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O Discurso da Delinquência
O Discurso da Delinquência
O Discurso da Delinquência
E-book374 páginas5 horas

O Discurso da Delinquência

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Sobre este e-book

Na madrugada de 15 de novembro de 1959, dois homens invadem uma residência rural em uma pequena cidade interiorana, no Kansas, Meio-oeste americano. O The New York Times dá, na época, dez linhas em uma página interna, sem mais detalhes ou holofotes sobre o acontecimento. Seis anos depois, Truman Capote – um dos principais escritores americanos da fase do New Journalism – publica A Sangue Frio, uma obra que lhe rendeu fama, dinheiro e gravou seu nome para sempre entre os autores mais lidos no mundo.

O diferencial do livro de Capote é o amplo espaço destinado à vida dos personagens e o detalhamento da narrativa que os constitui como sujeitos. Do mesmo modo, Michel Foucault, principalmente em Vigiar e Punir, preocupou-se em discutir como a punição e o enclausuramento fabricam sujeitos estandardizados, de quem se espera pouco mais do que a reincidência, ainda que a exemplaridade desse processo tenha sido útil à fabricação de sujeitos dóceis.

O Discurso da Delinquência analisa a obra de Capote sob a lente sempre atenta de Michel Foucault, na tentativa de mostrar que a invisibilidade dos indivíduos nos meios de comunicação é agravada por uma narrativa coletiva sobre a criminalidade e acaba projetando na opinião pública uma imagem padrão desses sujeitos. Foucault parte da constatação de uma dualidade que põe, de um lado, a forma representada pela visibilidade da prisão; e, de outro, o conteúdo composto pelos enunciados, que dão sustentação às punições em si, pela autenticidade encontrada no direito penal e pela legitimação de um sistema de punições por meio de um discurso "oficial" sobre a delinquência.

Por fim, pode-se afirmar que, tanto em Vigiar e Punir quanto em A Sangue Frio, há um sujeito criminoso em constituição, não atento nos discursos que se referem ao seu ato, mas nos dispositivos de enunciação sustentados pelos elementos que compõem o espaço, o tempo e os sujeitos encarcerados. Decifrar esses signos é a proposta central deste livro.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de jun. de 2019
ISBN9788547324940
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    O Discurso da Delinquência - Sandro Galarça

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM E LITERATURA

    A todos aqueles que, condenados ou não, tiveram seus destinos radicalmente alterados por um sistema penal que não só priva as pessoas da liberdade, mas busca na violência uma metodologia para espalhar o terror de forma legal e institucionalizada.

    Aos meus filhos, Vinícius, Renata e Gabriel.

    À minha mãe, Tânia, e ao meu pai, Dimas (in memoriam).

    AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Dr. Pedro de Souza, orientador da tese defendida em 2010 no Programa de Pós-graduação em Literatura da UFSC, verdadeira luz-guia em um emaranhado de textos, teorias, símbolos por vezes indecifráveis. Uma palavra de simplicidade em um universo de dúvidas, incertezas, nebulosidade. Meu reconhecimento pela paciência e pela compreensão nos momentos mais difíceis e, se tenho algo a lamentar, é o fato de não dispor de mais tempo em sua companhia, seja nas orientações, seja nas conversas que por diversas vezes me chamaram de volta à Terra.

    Aos meus colegas professores, por uma palavra de incentivo e pela inspiração.

    Ao Rogério Christofoletti, que plantou a semente da tese que se transformaria em livro.

    E à minha alma gêmea, Marli, pelos motivos que só o coração explica.

    A prisão em seu todo é incompatível com toda essa técnica da pena-efeito, da pena-representação, da pena-função geral, da pena-sinal e discurso. Ela é a escuridão, a violência e a suspeita.

    (Michel Foucault, em Vigiar e Punir)

    PREFÁCIO

    Com que palavras se escreve um criminoso?

    Em setembro de 1928, a American Magazine publicou o que vieram a ser conhecidas como as Vinte Regras Para Escrever Estórias Policiais. Assinada pelo escritor S. S. Van Dine, a lista determinava um conjunto rigoroso de limites para um gênero literário que já havia produzido personagens como Auguste Dupin (1841), Sherlock Holmes (1887), Hercule Poirot (1920) e Elery Queen (1928), e que viria a render uma fauna numerosa e diversa de outros detetives.

    Entre as muitas excentricidades, a quarta regra exortava: Jamais o detetive ou um dos investigadores deverá ser o culpado. S. S. Van Dine estava mais preocupado em não enganar os leitores e estabelecer limites narrativos. Não imaginava que, ao definir esses mandamentos, estaria também reorientando o olhar de escritores e leitores e definindo de forma arbitrária que o crime e a transgressão não fossem atitudes naturais dos detetives.

    Não é preciso dizer que as tais regras foram transgredidas ou simplesmente ignoradas por Agatha Christie, Edgar Wallace e tantos outros. Mas o que chama a atenção é a insistência nos contornos ingênuos de um personagem que é limítrofe por natureza. Policiais ou investigadores transitam na elástica zona turva que separa a obediência da lei do desvio dos padrões. Imaginar que eles sejam incapazes de praticar o mal ou que esses gestos lhe sejam alienígenas é quase infantil em tempos como os nossos, tão ambíguos moralmente, tão confusos legalmente.

    O leitor deste prefácio poderá argumentar que se trata de literatura e que nela tudo vale. Não é tão elementar assim. Na ficção ou fora dela.

    O criminoso não é resultado apenas de um processo de investigação, acusação, julgamento e punição. Ele é produto da multidão de discursos que orbitam, atravessam e constituem esse personagem, e não apenas dos autos e do conjunto de provas juntadas para determiná-lo. Em 1973, Michel Foucault e outros pesquisadores nos mostraram isso em Eu, Pierre Rivière, Que Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e Meu Irmão, ao reconstituir um indivíduo em uma situação extrema e aterrorizante. As pesquisas de Foucault e seu engajamento na militância contra o sistema prisional francês levaram-no a denunciar que as cadeias eram fábricas de delinquentes. Em Vigiar e Punir, de 1975, o suplício e o encarceramento, o espetáculo da punição e a instituição prisional são descritos com requintes de crueldade, antes só esperados dos mais frios assassinos. Regras servem para ser quebradas.

    Décadas depois, Vigiar e Punir será o mapa do pesquisador Sandro Galarça para reler A Sangue Frio, de Truman Capote. O encontro inusitado entre dois popstars acadêmicos, habitantes de planetas distintos, vai permitir traçar uma cartografia do sujeito delinquente na geografia dos discursos que o constituem.

    Um dos nomes mais celebrados do New Journalism, Capote reconstitui em 1966 uma chacina ocorrida em uma minúscula cidade rural do Kansas: um casal e dois filhos adolescentes são mortos a tiros de espingarda, sem motivos aparentes. Era novembro de 1959 e o massacre criou grande comoção social, caçada aos assassinos e um ruidoso processo penal que culminou com o enforcamento de dois homens. Capote reconta a história pregressa desses personagens, detalha os locais dos acontecimentos e reflete sobre a pena de morte nos Estados Unidos.

    Galarça usa as lentes de Foucault para ler Capote e a delinquência a partir do discurso que a constrói. O resultado faz aparecer como o discurso sobre alguém emoldura suas ações e sobre como a própria fala define os contornos do falante. Alguns dias antes de escrever este prefácio, morreu Charles Manson, um dos mais famosos prisioneiros do sistema norte-americano. Condenado inicialmente à pena de morte, teve sua sentença convertida à prisão perpétua, e tornou-se célebre por seu comportamento ofensivo e entrevistas impactantes. Foi, portanto, personagem dos seus atos e escolhas, mas também daquilo que dele falaram e de como ele se pronunciou ao longo dos anos.

    A preocupação de Galarça – de Capote e Foucault – não é a culpa, a responsabilidade penal e a veracidade das acusações que embasam as decisões judiciais. Ele se pergunta: quem é esse sujeito constituído não a partir de seu ato, mas pelos enunciados que narram as causas e consequências deste ato, que o torna público e lhe dá autenticidade? O que Galarça vai perseguir é a ideia de que o prisioneiro é efeito de uma construção subjetiva cuja materialidade está nos elementos cênicos da prisão e no discurso sobre o crime. Em outras palavras, o delinquente, o desviante, o anormal é descrito, narrado e preenchido de palavras e efeitos de sentido.

    Foi assim com a (in)fidelidade de Capitu, foi assim com a pedalada fiscal de Dilma Rousseff e tem sido assim com os contorcionismos verbais que insistem em transformar afirmações em provas que criminalizem Lula da Silva. Não há registros ainda de que Capitu traiu Bentinho ou de que o apartamento do Guarujá seja mesmo do ex-presidente. E se pedalada fiscal fosse mesmo crime, Dilma deveria ter sido não só afastada do cargo, mas perdido seus direitos políticos. Nos três casos, não há fatos; há discursos que constroem o desvio e a falsidade, o mal feito e o crime. A delinquência é tecida por discursos na mídia, nos autos, nos tribunais, nas esquinas das cidades.

    A delinquência alimenta-se da infâmia, da proscrição e do degredo. Tanto é que um dos castigos mais comuns em nossas sociedades é o envio dos criminosos para locais longínquos ou fora da nossa visão. Privamos o desviante da liberdade e privamo-nos de sua companhia. Isso quando não nos livramos deles definitivamente, como em A Sangue Frio. Mas Foucault lembra que esse processo encerra também etapas de visibilidade extrema da delinquência, de intensa exposição dos criminosos. Como nos suplícios narrados do século XVIII, ostentamos na televisão o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral com o uniforme de presidiário e a cabeça raspada, e o milionário Eike Batista algemado. Comemoramos a prisão espetacular de empreiteiros, o atropelamento dos ritos processuais por juízes federais e os júris populares em ações contra poderosos frequentemente impunes. Não admitimos, mas cultivamos em segredo certo alívio diante da vida dos homens infames.

    Os homens infames são aqueles que passaram à história por seus atos mais reprováveis e, na constelação dos discursos, só parecem ser constituídos deles. É o caso de João Acácio Pereira da Costa que, mesmo depois de cumprir a prisão máxima do país e ter sido morto em uma briga de bar, ainda é quase sempre lembrado apenas como O Bandido da Luz Vermelha. Ter saldado sua dívida com a sociedade e ter deixado a vida pouco importam, já que sua condição de delinquente prevalece. Como a mulher com olhos de cigana oblíqua e dissimulada, a quem nos referimos apenas por uma suspeita…

    Em Capitu ou em Capote, a delinquência faz-se também narrada.

    Em 2013, o ex-seminarista Gil Rugai foi condenado a 33 anos e 9 meses de prisão pela acusação de ter matado o pai e a madrasta em 2004. Ele nega, recorreu na justiça e insiste em uma outra versão, que deve sair na forma de livro nos próximos meses. O volume deve trazer um contradiscurso, não mais circulante apenas nos tribunais, mas a ser vendido nas livrarias de aeroportos e shoppings e a ser debatido nas ruas. Se a delinquência é narrada, a inocência talvez também o seja...

    Rogério Christofoletti é professor da Universidade Federal

    de Santa Catarina e pesquisador do CNPq.

    APRESENTAÇÃO

    De um modo geral esquecidos ou subvalorizados pela sociedade, os discursos dos criminosos são poucas vezes analisados e, uma vez que não são demonstrados, não servem para um tipo mais amplo de reflexão e raras vezes chegam ao conhecimento do grande público. Essas formas de circulação, ainda que restritas ao meio acadêmico ou a uma parcela menor da sociedade, trariam a oportunidade de constituir um corpo para análise, uma exploração menos superficial e mais analítica.

    Em A Sangue Frio, Truman Capote apresenta várias faces de um sistema penitenciário padronizado, as sutis diferenças dentro de um grande organismo e as particularidades de sua população carcerária, em uma tentativa de questionar o estereótipo amplamente construído nos meios de comunicação. O livro conta a história de quatro membros de uma mesma família, brutalmente assassinados em uma fazenda no Oeste do estado do Kansas, EUA, a partir de uma narrativa que busca, em um primeiro momento, dar ao conhecimento os dois autores dos assassinatos. Na escritura de Capote, não é tão importante entender como ou por que o crime foi cometido, mas por quem.

    Importante destacar que a obra pertence ao que se convencionou chamar de New Journalism, um livro emblemático e que marcou uma geração inteira de escritores norte-americanos. Apresenta marcas como a presença do narrador em primeira pessoa, o texto de natureza mais impressionista e as múltiplas vozes narrativas que se cruzam. Além de Truman Capote, pode-se inserir nesse contexto autores como Normal Mailer, Gay Talese, Tom Wolfe e Joseph Mitchels. A importância desse momento literário americano pode ser creditada ao fato de que, em vez de a literatura criar um romance a partir do cotidiano, é a realidade que começa a ser desnudada pelos traços literários.

    Por outro lado, em Vigiar e Punir, Michel Foucault propõe uma discussão aprofundada sobre a punição a partir de um método já bastante conhecido: apresenta, em um primeiro momento, como historicamente o corpo dos condenados era exposto à população e como os suplícios tinham a função de exemplaridade na Idade Média. Ao reconstruir também detalhadamente o cenário dessa punição e recuperar a crueldade na ostentação dos suplícios, mais do que explicar como estes aconteciam, Foucault coloca em discussão a passagem de um sistema que punia essencialmente o corpo do indivíduo para um período em que a punição tinha como alvo a alma dos culpados.

    A análise proposta aqui pretende debruçar-se sobre os signos que constroem não somente o universo semântico em que se dá a instituição da prisão, assim como a punição e também o controle – o ambiente, o comportamento, as roupas, as características dessas personagens ou, a rigor, a personalidade dos envolvidos –, mas também como é constituído o sujeito que emerge desse discurso em A Sangue Frio. Para isso, essa obra será lida pela lente do pensamento de Michel Foucault e de seu entendimento sobre a construção dos sujeitos a partir da narrativa que se forma sobre ele.

    Destarte, torna-se necessário aceitar que Foucault não só pensa, mas parte da existência de uma dualidade que põe, de um lado, a forma representada pela visibilidade da prisão; e de outro, o conteúdo composto pelos enunciados, que dão sustentação às punições em si, pela autenticidade encontrada no direito penal e pela legitimação de um sistema de punições por meio de um discurso oficial sobre a delinquência.

    Tanto em Vigiar e Punir quanto em A Sangue Frio, há um sujeito criminoso em constituição, não atento nos discursos que se referem ao seu ato, mas nos dispositivos de enunciação sustentados pelos elementos que compõem o espaço, o tempo e os sujeitos encarcerados. Estes vão dizer respeito ao presídio como dispositivo cênico que constrói a figura do criminoso não na cena¹ do crime, mas, sim, no cenário e nas descrições que dão a ver um criminoso se constituindo. Assim, busca-se explicar melhor a ideia de como o prisioneiro é efeito de uma construção subjetiva cuja materialidade está nos elementos cênicos da prisão e no discurso sobre o crime. Entende-se a prisão como um dispositivo ficcionalmente concebido, como lembra Foucault ao discutir a história das punições em geral, e, tomando como observação o livro de Truman Capote, no plano da recuperação histórica de um crime e do longo processo de definição da punição que lhe cabe.

    Sumário

    1 - REPRESENTAÇÃO FICCIONAL E CONSTRUÇÃO DA REALIDADE

    1.1 As marcas narrativas contam uma história

    1.2 A construção da narrativa ficcional

    1.3 A intervenção do narrador

    1.4 Narrar e descrever

    1.5 Alegoria em Lukács

    1.6 O trabalho da representação

    2 - O ESPAÇO COMO CENÁRIO DOS ACONTECIMENTOS

    2.1 Os lugares onde a narrativa se desenvolve

    2.2 O conceito de topoanálise

    2.3 Descrição e construção cênica

    2.3.1 Holcomb

    2.4 Espaço e produção de sentido

    2.5 Discurso histórico

    2.6 Imaginação

    2.6.1 River Valley Farm

    2.7 Enunciados descritivos

    2.7.1 Garden City

    2.7.2 De Kansas City a Holcomb

    3 - COMO O DISCURSO SOBRE OS PERSONAGENS EMOLDURA SUAS PRÓPRIAS AÇÕES

    3.1 A experiência no romance

    3.2 De que sujeito estamos falando?

    3.3 Os discursos sobre os sujeitos

    3.4 O sujeito criminoso

    3.5 Religião e subjetividade

    3.6 Cruzamentos ficcionais e subjetivação

    3.7 Uma vida infame

    4 - DISCURSOS DE SUBJETIVIDADE

    4.1 Uma outra possibilidade de discurso

    4.2 Discurso de autenticidade

    4.2.1 Infância

    4.2.2 Juventude

    4.2.3 Recreações - interesses

    4.2.4 Parentes

    4.2.5 Memórias

    4.2.6 O diário secreto de Perry

    4.3 O discurso sobre Dick Hickock

    4.4 Relatos autobiográficos

    5 - O CENÁRIO DA PRISÃO COMO PUNIÇÃO INSTITUCIONAL

    5.1 Da punição generalizada ao sistema de vigilância

    5.2 A fabricação de delinquentes

    5.3 O caminho da reincidência

    5.4 A exemplaridade da punição

    5.5 A punição máxima

    5.5.1 A pena de morte em A Sangue Frio

    5.5.2 O julgamento como espetáculo

    5.5.3 A execução

    POSFÁCIO

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    Capítulo 1

    REPRESENTAÇÃO FICCIONAL E CONSTRUÇÃO DA REALIDADE

    1.1 As marcas narrativas contam uma história

    Dentre os inúmeros signos que se propõe observar, as marcas de autoria ficcional que se encontram na escritura de Truman Capote apontam, inicialmente, para a função fundamental da reconstrução dos ambientes em que se desenvolvem as narrativas ou, então, onde tem palco parte das referências pretendidas no universo do discurso. O discurso emerge a partir do que podemos chamar de linguagem ficcional para chegar a um efeito de verdade, ainda que, no entender de Foucault, não estejamos entendendo escritura como um objetivo, como um fim, como lembra Deleuze². Ao reconstruir a história de que trata A Sangue Frio, Capote demonstra preocupação com a técnica de escritura, o que comprova a busca por um acabamento estético diferenciado como forma de construir um discurso que problematiza as questões de que trata o livro.

    A proposta de análise, portanto, é pinçar elementos do texto de Truman Capote, à luz da obra de Michel Foucault e que, por aproximação ou similaridade, produzam a ambientação ficcional para a narrativa que se desenha. Uma vez que o aspecto finalidade seja deixado de lado, pode-se inferir que a observação se dará pelo texto dado, pelos elementos postos e apresentados assim como são, excluindo daqui a especulação dos objetivos ou intencionalidades do autor. Para isso, pretende-se evidenciar o que se encontra de maior relevância no que diz respeito à formação de uma realidade ficcional a partir dos elementos narrativos: em que ponto esses elementos se ligam na representação, onde se apoiam, por que se apoiam e qual o efeito que produzem num texto de maior fôlego, como o romance histórico.

    A primeira consideração a priori a ser feita sobre esse aspecto é de que a utilização do termo ficcional não se opõe, necessariamente, ao que entendemos como realidade. Será usado com o sentido de pertencer ao universo da representação simbólica, ficcional por entendimento, no intuito de identificar e marcar signos que cumprem essa função: ao reconstruírem o ambiente em que ocorreram os fatos, formam um cenário que serve à ficção que se materializa, mas representam uma realidade existente.

    Para os estudiosos da História e da Literatura, o conceito de realidade é uma construção humana e não um fenômeno acabado. Para a construção de uma realidade, damos significado a partir de nossa interpretação. Portanto, de modo correspondente, historiadores e escritores produzem suas narrativas a partir de um conjunto de significações e acabam reconstruindo essa realidade que já existiu a partir de traços textualizados, utilizando a sua imaginação e a sua interpretação no processo de ler o mundo. Como aponta Hutcheon³, os fatos não falam por eles mesmos em qualquer um dos tipos de forma narrativa: quem os descreve fala por eles, fazendo desses fragmentos do passado um todo discursivo.

    Também para Foucault, não existe algo dado que o ato da representação possa copiar. O discurso histórico e realista entende por realidade um dado pressuposto, sem explicitar ou mesmo perceber que constrói esse dado à medida que se refere a ele. A literatura do pós-modernismo não pretende refletir a realidade ou falar verdades definitivas sobre ela, mas está, sim, consciente de não poder fazê-lo⁴. Os textos pós-modernistas acabam por reduzir de certo modo a autoridade desses textos que pretendem a verdade – minam a autoridade que não provém da realidade que eles representam, senão das convenções culturais que determinam a narrativa e também a construção que designamos realidade⁵.

    É possível afirmar que o processo de construção cênica do ambiente é semelhante na forma narrativa encontrada em A Sangue Frio, pois dá-se por meio de intertextos, isto é, ela depende de outros textos previamente estabelecidos para constituir-se como discurso. O uso de técnicas literárias para a descrição de um fato real é capaz de dar forma a situações bastante complexas, como o assassinato de quatro pessoas de uma mesma família, assunto tema de A Sangue Frio.

    É, ainda, mais um recurso empregado a fim de fornecer coerência ao texto, revelando uma preocupação com o receptor das informações. Da mesma maneira como a forma narrativa é fundamental e está presente tanto no discurso histórico quanto no literário, sua importância se deve ao fato de que ela também é o modo como resetamos discursivamente o conhecimento, assim como escrito por Lyotard⁶ em O Pós-moderno. Assim, autores de ficção e historiadores, no processo de escrita, percorrem, em termos gerais, os mesmos caminhos, utilizando técnicas de escrita semelhantes.

    Lyotard salienta que todos os observadores, seja qual for o cenário que eles proponham para dramatizar e compreender o distanciamento entre o estado habitual do saber e aquele que é o seu na idade das ciências, estão de acordo quanto a um fato: a preeminência da forma narrativa na formulação do saber tradicional. Uns tratam essa forma narrativa em si mesma, outros a veem como uma vestimenta em diacronia dos operadores estruturais que, segundo eles, constituem propriamente o saber que se encontra em jogo; outros ainda lhe dão uma interpretação econômica no sentido freudiano⁷.

    O autor prossegue, dizendo que não é necessário reter tudo senão o fato da forma narrativa, uma vez que o relato é a forma por excelência desse saber, e isso em muitos sentidos. Coloca Lyotard⁸:

    Primeiro, estas histórias populares contam o que se pode chamar de formações positivas ou negativas, isto é, os sucessos ou os fracassos que coroam as tentativas dos heróis; e estes sucessos ou fracassos ou dão sua legitimidade às instituições da sociedade (função dos mitos), ou representam modelos primitivos ou negativos (heróis felizes ou infelizes) de integração às instituições estabelecidas (lendas, contos). Estes relatos permitem então, por um lado, definir os critérios de competência que são os da sociedade nas quais eles são contados, e, por outro lado, avaliar, graças a estes critérios, as performances que aí se realizam, ou podem se realizar.

    O que se depreende da reflexão de Lyotard é que se torna necessário levar em consideração, na construção de um relato – histórico ou literário –, que aquilo que ele chama de atos de linguagem e são pertinentes para esse saber não são, portanto, efetuados somente pelo interlocutor, mas também pelo ouvinte e ainda pelo terceiro do qual se fala. Em síntese, o que se transmite com os relatos é o grupo de regras pragmáticas que constitui o vínculo social.

    Assim, muito do que o historiador e o escritor colhem como dados para a confecção da escrita e são dados por relatos apresentam a mesma configuração – são produtos de uma representação social anteriormente constituída. O texto sobre um suposto criminoso, no relato de testemunhas de uma prisão, por exemplo, não seria construído a partir de critérios objetivos da busca, da captura e da descrição física dos indivíduos especificamente, mas seria completado pela imagem e pela representação social que têm esses indivíduos e de como o saber coletivo os constituiu. O resultado dessa investigação seria uma construção social anterior ao fato em si, mas contaminada pelo que se supõe do fato e de seus agentes.

    É fato que A Sangue Frio representa o resultado de seis anos de investigação histórico-jornalística, que usou das mais diversas fontes de informação para a reconstrução do relato sobre a morte da família Clutter, em novembro de 1959, no estado do Kansas, EUA. Capote valeu-se de depoimentos de vizinhos, amigos, fontes oficiais, documentos dos mais variados, além, é claro, da observação atenta que o próprio autor fez nas dezenas de vezes que esteve no local e no período em que anotou cada detalhe para a confecção de seu livro. Aqui, Capote cumpriu o papel de historiador, confrontando dados, números, usando o método da história oral para colher os depoimentos e depois transformá-los em narrativa.

    Talvez por isso, a abordagem narrativa contribui para a pesquisa histórica pela maneira como as informações são compostas e dispostas, constituindo um novo jeito de apresentar os dados. Além disso, o modo de leitura do romance passa a influenciar o da História, isto é, as contestações do passado feitas no presente, apresentadas nos romances podem ser encontradas na historiografia que está se tornando mais crítica.

    É verdade que a instabilidade de uma agudização na observação revela certa precariedade do passado, favorecendo o surgimento de perspectivas inéditas, o que de certo modo problematiza o conhecimento da História e faz emergir alternativas de como repensar questões anteriormente dadas como certas. Como lembra Ribeiro⁹, as personagens pós-modernas ainda apresentam um aspecto transcendental porque emergem do passado, podendo significar figuras do presente. Contudo, continua a autora, as figuras históricas que fazem parte da trama, geralmente, são subvertidas. A descrição detalhada pode ser incorporada, mas a sua assimilação não é importante, ou seja, aos pormenores não se fornece um significado definitivo.

    1.2 A construção da narrativa ficcional

    Assim como o romance, as obras em questão na análise que se pretende neste livro também estão enraizadas nas formas retóricas dos discursos primitivos. O discurso retórico, como lembra Bakhtin, tomado como objeto de estudo em toda a sua diversidade histórica, exerce influência revolucionária na linguística e na filosofia da linguagem. As formas retóricas revelam, segundo o autor, os aspectos próprios a qualquer discurso, como sua dialogização interna e os fenômenos que o acompanham, e que não teriam sido suficientemente estudados e compreendidos no que se refere à importância para a linguagem.

    Destarte, torna-se igualmente importante o significado específico das formas retóricas para a compreensão do romance, já que se encontra em uma semelhança genética com as formas retóricas. Toda a sua profunda interação com o que Bakhtin¹⁰ chama de os gêneros retóricos vivos – jornalísticos, morais, filosóficos e outros – não foi interrompida quanto a sua interação com os gêneros literários – épicos, dramáticos e líricos. O autor sustenta que numa constante inter-relação mútua o discurso do romance teria conservado sua originalidade qualitativa irredutível à palavra retórica.

    Para explorar as obras de ficção propostas neste livro, torna-se necessário levar em consideração a existência de marcas retóricas na construção do romance moderno, em uma perspectiva de que o romance é um gênero literário cuja herança discursiva apresenta traços de uma retórica evidente. Para melhor pensar sobre esse aspecto, vale recorrer mais uma vez ao

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