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Espólios para uma poética: Lusitanias modernistas em Mário de Andrade
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Espólios para uma poética: Lusitanias modernistas em Mário de Andrade
E-book137 páginas1 hora

Espólios para uma poética: Lusitanias modernistas em Mário de Andrade

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Sobre este e-book

Este livro comprova que por detrás do experimento modernista existe a legitimação do português como língua de prestígio, rememorada da época de expansão do longo século XVI, - língua essa que não vem sozinha em seu destino de desbravar a continentalidade brasileira - ela recupera e acende o veio cultural lusitano que vai se somar ao conjunto das outras tradições da multiculturalidade brasileira.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de jun. de 2016
ISBN9788546204106
Espólios para uma poética: Lusitanias modernistas em Mário de Andrade

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    Espólios para uma poética - Benilton Lobato Cruz

    páginas.

    Capítulo 1: Lusitanias

    Em Amar, verbo intransitivo e no Macunaíma, temos personagens envolvidos com a experiência de transitar não só por culturas, mas longos espaços geográficos, como é o caso da professora alemã, contratada para ensinar idiomas estrangeiros e música àquelas crianças da mansão de Higienópolis, a Fräulein Elza. Já para o índio-herói, trata-se de um caso predominantemente de migração interna, por circunstâncias sentimentais, já que o tapanhumas tenta recuperar um valioso talismã da rainha das Amazonas, a sua inesquecível Ci, mãe do mato. E em suas andanças, ele, entre tantas outras peripécias, recolhe as bocagens, as palavras-feias vindas de vários países do mundo.

    Os dois são hábeis observadores da prática linguística, no ensino, por parte da imigrante tedesca, e o gosto pela pesquisa de caráter informal pelo lado do herói sem-caráter. Outro fato a marcar os dois personagens é o culto da tradição: a alemã reitera o amor como verdadeiro fundamento da vida a partir de lições extraídas da arte, essa ainda vista como uma pedagogia a formar humanidade, − mesmo que em plena efervescência das vanguardas. Fräulein acredita que a união de estética e amor podem servir à educação do verdadeiro lar. E, Macunaíma, aquele que Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos (Mc, op. cit., p. 18), dançava impreterivelmente todo ritual de sua tribo, na verdade, desponta como um guardião dos valores espirituais, sempre disposto a acumular e a questionar valores socialmente transmissíveis.

    Há uma exposição do falar brasileiro em sua potencialidade configuradora de povo e de uma geografia cujo mapa centraliza-se na cultura, nos dramas humanos e nas rotas em conflito. Estamos diante de um personagem que sai do alto de sua Roraima, de um gigantesco monte verde, e expõe a errância de si mesmo entre a mítica Amazônia e a industrializada São Paulo. A preceptora alemã, também migrante, é movida pelo drama social e econômico da beligerante e inflacionada Alemanha. E, não menos errante, a estrangeira aporta no coração da burguesia paulistana, em uma mansão no bairro de Higienópolis, urbanização recém-criada para os ricos isolarem-se da violência, dos vícios e das endemias urbanas, algo pertinente à história de São Paulo, uma das cidades de maior crescimento no início do século XX.

    O amor, no pequeno quadro idílico de Mário de Andrade, entre uma estrangeira culta, e um jovem, aluado, Carlos Sousa Costa revela a faceta do terror da riqueza, por via de uma linguagem a sugerir a opressão do pai, a futilidade da mãe, a exploração dos criados, e a violência das crianças nas brincadeiras de família, a de decepar flores. Por detrás da mansão que oprime pelo dinheiro há o estereótipo do português femeeiro, no perfil do rico industrial e cafeicultor Sousa Costa, assim como em Macunaíma aparece o mulherengo infrene, aquele que, sem nenhum caráter, carrega consigo o desejo como instinto primordial acima de tudo.

    Elza, a imigrante, viaja a distância da Alemanha ao Brasil, com a missão de ensinar o amor e acaba por se apaixonar por um menino. Por sua vez, Macunaíma deixa sua tribo no Amazonas e vai buscar na São Paulo não a sua riqueza, mas a esperança de rever Ci, a Mãe do Mato, por via daquele talismã sagrado, em posse do Gigante Comedor de Gente. Esse trajeto delineia não um espaço da reconquista, mas o lugar do vasto país-continente, tema já questionado por Paulo Prado (1997), em seu Retrato do Brasil. Nosso país era lugar de vazios, e era fundamental serem percorridos e preenchidos. Prado também alertava para o risco, pois foi assim que tudo começou, exatamente daquele sonho português da riqueza: a longínqua Índia foi também motivo da decadência de um Império.

    O distante desenha, portanto, uma Geografia no Modernismo de Mário de Andrade. É da forma de lidar com o espaço que se define a língua e o perfil dos protagonistas, tocados pelo mesmo sentimento da época: a melancolia, cuja essência tem a ver com fatores de ordem social, religiosa e literária. Ambos são heróis infelizes, porém obcecados: Elza pelo amor relacionado à arte como fomento de humanidade e Macunaíma pela Amazona-icamiaba, no fundo duas infaustas paixões que dizem de sentimentos difíceis de serem harmonizados. Ambos os heróis nasceram para transitar, correr mundos, abrir caminhos e saberes, saborear novas fórmulas linguísticas, e sobretudo uma humanidade em seu processo de formação.

    Elza e Macunaíma, assim, por serem personagens andarilhos da busca que modela e desfaz identidades, estão sob alguma forma da resiliência, árduo desafio, fruto da imigração. A alemã, por mais que carregue consigo o retrato barroco de exílio, é a personagem que divide o seu ostracismo com mais um estrangeiro, o japonês Tanaka, copeiro da Mansão. O autor, então, preserva um teor humano derivado do Unanimismo, estética recorrente no início das obras de Mário de Andrade, e mais a luta social como tema visível no Expressionismo. Elza passou por Curitiba, Campinas, São Paulo; Macunaíma, por seu turno, parte de Roraima à Cidade da Garoa, contudo transita pela Venezuela, pelo Nordeste, pela Argentina, e retorna à sua originária Amazônia, não para ficar, mas para ser a Ursa Maior, a estrela visível da linha do Equador para cima. O destino do herói é não se fixar como pedra. É se transformar em algo que lembre a intensidade do desejo: a estrela e seu incessante tremelicar.

    Porém, antes do estrangeiro a se adaptar, a língua portuguesa escrita e falada no Brasil também sofreu os seus dramas. Na geografia do idioma, não é uma ideia de unidade o que conta, e sim a forma de como se dá a adaptação da língua portuguesa no pais. Os personagens andradeanos escondem vestígios da presença de uma língua rica e variada, gramaticalmente complexa, e carente de seu próprio reconhecimento como expressividade espontânea de seu povo. É assim que o português brasileiro é uma realidade que pode ser constatada na obra de Mário de Andrade. Não é uma unidade linguística, mas um conjunto cuja finalidade é a expressão não só desse mesmo idioma como o de sua cultura. Essa, em especial, é entendida como manifestação humana, compartilhada da experiência espiritual, processo coletivo de conhecimento a integrar o ser humano em seu ambiente natural sob uma ótica de formação eminentemente humana.

    O conceito abrange toda crença ou conhecimento produzidos e empregados socialmente por um povo, evidenciando a consciência coletiva e a vida cotidiana, que no caso brasileiro evidencia a diversidade. A cultura é, então, o processo unificador das vozes que compõe uma comunidade ou uma sociedade. E de acordo com Bosi (1993), a palavra deriva do verbo latino colo, significando eu ocupo a terra. Dessa forma, abre-se, no bojo dessa etimologia, um sentido temporal, uma dinâmica prospectiva, pois tem a ver com o futuro desse verbo, como o que se vai trabalhar ou o que se quer cultivar", não se limitando apenas à ideia de agricultura, senão com a transmissão de valores e conhecimentos para as próximas gerações.

    Entretanto, no significado da falta de definição do que seria o nacional, o Brasil definia-se como o grande livro, ou a grande fronteira, onde o autor, aquele que agrega fontes, é quem investiga essas vozes do como se diz, e em diferentes regiões do país, as reúne como se a língua em ação fosse a verdadeira protagonista desse processo. A literatura será, portanto, esse retrato nada fixo, categoria instável, aberta ao conjunto, basicamente, extraído do linguajar do cotidiano do qual uma outra moldura se revela. Ela vem de fora também e fala português. A língua que se escreve é, então, um caleidoscópio fechando-se para o centro e pronto novamente para se abrir para onde aponta a história da língua portuguesa.

    O processo de consciência nacional do escritor tem a ver com a eclosão dos acontecimentos marcados pela dualidade: defesa de valores brasileiros diante dos estrangeirismos das vanguardas históricas, entre a Primeira e a Segunda Guerras mundiais. Era a luta por uma autonomia o que significava desenvolver uma equação satisfatória ao contexto de autoafirmação e de identidade. E, nesse momento, toda uma dicotomia de interno e externo gerava a tensão que se amplia a partir das críticas de Mário de Andrade a essas mesmas tendências inovadoras, exigindo a elas equilíbrio, uma característica reguladora do Classicismo.

    Nesse embate, aparecia, assim, no escritor paulistano o interesse de estudar elementos formadores da estética barroca, o estilo nacional por excelência tanto para o Brasil quanto para Portugal, na apreciação de Oliveira (2013). Nesse contexto, o escritor avança sua pesquisa sobre a complexa obra do mineiro Aleijadinho (1920) e mais tarde sobre o padre paulista Jesuíno do Monte Carmelo. E sempre investindo na pesquisa, na música e na pintura de artistas do interior do país, nos exemplos de […] um nascido na antiga São Carlos, outro na própria vila, Carlos Gomes e Almeida Júnior (Andrade, 2012, p. 47).

    Os agentes culturais estão, em vista disso, às margens, e tem em comum o ostracismo e a distância por princípio. E do centro, da cidade de São Paulo, partia então o pesquisador ao interiorano mundo da brasilidade a ser descoberta, exatamente como de Lisboa zarpavam as caravelas de Cabral em busca das terras da riqueza. Porém, a primeira paragem foi para achar lenha e um porto de aguada, o precioso líquido, água doce para a longa jornada, como explica Coutinho (2001, p. 54), o motivo do achamento do Brasil. Desde então, idioma empregado por Caminha há de registrar o percurso percorrido por quem faz uso da sua própria literatura como uma forma de conhecer os instrumentos civilizacionais do vasto país.

    Por essa visão, o autor coloca ao centro, através de seus protagonistas, personagens a operar o encontro e a diversidade. O caso da Fräulein Elza muito ainda apegada a um conceito do amor cristão, verticalizando um Deus onipotente a amar os homens, criaturas pecadoras, por via de um

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