Cigarro: um adeus possível
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Cigarro - Flávio Gikovate
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Gikovate, Flávio, 1943-.
Cigarro: um adeus possível / Flávio Gikovate. 4. ed. São Paulo : MG Editores, 2008.
ISBN 978-85-7255-090-1
1. Tabaco – Aspectos psicológicos 2. Tabaco – Efeito fisiológico 3. Tabaco – Hábito I. Título.
08-03458
CDD-613.85
-616.865
Índices para catálogo sistemático:
1. Cigarro : Abuso : Prevenção : Higiene 613.85
2. Cigarro e saúde : Higiene 613.85
3. Fumo : Vício : Medicina 616.865
4. Tabagismo : Higiene 613.85
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CIGARRO: UM ADEUS POSSÍVEL
Copyright © 1990, 2008 by Flávio Gikovate
Direitos desta edição reservados por Summus Editorial
Editora executiva: Soraia Bini Cury
Assistentes editoriais: Bibiana Leme e Martha Lopes
Capa: Alberto Mateus
Projeto gráfico e diagramação: Crayon Editorial
Impressão: Sumago Gráfica Editorial
MG Editores
Departamento editorial:
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Agora entendo por que tantos poetas, no passado, iniciaram suas obras evocando os deuses e implorando inspiração. Às vezes a gente tem a impressão de que o projeto é maior do que nossas forças, de que não seremos competentes para atingir os objetivos, de que não conseguiremos sensibilizar os leitores para os nossos argumentos, de que não seremos capazes de entretê-los a ponto de não abandonarem o livro no meio. Especialmente um livro como este, destinado basicamente aos fumantes e cujo objetivo é ajudá-los a parar de fumar.
Mas você que me lê neste momento quer mesmo parar de fumar? Ou acha que deveria parar, mas não está com nenhuma vontade de abandonar esse velho amigo que o acompanha por tantos anos? A diferença é enorme. Achar que deveria parar de fumar corresponde a uma reflexão, a um processo exclusivamente racional; tal processo deriva da indiscutível acumulação de provas acerca dos malefícios do cigarro — tudo que se disser a respeito do cigarro é válido também para o cachimbo e para o charuto. Querer parar de fumar significa que o processo racional já se expandiu para o mundo emocional, para o mundo das vontades. Não estamos mais apenas no pensamento. Já alcançamos aliados no coração, no estômago, por todo o corpo.
Se alguém quer parar de fumar mas ainda fuma, esse desejo — que um dia nasceu do processo racional — ainda é minoria no reino interno das vontades. Os processos que prendem a pessoa ao cigarro ainda são mais fortes. Talvez o jogo já tenha sido mais desequilibrado, mas a vontade de fumar ainda é predominante. Apesar de tudo, quando existe alguma vontade de parar é porque o jogo já está em andamento; achar que deveria parar significa que o jogo ainda nem começou.
Este livro se destina principalmente aos fumantes. Mesmo àqueles que acham ótimo fumar e não têm nenhum tipo de projeto de parar de inspirar sua fumaça rica em nicotina. Não me iludo acerca dos resultados e não gostaria de iludir você também. Os tempos modernos estão cheios de livros — e outros tipos de produto — que prometem a cura milagrosa de todos os males. Este não é mais um dos que seguem essa rota. Não se devem subestimar as dificuldades e os problemas envolvidos nas dependências de todo tipo. Há mais de 25 anos ficou provado o malefício da nicotina — e de outros componentes da fumaça do tabaco —no organismo humano. Inúmeros trabalhos publicados desde 1964 têm sido categóricos em apontar o cigarro como o maior causador de cânceres de pulmão e como importantíssimo coadjuvante nas doenças cardiovasculares, apenas para citar os malefícios mais graves. No Brasil, assim como em todo o mundo, milhares de pessoas morrem diariamente por causa do cigarro.
Ora, se parar de fumar fosse fácil, ninguém mais insistiria nesse velho hábito
. Acontece que milhões de pessoas inteligentes, bem informadas e sem nenhuma tendência suicida não conseguem parar de fumar, mesmo quando os argumentos a favor dessa atitude são inquestionáveis. Ou seja, a aliança que se estabelece entre o homem e o cigarro é extremamente forte e dificílima de ser quebrada. Não padeço nem da ingenuidade e muito menos da má-fé necessárias para lhe fazer uma proposta mágica e simplista a respeito do seu problema, leitor. Sei que se trata de uma questão extremamente difícil e complexa, que você já deve ter tentado várias vezes abandonar o cigarro — ao menos quando estava doente, cheio de catarro no peito e com dificuldades para respirar — e está mais do que ciente da força que o liga a ele.
Ao contrário. Vamos tentar entender, com a maior profundidade possível, a questão dos hábitos e dos chamados vícios. Vamos discutir a questão da dependência física e, principalmente, da dependência psicológica. Vamos conjecturar acerca dos processos psicológicos que estão por trás das dependências que tantas pessoas — quase todas, para falar francamente — têm em relação a substâncias químicas que lhes provocam alguma sensação agradável. Se incluirmos aqui a dependência que muitas pessoas têm do trabalho — tanto assim que, ao se aposentarem, se desesperam e, não raramente, adoecem e morrem — ou do dinheiro, a compulsão de certas pessoas para comer demais, para roubar, para os jogos de azar, para a permanente busca de situações eróticas, para o consumismo e para certos tipos de relacionamento amoroso, podemos dizer que o domínio das dependências psicológicas engloba a todos nós. Se esse raciocínio está correto, evidentemente deveremos buscar a cura para tais processos nas características mais gerais da nossa subjetividade. As dependências psicológicas, estando presentes em todos nós, não podem ser atribuídas a peculiaridades da vivência de cada pessoa. A história de vida poderá ter influenciado para o surgimento desse ou daquele tipo de hábito ou vício. Mas a tendência para a dependência terá de ser relacionada com os fatores mais gerais e importantes da nossa vida interior.
É evidente, também, que tentarei não me perder em divagações teóricas, desnecessárias e cansativas. Mas teremos de dedicar certo tempo à compreensão geral das dependências, pois um dos fenômenos mais comuns quando o indivíduo pára de fumar é que ele começa a beber ou a comer muito mais do que fazia anteriormente. Não é raro que ganhe rapidamente vários quilos e atribua esse novo malefício ao fato de ter parado de fumar; nesse caso, é claro que passará a ter um ótimo argumento a favor da volta ao cigarro. A nicotina é um estimulante, e sua subtração deve provocar uma discreta queda no metabolismo. Porém, a maior parte das pessoas que engordam muito depois que largam o cigarro deve essa alteração corpórea a um aumento real da ingestão de comida ou de bebida alcoólica. Substituem um vício pelo outro. Aliás, os alcoólicos, quando param de beber, tendem também a engordar — embora, do ponto de vista metabólico, devesse ser o contrário; afinal, eles economizam
uma enorme quantidade de calorias contidas no álcool. Só que passam a ser glutões compulsivos, principalmente de doces!
Para mim, a complexidade da questão a torna intrigante e muito fascinante. Ao mesmo tempo, apazigua sentimentos de autodepreciação que vão se acumulando no fumante ao longo dos anos. É terrível para a autoimagem de uma pessoa quando ela se percebe incompetente para se livrar de coisas que lhe fazem mal — ainda mais quando tudo leva a crer que sejam coisas muito simples. São simples para as pessoas que não têm problema específico com aquelas coisas, e são justamente essas pessoas que nos olham com certo ar de superioridade e de desprezo pela nossa fraqueza. Talvez por isso seja muito difícil para um não fumante entender a dramaticidade envolvida no processo de parar de fumar. Ele teria de se lembrar de alguma dependência sua e imaginar a dor que sentiria com a ruptura desse vínculo — com o álcool, o trabalho, o dinheiro, a comida ou o que quer que seja.
A dor envolvida no processo de ruptura de qualquer tipo de dependência é brutal. É dor de morte. Pode ser responsável por terríveis depressões, o que pode levar à rápida e fácil recaída. E aí a auto-estima vai mais para baixo ainda.
Eu me tornei um menino gordo lá pelos 7 anos de idade. Briguei contra o excesso de peso a vida inteira, até que, há alguns anos, consegui me livrar desse problema e também da obsessão ligada ao assunto, coisa que costuma ocorrer após o processo de emagrecimento. Sempre me chamou a atenção o fato de eu não ser capaz de fazer uma dieta direito e até o fim, bem como a incapacidade de manter o peso mínimo atingido. Sempre fui uma pessoa obstinada e determinada, capaz de fazer grandes sacrifícios para atingir meus objetivos. Mas, quanto a esse particular, fui perdedor por várias décadas!
Como a maioria dos homens da minha geração, comecei a beber socialmente na adolescência. Detestava o gosto da bebida, mas não podia me sentir mais por baixo do que já me sentia em relação ao grupo social que eu freqüentava (eu já me achava gordo, feio e antipático). Tanto me esforcei que aprendi a tolerar o gosto de algumas bebidas e a apreciar outras. Ficava eufórico, mais ousado com as moças — e desses efeitos eu gostava muito. Falava um pouco demais e, no dia seguinte, com freqüência me arrependia de algumas das minhas observações da véspera. Além da ressaca física — dor de cabeça e azia —, eu, muitas vezes, tinha a ressaca moral
derivada daquilo que tinha dito e que me parecia superinconveniente quando voltava a ficar sóbrio. Quando bebia, eu não adormecia — desmaiava. Não me lembro como era o meu adormecer antes, mas, depois que passei a beber com certa freqüência, eu só dormia com facilidade quando bebia; nos outros dias, rolava na cama por bastante tempo antes de conciliar o sono.
Aos 20 e poucos anos, em virtude de contratempos amorosos com os quais sofri muito, comecei a beber diariamente e numa quantidade que hoje considero grande: cerca de seis doses de uísque, tomados desde a hora que o sol se punha até o momento de ir para a cama. Bebi assim por uns dez anos. Parei por uns tempos, justamente quando minha vida sentimental tomou um rumo positivo. Voltei a beber de brincadeira depois de um ano e, em pouco tempo, lá estava eu bebendo todos os dias outra vez. E a coisa não tinha mais nada que ver com a questão sentimental — embora o fato bastante comum de as pessoas começarem a beber mais em virtude de grandes frustrações amorosas sempre tenha me intrigado. Não podemos perder isso de vista — nem o fato de que as crianças começam a engordar com freqüência por volta dos 7 anos —, pois se trata da ponta de um iceberg importantíssimo: a correlação entre amor e dependências em geral, um dos pilares da teoria que pretendo desenvolver mais adiante.
Passei a achar que estava bebendo apenas para relaxar e principalmente para adormecer mais facilmente. Com o passar da idade, essa minha dificuldade só piorou. Alguns dias eu não bebia, pois preferia tomar Valium para dormir melhor. De fato, eu já nem sabia por que bebia; só sentia prazer mesmo quando saía para jantar fora e pedia uma garrafa de vinho de boa procedência. Ainda assim, não é fácil precisar o quanto eu gostava de vinho ou o quanto me encantava o charme da situação. Nas festas, o álcool me salvava, pois me tornava mais tolerante com situações e pessoas chatas.
Com o tempo, comecei a acordar de madrugada, cerca de cinco horas depois de adormecer — coisa que acontecia quando eu bebia, e não quando eu tomava o Valium. Achei (e não sei se estava certo ou não) que isso era sinal de uma leve dependência física do álcool; eu acordava no momento em que o teor de álcool no sangue caía para próximo de zero. Minha dependência psíquica da bebida já tinha sido aceita por mim, mas a idéia de ficar fisicamente dependente me apavorou e me fez tomar uma atitude radical: em 1987 parei completamente de beber. Nas primeiras semanas, sofri bastante, mas não por causa da suposta dependência física nem da insônia — pois tomava o Valium para facilitar o adormecer. Sentia falta do copo, do ritual, do charme, da zonzeira que fazia tudo ficar bom e fácil; sentia falta de falar do assunto, de pensar em bebidas; sentia medo das festas chatas e de não ser