Cartilhas de Alfabetização: Memórias de Estruturas Seculares no Ensino da Leitura e da Escrita
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Cartilhas de Alfabetização - Zeneide Paiva Pereira Vieira
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIDADE
A meus netos:
Caio e Lara, que, nascidos na última década deste novo século, estão desvendando o mundo por meio das letras, palavras, sílabas, sentenças e textos, marcas de uma memória alfabetizadora vivida por sua avó.
Francisco, hoje com apenas dois anos, daqui a algum tempo irá percorrer essa mesma trajetória clássica da alfabetização.
AGRADECER...
A Deus, em primeiro lugar, porque Ele me guia, me sustenta e me permite absorver as Luzes que me ilumina a cada instante em minha vida.
Aos meus pais, porque eles são importantes para mim.
Ao meu esposo e aos meus filhos, porque sei que o amor que nos une é a razão maior para que o projeto idealizado por um tenha sempre o sabor de vitória para todos.
A Filó, pela presença amiga.
Aos meus familiares, pela torcida coletiva e calorosa.
Às amigas-irmãs, pelas inúmeras vibrações positivas.
Às colegas ampeanas, pela amizade, apoio e colaboração nesse trajeto.
À direção do DELL, pelo cuidado dispensado.
Aos amigos, porque eles nos acolhem sempre.
À coordenação e funcionários do programa onde desenvolvi minha pesquisa, pela acolhida.
Ao meu orientador, pela presença cuidadosa e competente a cada instante que dele precisava.
GRATIDÃO! Essa é a palavra, é o sentimento maior que deixo registrado aos INTERLOCUTORES/VOZES que me inspiraram a encontrar as palavras necessárias para a escrita desta obra.
APRESENTAÇÃO
O livro em questão é fruto de um trabalho que eu pude presenciar com os meus próprios olhos ao longo dos meus dias, desde a mais tenra idade. Ele faz parte de uma memória individual, quando eu, ainda menino, guardava as lembranças da imagem de uma mãe que sempre trabalhou com atividades ligadas ao ato de alfabetizar. De ensinar a ler e a escrever. Professora, desde a década de 1980, a autora deste livro sempre esteve em meio às cartilhas. Muitos desses livros estiveram em nossa casa, enfeitaram as nossas estantes e ocuparam a nossa mesa de estudo enquanto, aprendendo a ler e escrever, presenciava a preparação de suas atividades na rede municipal de ensino.
Nas minhas lembranças, trago também a sua vivência de professora na universidade, de pesquisadora na área de leitura e ensino, sempre tendo o processo alfabetizador como meta de trabalho. E, mais uma vez, a ação de alfabetizar, o trabalho dos professores e o aprendizado da leitura e da escrita se apresentam como objeto a ser estudado e debatido no âmbito da educação.
Muitos são os textos que a vejo escrever sobre a temática. Em meio a esse ambiente de reflexão sistemática sobre um tema de ensino, de indagações, de vontade de aprender eu cresci e hoje, também, na condição de pesquisador em Memória, com tese defendida no mesmo programa, pude vivenciar com essa pesquisadora/professora e, por um instante, minha colega de doutorado, a sua investida cuidadosa sobre a História das cartilhas e da Memória dos processos de ensino da linguagem escrita veiculada nas cartilhas ao longo de diferentes séculos. O seu envolvimento reflexivo sobre a permanência do conteúdo apresentado nesses livros, ao longo da sua trajetória acadêmica, a impulsionou a investigar o porquê dessa estruturação da silabação, tão presente nas atividades pedagógicas dos professores alfabetizadores, mesmo quando o contexto mais recente o preparava para adotar outras perspectivas de ensino. Este livro lança luz, portanto, sobre uma questão genuinamente mnemônica, quando os professores, ao saírem graduados da faculdade, depararam-se com o funcionamento de uma memória dentro do ambiente escolar e, que, ao confrontá-lo, nele submergem repetindo os gestos do passado ainda vivo, quando poderiam/deveriam, pelo menos teoricamente, inscrever novas práticas.
O tema é fascinante e expõe o quanto esse problema de pesquisa, de fato, brotou de uma luta, de uma guerra interna travada no interior da pesquisadora que outrora fora aluna nos primórdios da educação escolar no Brasil – quando aprendeu a ler e escrever a partir das lições tomadas pelos professores da fazenda onde nasceu –, outrora também fora aluna de magistério, graduou-se em Letras, e nunca mais deixou de lidar com este assunto: a alfabetização. A pergunta de pesquisa que desencadeou este trabalho é de tal modo visceral que, assim como eu experimentei no meu próprio processo de alfabetização, ainda hoje presencio, no ambiente doméstico, os meus próprios filhos aprendendo a ler e a escrever seguindo as instruções dessa mesma mulher.
Assim, ao ler o seu livro que ora apresento, observei que a autora faz uma investida muito séria – a um só tempo interessante e profunda – no sentido de compreender como se deu o ensino desde o período jesuítico, destacando a cartilha de João de Barros como o primeiro livro utilizado pelos professores do século XVI, com uma estruturação metodológica que vai se reapresentando ao longo dos séculos subsequentes, nas mais diferentes cartilhas editadas, inclusive, em livros lançados no limiar do século XXI.
Com tantos dados empíricos poderíamos dizer que o livro traça um percurso, porém sem fazer necessariamente uma história das cartilhas ou dos livros didáticos no período recortado. Com efeito, a metodologia empregada deixa claro que privilegiou o olhar para um funcionamento mnemônico, para algo que estava sendo repetido no nível da memória, uma memória em ebulição, no interior das práticas escolares das séries iniciais destinadas à alfabetização. Vista dessa maneira, a questão nos remete, em certa medida, aos estudos sociológicos de Halbwachs (1950), quando escreve em seu A Memória Coletiva, que a existência de uma memória coletiva está atrelada às experiências dos grupos sociais, dentre os quais é possível demarcar precisamente a escola, com todos os seus acontecimentos e experiências particulares, como ambiente favorável a um tipo muito específico de convivência social e, por conseguinte, de uma memória. Na esteira deste debate, concordamos com Halbwachs quando diz que não é na história aprendida que se apoia a nossa memória, mas na história vivida. Talvez seja essa a grande contribuição que as páginas seguintes têm a nos oferecer.
O livro serve tanto aos acadêmicos que se relacionam com esse processo de aprendizagem da língua escrita diariamente, quanto aos pesquisadores da área, na medida em reúne amplo material de pesquisa, com um corpus denso e cuidadosamente organizado, fruto do espírito metódico e criterioso de quem elegeu, localizou, selecionou e organizou todos os dados analisados, ano por ano, década por década, século por século. Para tanto, era preciso ter experiência no assunto, de modo que nos permite imaginar que, não fosse a sua longa trajetória no interior vivo das salas de aula, em seus diversos formatos, e ocupando variados papéis, ora como aluna, ora como professora, ora como pesquisadora, talvez não fosse possível cumprir essa meta com tamanha propriedade e adequação. Tudo se encaixou, fazendo com que o livro desperte também a curiosidade de leitores ordinários, leigos ou não especialistas
, se assim podemos nos referir, porque foi escrito pelas mãos de quem tinha e tem autoridade para fazê-lo.
Nesse sentido, como estudioso da Memória, posso dizer ao leitor que este livro deverá proporcionar-lhe uma excelente experiência. Que todos apreciem.
Ricardo Pereira Vieira
(Filho da autora)
PREFÁCIO
Quando eu era criança me alfabetizei como tantas outras pessoas com o apoio da clássica cartilha — aquele livrinho com exercícios, pequenos textos, ideias e ideologias, conceitos que ajudaram inúmeras gerações a aprender a ler e a escrever. Um material didático aparentemente inocente, mas que ao ser estudado com mais detalhes vai permitindo que se enxergue sua complexidade, suas intenções, sua história. Foi o que fez, e vem fazendo, a professora Zeneide Paiva.
Quando a professora Zeneide apresentou a ideia de investigar as cartilhas de alfabetização chamando a atenção para o que havia observado tanto nos seus estudos de mestrado quanto na sua experiência como professora no curso de licenciatura em letras da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), iniciamos um processo complexo para transformar o tema em ‘problema’ e ‘objeto de estudo’, cujo produto final foi a tese intitulada Cartilhas de alfabetização no Brasil: um estudo sobre trajetória e memória de ensino e aprendizagem da língua escrita
, defendida no Programa de Pós-Graduação em Memória, Linguagem e Sociedade (PPGMLS/UESB) no ano de 2017.
Ao acompanhar a construção da pesquisa na condição de orientador de sua tese fui, junto dela, mergulhando na história e na memória destes textos que teve como ponto de partida a Cartinha de João de Barros, produzida no século XVI, chegando até os estudos de livros didáticos construtivistas contemporâneos, como o livro ALP: Alfabetização: Análise, Linguagem e Pensamento, editado na década de 1990 e o livro A Caminho do Letramento: alfabetização, editado na primeira década do século XXI.
Sim, um longo percurso, com muitas cartilhas e informações. Isso poderia prejudicar a análise, mas assumimos o risco, porque interessava neste estudo apreender um processo de construção de uma memória do educar e do alfabetizar que perpassava gerações.
Para desenvolver sua investigação, Zeneide Paiva, sempre muito inquieta e estudiosa, realizou o exercício de aproximações sucessivas do seu objeto de estudo, adquirindo várias cartilhas, entusiasmando-se e fazendo a análise crítica das fontes. Seus estudos se pautaram pela perspectiva de que, apesar dos avanços das concepções e métodos de alfabetização, há permanências nos métodos e técnicas da apropriação da leitura e da escrita nos livros didáticos.
Na sua exposição isso fica explícito quando compara o modelo de exercício de leitura e escrita da Cartinha João de Barros (publicado em 1539) com o livro A Caminho do Letramento (editado em 2004). A lógica da silabação permanece, repete-se, embora com alterações no transcorrer da história da educação. Observa-se um liame, um porto seguro, que articula e ancora o processo de aprendizagem da leitura e da escrita nos textos didáticos produzidos ao longo dos anos.
Desse modo, a tese apresentada pela autora é a de que as cartilhas do século XVI até o final do século XX foram se constituindo como um dispositivo didático e um espaço de memória de um método de ensino que permanece presente, embora muitas vezes ressignificado ao longo desses séculos.
Para demonstrar essa proposição, a autora destaca aspectos linguísticos e/ou estruturais que se repetem nas obras e se incorporam à memória e aos procedimentos de ensino da leitura e da escrita em manuais dos séculos XVI ao século XX, focalizando, também, algumas atividades utilizadas por alguns professores que atuam no atual contexto escolar.
Essa problemática significativa levantada pela professora Zeneide Paiva nos remete não ao conceito de tradicional, tantas vezes tomado como algo negativo, mas ao conceito de clássico.
O clássico, como formulou o professor Dermeval Saviani em seu livro Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações, não se confunde com o tradicional, tampouco se opõe ao moderno ou ao atual. O clássico, todavia, é tudo que resistiu ao tempo, que oportuniza sentido efetivo, que tem caráter permanente. O clássico na escola é a transmissão/assimilação do saber sistematizado.
Ao estudar as permanências metodológicas e técnicas nos livros de alfabetização, a noção de clássico é ressaltada na medida em que — apesar de as formas de ensino se incorporarem às práticas educativas e à memória dos processos de ensino da linguagem escrita, do ler e do escrever — permanecem como métodos e técnicas de um passado que se atualiza. Esse movimento vai se consolidando, inclusive em livros e atividades que criticam os métodos chamados de tradicionais.
A autora brinda o leitor e a leitora com seu trabalho de investigação da memória histórica das cartilhas com um estudo que abrange vários momentos do processo de produção e utilização de um material didático específico que deu suporte a milhões de educadores, educadoras e estudantes durante os seus quase quinhentos anos de utilização.
Este livro é o coroamento de um processo de investigação que tive a satisfação de acompanhar. Um material que, com certeza, contribui para o avanço dos estudos no campo da memória, da história, da pedagogia e no da licenciatura em letras. Um texto muito bem cuidado e que nos leva a dialogar sobre as especificidades, a natureza, as rupturas e as permanências teórico-metodológicas e técnicas da atividade fundamental para a entrada dos indivíduos na cultura letrada: a apropriação da leitura e da escrita.
Cláudio Felix dos Santos
(UESB/PPGMLS)
Vitória da Conquista, inverno de 2019
Sumário
INTRODUÇÃO 19
1
A CARTILHA: MATERIALIZAÇÃO DO MÉTODO DE ALFABETIZAÇÃO E MEMÓRIA DO TRABALHO EDUCATIVO 33
1.1 Aproximações à história da Cartilha 33
1.2 A cartilha e o campo de estudos da memória. 48
1.3 Sobre os métodos de alfabetização: notas históricas e teóricas 56
1.3.1 O método sintético e seus processos de abordagem 58
1.3.2 O método analítico e seus processos de abordagem 60
2
AS CARTILHAS DOS SÉCULOS XVI a XIX: o religioso e o laico na produção da memória dos métodos de alfabetização 65
2.1 A Cartinha João de Barros e o trabalho pedagógico dos jesuítas 65
2.2.1 A Cartinha de João de Barros: memorização e memória da aprendizagem das primeiras letras pelo ideal cristão 68
2.2 As Cartas do ABC como expressão do método sintético de alfabetização 86
2.2.1 Tentativas de implantação de novos métodos para suplantar o ensino jesuítico 95
2.2.1.1 Método Lancasteriano 96
2.2.1.2 Método Simultâneo 103
2.3 Cartilha Método Português de Antonio Feliciano de Castilho
— a ludicidade como novo método de ensino da leitura 105
2.4 Cartilha Maternal ou Arte da Leitura de João de Deus: a defesa do método analítico 115
2.5 Cartilha Nacional: primeira cartilha produzida no Brasil 125
2.6 Cartilha da Infância: defesa do método silábico no Brasil 131
2.6.1 Método Intuitivo ou Ensino pelo Aspecto 140
3
SÉCULO XX: OUTRAS IDEIAS PEDAGÓGICAS; NOVAS CARTILHAS PARA ALFABETIZAR? 143
3.1 Testes ABC — 1930 a 1970 150
3.2 Cartilha do Povo 156
3.3 Cartilha Caminho Suave 168
3.3.1 Embates para implementação de novas teorias 182
4
SABERES INSTITUÍDOS, CLÁSSICOS CONTEÚDOS EM NOVOS LIVROS DE ALFABETIZAÇÃO REVELANDO UMA MEMÓRIA PRESENTIFICADA NAS CARTILHAS SECULARES 187
4.1 ALP: Alfabetização: Análise, Linguagem e Pensamento - Um trabalho de Linguagem numa proposta socioconstrutivista 188
4.1.1 Atividades estruturadas numa perspectiva do letramento ainda remontam lembranças de um velho passado de alfabetização 197
4.2 Livro A Caminho do Letramento: alfabetização
: novos saberes, clássicas estruturas de um saber sistematizado para se ensinar a ler e escrever 207
Considerações Finais 221
REFERÊNCIAS 227
ÍNDICE REMISSIVO 239
INTRODUÇÃO
A educação vem, ao longo dos tempos, sendo alvo de intensos debates e discussões que geraram diferentes encaminhamentos para o ensino da leitura e da escrita nos primeiros anos de escolaridade. Quando se estuda esses embates é possível associar esse aprendizado da escrita ao processo de alfabetização e, consequentemente, aos diferentes períodos da escolarização da Educação Brasileira, trazendo à tona as cartilhas que circularam nas escolas e que, por vezes, se constituíram como método alfabetizador
. As cartilhas traziam em si uma proposta educativa que deveria ser adotada pelo professor alfabetizador que, ao colocar em prática os conteúdos do novo manual, estaria, supostamente, rompendo com o modelo tradicional e adotando um método
moderno de ensinar.
Quando proponho a estudar as cartilhas a partir do século XVI até o final do século XX, analisamos as permanências e mudanças no conteúdo e forma de ensinar, ou seja, verifico que, na prática, essas cartilhas foram constituindo memória de um método de ensino que permanece vivo
, embora muitas vezes ressignificado, nas nossas escolas ao longo desses séculos. Tais inquietações, fruto de algumas leituras e incursões no contexto escolar, impulsionou-me ao ingresso no curso de doutorado em Memória, no qual realizei investigações que subsidiaram estudos que ora resultaram na edição deste livro.
Quando revisitei os meus questionamentos, as minhas lembranças me situaram no final da década de 1990, quando do término do meu mestrado em educação. Naquele momento, ao estudar sobre os sentidos do aprendizado da leitura e da escrita nas classes de alfabetização¹, pude perceber, nas escolas pesquisadas que, na efervescência dos estudos e discussões do construtivismo, nos mais diferentes cursos de formação de professores e de pedagogia no país, bem como com a implementação dessa nova abordagem pelo sistema educacional brasileiro via PCNs, havia o predomínio da adoção do método tradicional da silabação
pelos professores