Saberes e Sabores: Das Narrativas Literárias Africanas aos Leitores Jovens e Adultos
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Sobre este e-book
A EJA em âmbito geral vem enfrentando um contínuo fluxo de redução de matrículas, além de outras desvantagens ocasionadas pela ausência de políticas públicas voltadas a essa população, a qual, devido à ineficácia na educação, é muitas vezes marginalizada e até mesmo excluída do sistema escolar.
Esta obra mostra um pouco da realidade de sujeitos estudantes dessa modalidade de ensino, e contribui sobremaneira com a ideia da práxis, do ser ontocriativo que se revela no decorrer do tempo. Por isso, vemos aqui os papéis de professor/acadêmico transformando sua sala de aula em um laboratório de observação, análise e estudo, refletindo e intervindo em sua própria ação cotidiana, em que o pesquisador no exercício da docência apropria-se dos saberes científicos e toma sua sala como objeto de pesquisa, desenvolvendo o ensino a partir da interligação entre teoria e prática.
Por meio de uma coletânea de contos literários de escritores africanos de língua portuguesa, especificamente de Angola e Moçambique, consolidam-se com os estudantes reflexões sobre as temáticas presentes nos textos e promovem-se questões sobre diversidade, identidades múltiplas, multiculturalismo e valorização da mulher, entre outros assuntos que, sem dúvidas, conclamam discussões tão necessárias quanto urgentes no seio educacional.
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Saberes e Sabores - Célia Ferreira de Sousa
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM E LITERATURA
Para Allys, Thiago e Raimundo, amores eternos.
APRESENTAÇÃO
Eu queria escrever-te uma carta...
Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não sabes ler
e eu - Oh! Desespero - não sei escrever também!
(Carta de um contratado – António Jacinto)
O poeta de Angola faz da alfabetização negada aos filhos da Mãe África, subjugados pelo poder colonial leitmotiv de sua arte, de um eu lírico que não consegue completar sua mensagem, pois lhe faltam, a ele e sua amada, a escrita e a leitura. Exatamente as mesmas faculdades que permitem a mim e a você estabelecermos esse momento de Apresentação
.
Preocupada com essa capacidade de completude da mensagem literária é que a pesquisa da professora Célia Ferreira de Sousa, que ora se materializa em livro, não quer ser mais uma pesquisa e nem a que faltava ou mais ainda ser aquela que trará as soluções para tudo. Não!
Este trabalho, descrito pela autora como uma pesquisa e intervenção, procurou estimular a leitura, contribuindo para a formação de leitores; só isso justificaria a importância do texto. Usarei, por diversas vezes, expressões, frases inteiras do próprio texto, pois a função de apresentar esta obra é justamente fazer com que o leitor delicie-se como eu me deleito agora, e nada mais interessante que antever o que nos aguardam nas próximas páginas.
Como, por exemplo, o momento em que a autora questiona-se a certa altura do texto: quando se trata do ensino de leitura na escola, são muitas as prerrogativas que surgem, inclusive relacionadas ao encaminhamento de leituras na escola: ler o quê? Quais livros? Como ler? Com quais finalidades? Quem nunca, estando na condição de professor, fez para si ou em alguma reunião docente os mesmos questionamentos?
A pesquisa de Sousa toca no concreto, que é a sala de aula. Ela intenta trocar o curativo de uma chaga exposta na educação, que, por vezes, tentam ignorar, trabalhar leitura na escola não é uma tarefa fácil. Continua abrindo mais a ferida, buscando suas causas, há ainda muitas fragilidades a serem superadas, fragilidades essas que são vinculadas à formação dos professores, à ineficiência de exemplares bibliográficos na escola pública e até mesmo à capacidade de definir ou de selecionar o que e como se trabalhar com os estudantes no campo dos estudos literários. A obra, dessa forma, é uma importante verdade indigesta para muitos sujeitos do processo educacional.
A professora Célia Ferreira escreve uma obra que traz questionamentos, mas também que aponta caminhos como o investimento na formação continuada dos professores que deve ser resultado do anseio coletivo de um grupo de docentes e alunos, interligado diretamente com a prática.
Acima de todas as proposições, metodologias, questionamentos e direções que apontam o texto, algo não pode ser deixado de lado: foi uma atividade que restituiu e criou pela primeira vez a autonomia de muitos dos sujeitos envolvidos. Isso marca a vida das pessoas. Como a própria autora cita Paulo Freire (1996, p. 96), nenhum professor passa pelo aluno sem deixar sua marca
. Certamente, Célia, você imprimiu sua marca nesses alunos.
Ler seu texto me fez viajar lá para as bandas do Araguaia. Contemplar esse rio imenso. Sentir o cheiro das chuvas no telhado do nosso campus em Confresa, das ruas empoeiradas indo e vindo pela cidade. Das belas noites culturais em que já fervilhavam em você as ideias literárias. Fez também retirar do baú da memória suas atividades docentes registradas no seu caderno de campo. Quanto sabor tem seu livro... Quanto conhecimento! Quanta maturidade!
Certa vez eu disse que desde o dia que entrei no Araguaia ele não saiu de mim. Dentro do meu peito cabe tudo aquilo que aí vivi. De Casaldáliga, hoje eu entendo o poema Eu e Tu, Araguaia
... tenho certeza de que esse elemento líquido uniu nossas vidas, amiga-aluna-irmã. Nele estamos misturados e, com a mesma facilidade que ele transborda, escondendo as brancas praias, inunda e fecunda aquelas histórias margens; eu escorri para dentro do seu texto, nadei nas suas palavras, banhei-me na sua experiência, tão importante, tão rica. Aprendi tanta coisa!
Seu livro revela compromisso, missão. Como diz nosso Pedro... causas que valem mais que a própria vida. Só quem conhece o Araguaia, conhece o que é luta. Aqui neste livro temos uma parte do seu percurso na profissão, como pesquisadora, como mulher, negra, trabalhadora... incansável!
Os leitores de Saberes e sabores: das narrativas literárias africanas aos leitores jovens e adultos terão o privilégio de terem nas mãos um raro exemplar de uma história bem sucedida na educação. Pois, em meio a tantos fracassos no âmbito da educação básica, este livro é um farol aos navegantes perdidos. Mas não só farol; é ainda bússola que orienta caminhos.
Eu vejo sangue, vejo suor, vejo lágrimas, mas também vejo vitória.
Edson Flávio Santos
Doutor em Estudos Literários
Unemat
PREFÁCIO
LEITURA LITERÁRIA SEM IDADE: UMA LIÇÃO
Este livro resulta de um projeto de intervenção e pesquisa, na área da leitura do texto literário, no âmbito do Programa de Mestrado Profissional em Letras (ProfLetras – Unemat), com os alunos do ensino fundamental do Centro de Educação de Jovens e Adultos (Ceja) Creuslhi de Souza Ramos, em Confresa, Mato Grosso. No trabalho pontuado pelo rigor científico, a autora Célia Ferreira de Sousa surpreende-nos com uma visão humanística e generosa que traduz o sucesso do desenvolvimento da proposta, mostrando de maneira objetiva a importância de se reconhecer a diferença de cada ser humano na sua constituição social e subjetiva.
O título deste livro, Saberes e Sabores: das narrativas literárias africanas aos leitores jovens e adultos, é signatário da precisão das ações levadas às boas consequências, seja no relato ou na análise do processo formativo que envolveu os alunos. A professora Célia Ferreira de Sousa apresenta a leitura como uma experiência social, de trocas e enriquecimento mútuo, em que aquele(a) que aprende também ensina e aquele(a) que ensina também aprende, como nos lembra, Paulo Freire.
Entre as muitas qualidades desta obra está o estilo claro e direto da autora, que articula com arte a descrição e a narração dos vários momentos que compõem o texto, numa sintonia harmoniosa de apresentação das atividades e reflexão sobre seus desdobramentos, num ritmo salutar de avanços, recuos, retomadas, ajustes e mesmo estagnações, e, finalmente, num diapasão que ultrapassa os limites da sala de aula. A honestidade desse movimento é tal que nos damos conta de como omitimos experiências, importantes numa aula ou numa pesquisa, apenas porque somos educados a condenar o erro, a falha, a inadequação e a valorizar apenas aquilo que deu certo. Ora, aqui, Célia mostra-nos que, num campo aberto a novas possibilidades, tudo pode acontecer e que, permitindo-se o novo, há grande chance de o encontrar.
A discussão ética e estética do ensino das literaturas africanas e a conjugação com as histórias em quadrinhos permitem à autora aproximar-se de outras artes, expandindo a noção de leitura para outras linguagens, e conquistar campos de outras disciplinas, como a história, a sociologia, a antropologia, a linguística, a filosofia, além de autores que visitam os estudos literários na elaboração de teorias e críticas sobre o ato de ler.
O trabalho com a Educação de Jovens e Adultos é, no entanto, um diferencial bastante relevante deste livro: um momento ímpar, sutil, mas incisivo, de compreensão da distância que o Brasil ainda tem a percorrer até chegar a ser uma nação letrada. Afinal, como e por que um país precisa de Educação de Jovens e Adultos? Enquanto isso não ocorre, a autora problematiza o lugar mesmo da EJA:
Como tratar com igualdade, estudantes diversos, em sua grande maioria alunos jovens, adultos, trabalhadores, desempregados, mães, pais? Todos com histórias e experiências que precisam ser compreendidas, respeitadas, aproveitadas e trabalhadas em sala de aula, pois são inúmeras as histórias narradas, cada uma com suas perspectivas, seus sucessos e insucessos, seus sonhos e planos, enfim, narrativas que se identificam umas com as outras e se assemelham às narrativas de parcela da população brasileira (SOUSA, 2017, p. 39).
Como produzir uma obra sem esse feeling dos desafios da sociedade brasileira e da importância da profissão docente no deslocamento educacional e social do país? É de fato essa percepção que abre um espectro para a discussão da leitura como experiência emancipadora e que vemos atravessar todo o texto, consignando o empenho do leitor como um convite para as transformações necessárias, principalmente dos profissionais envolvidos com o ensino de literatura. Se as literaturas africanas e tantas outras literaturas restam fora dos elencos oficiais dos programas de leitura do estado brasileiro, qualquer mudança poderá se dar por força da atuação de professores, pois é agente fundamental de escolhas e motivações. Essa ideia, formulada com refinamento, é assim traduzida pela autora:
Buscar o exercício da docência relacionando teoria-prática pode ser um caminho de minimização das fragilidades da aprendizagem da leitura no contexto escolar. Nesse sentido, empreendemo-nos a proporcionar aos estudantes momentos de leitura e reflexão sobre as temáticas contidas em cada conto selecionado, em que puderam conhecer e se reconhecer a partir dos sentidos construídos por meio das leituras (SOUSA, 2017, p. 131).
Formar leitores na Educação de Jovens e Adultos, criar espaços de construção de subjetividades e amparo intelectual coordenado por um docente preparado, comprometido e sensível é a aposta de Célia Ferreira de Sousa nesta obra instigante, que nos interpela no exercício de nossa profissão na área de letras. A voz dos alunos que participaram da experiência é um índice de legitimação do que é tratado neste livro, pois é muito comum esse tipo de trabalho veicular a voz do professor/pesquisador, mas o aluno aparece apenas como objeto. Célia apresenta-nos esta obra numa expressão polifônica em que as vozes se batem na construção de sentidos reivindicados por cada um e, nessa tensão imprescindível, percebemos a oficina que alicerça o trabalho realizado.
Um livro a ser lido. Uma obra de referência. Um exemplar de como é possível mudar o estado das coisas, atuar com esperança e empenhar energia para um mundo melhor. Só posso dizer do quanto me sinto honrada por ter feito parte deste trabalho e de partilhar do convívio da Célia pesquisadora, professora, humana, nas suas dúvidas, reticências e determinações.
Vera Maquêa
Doutora em Letras (Literaturas Africanas)
Unemat