discursivas produzidas pelos saberes para fazer emergir daí os enunciados que dizem a verdade sobre o sujeito professor no Brasil, interpelando-o como sujeito e definindo suas práticas cotidianas, seus desejos, suas alegrias e frustrações. Percorrendo esse emaranhado de linhas de enunciados é que Odália Silva vai poder afirmar que terá cumprido seu objetivo na pesquisa se conseguir tornar estranho aquilo que é tomado como familiar.
A definição de seus objetivos já indicavam o caminho tortuoso que deveria trilhar para explicitar práticas discursivas historicamente determinadas e constituídas, organizadas e distribuídas por saberes que objetivam o sujeito professor e, ao mesmo tempo, funcionam nos processos de subjetivação desse professor brasileiro.
Este livro surge como resultado dessa aventura investigativa e muito me honra, como orientadora do doutoramento da autora, mas, por ser cúmplice de alguma forma, também me acena como o perigoso que levanta problemas que exigem um enfrentamento político e ético como forma de resistência aos saberes e poderes já cristalizados como verdades sobre o sujeito professor.
Resumidamente, trata-se de um livro que, num primeiro momento, comprova a inescapável investigação da linguagem e do discurso nas descrições e análises dos acontecimentos, para mostrar que os discursos são mais do que objetos de estudo, são constitutivos dos sujeitos e de suas lutas. A análise dos acontecimentos enunciativos permeia todo o livro, a partir da parte 2, fazendo aparecer os saberes que, materializados no efetivamente dito, irão objetivar o sujeito professor em nosso tempo, ora pelo simples fato de este viver, falar e trabalhar, ora como resultado de práticas divisoras, que separam o bom professor do mau professor, e ora pela forma como o próprio professor se reconhece como esse sujeito e se sujeita ou resiste, buscando outras formas de reconhecimento desse lugar sujeito professor.
Um livro como margens povoadas de outros enunciados
– como definiu Foucault o enunciado em sua A arqueologia do saber –, enunciados convergentes, divergentes, cotidianos, científicos, contraditórios, não importa, todos organizando a trama (ou o drama) da paixão que é ser professor(a) para Odália Bispo de Souza e Silva e para os leitores que aceitarem seguir os rastros deixados pelas coisas ditas. São rastros que levam à intrincada rede dos discursos que constroem esse sujeito que almeja, como resultado de suas lutas de resistência, construir a história presente em que o professor possa deixar novos rastros com seus ditos de como é bom ser professor(a), como é perigoso!
Professora Doutora Kátia Menezes de Sousa
Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística – Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Sobre o corpus
Sobre a escolha teórica
Sobre os capítulos do livro
CAPÍTULO 1
SOBRE ANALISAR DISCURSOS: APORTES, RUPTURAS E CONTINUIDADES
1.1. Por uma linguística do discurso
1.1.1. O acontecimento enunciativo
1.1.2. As regularidades enunciativas: raridade e acúmulo
1.1.3. Por que analisar discursos?
1.2. Uma metodologia foucaultiana
1.2.1. Descontinuidade e singularidade
1.2.2. Memória e arquivo
1.2.3. O dispositivo como prática de subjetivação
1.2.4. Um olhar para as práticas de nosso tempo
CAPÍTULO 2
DA IDENTIDADE AOS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO
2.1. Da Identidade
2.2. Do Sujeito
2.2.1. Posição-sujeito
2.2.2. Saber e poder nos processos de constituição do sujeito e da verdade
2.3. Objetivação e subjetivação
2.3.1. Saberes docentes: suporte dos processos de objetivação e de subjetivação
2.3.2. Professor: aquele que professa um saber
CAPÍTULO 3
DOS REQUISITOS PARA O EXERCÍCIO DOCENTE – PARTE 1:
ORIENTAR A CONDUTA ÉTICO-POLÍTICA DOS ALUNOS
3.1. Professor: o bom pastor 109
3.1.1. O professor conduz pela disciplina e pelo exemplo
3.2. O corpo disciplinado do professor: um exemplo a ser seguido
3.3. O professor aponta o caminho da felicidade
3.4. Professor: o sábio que orienta condutas
3.5. O professor possui os saberes que (en)formam uma nação
3.6. O professor falha no processo de condução de vidas: a defesa da
militarização das escolas
CAPÍTULO 4
DOS REQUISITOS PARA O EXERCÍCIO DOCENTE – PARTE 2: CONDUZIR
OS CONHECIMENTOS E A PROFISSIONALIZAÇÃO DOS ALUNOS
4.1. O professor: atualização do saber e profissionalização
4.1.1. O saber institucionalizado: da reciclagem à formação continuada
4.1.2. O saber produtivo: da escola para o desenvolvimento da pátria
4.1.3. O saber fundamental para a formação de trabalhadores
4.2. A resistência: Há espaço para a liberdade?
4.2.1. O sujeito e as formas de resistência
4.2.2. O professor quer ser reconhecido como profissional
4.2.3. O professor assume o risco ao se distanciar do modelo tradicional
4.2.4. A dissidência como indicativo da resistência
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Este estudo, sob a base teórico-metodológica da análise do discurso apoiada nos trabalhos de Michel Foucault, propõe uma investigação acerca das condições de emergência e de disseminação de enunciados sobre o professor no Brasil. Partimos do princípio de que existem relações complexas que sustentam o entrecruzamento entre linguagem, sociedade e história nos processos discursivos de objetivação e de subjetivação desse sujeito. Por isso a possibilidade de descrição desses enunciados vincula-se ao reconhecimento de que 1. as condições de emergência dos enunciados são determinadas por fatores de ordem histórica e pelas funções que exercem no interior de práticas, discursivas e não discursivas; 2. em cada época, conforme as sociedades e os sujeitos que as constituem, os ditos sobre o professor se (re)configuram.
A noção de discurso com a qual operamos recobre a região situada entre o linguístico e o histórico, considerando-se que, conforme propõe Michel Foucault, em diversos de seus textos, nenhum mecanismo de enunciação funciona desvinculado das relações de saber e de poder que o envolvem. Existem peculiaridades no modo como cada enunciado transporta saberes e produz efeitos de sentido, tendo em vista que as diferentes condições de emergência ganham significados na historicidade do dizer, o que permite pensar que sujeitos e sentidos podem se movimentar na história. Dessa forma, de um lado, os enunciados são tratados na sua singularidade e dispersão, tendo em vista sua raridade, sua inerente pobreza
, já que, mediante a infinitude de possibilidades enunciativas do ser da linguagem, poucas coisas são realmente ditas; de outro lado, essa dispersão também afeta o sujeito que, ao enunciar de lugares distintos, posiciona-se de modos variados, em conformidade com os interditos do espaço de onde emerge seu discurso.
Compreendemos, pois, que, ao submetermos determinados enunciados acerca do sujeito professor a uma análise fundamentada em teorias do discurso, estaremos ampliando as possibilidades de percepção deste nosso objeto de pesquisa. É por esse motivo que cada enunciado selecionado para esta pesquisa será tomado na sua condição de acontecimento discursivo – um termo bastante caro aos estudos de Foucault –, isto é, como uma irrupção de uma nova regularidade discursiva. Consideraremos que existe um conjunto de regras que compõe a condição para que um discurso possa aparecer, caracterizando-se como legítimo, autorizado institucionalmente e portador de verdades. Nossa busca consiste em, na esteira de Michel Foucault, examinar o conjunto de condições e atravessamentos que determinam a aparição de certos enunciados, sua estabilização, seu desaparecimento, seu caráter de verdade, surgindo em um dado momento e em uma sociedade específica, ou seja, examinar o jogo das regras que determinam, em uma cultura, a aparição e o desaparecimento dos enunciados, sua permanência e sua supressão, sua existência paradoxal de acontecimento
⁵.
Tais elementos condicionam a existência, a manutenção, a modificação e o desaparecimento de determinados discursos, daí a importância de se colocar em evidência as relações discursivas que se instauram no momento mesmo da sua emergência. Essas relações estão, conforme Foucault⁶, "de alguma maneira, no limite do discurso: oferecem-lhe objetos de que ele pode falar, ou antes, determinam o feixe de relações que o discurso