Pétalas de Crepom
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Sobre este e-book
Esta é uma coletânea, de contos e crõnicas, que abre novos caminhos à literatura.
O escritor é capaz de explorar o dia-a-dia, sob o signo da solidão, que atormenta seres que não conseguem se realizar como "alma pessoa".
As palavras dançam tão leves, soltas, ingênuas tal como bolinhas de crepom caídas por acaso numa piscina.
É a vida!
A realidade é outra, o sol é o mesmo.
São linhas reais seguindo uma linearidade cujos fatos se encadeiam ou se cruzam no cotidiano.
De repente, nos deparamos com a fantasia e a realidade, o grito e o silêncio, certezas e incertezas...
Herbert Hette
Dono de um estilo único, este escritor brasileiro, de Minas Gerais, Nova Lima, depois de alguns títulos publicados, se consolidou e surpreendeu pelo olhar aguçado nas nuances de cenários em que poucos garimpariam alguma coisa válida para falar além do óbvio. O lirismo, a ousadia experimental, a força e a dinâmica de sua narrativa nos elevam a outros patamares do prazer de uma boa leitura. É despojado e elegante ao aplicar formas simples a sofisticadas e telúricas magias inexplicáveis da técnica de escrever. A complexidade psicológica da alma humana e de todas as coisas, os conflitos, as ideologias, as guerras, o crime, as flores, as esquinas e os mundos agora são infiltrados em suas essências sem formalidade e profundamente. Na Literatura, seus Contos, Romances e Crônicas abrem grades, portas e janelas à novos ares à arte de escrever.
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Pétalas de Crepom - Herbert Hette
JOIO
Sexta, madrugada ainda, o sol surgiria em pouco tempo. Arrasaria as sombras. Mas mesmo assim, aonde se esconder do frio? O velho homem não pensou duas vezes, se meteu no primeiro buraco que encontrou.
Adormeceu encolhido.
Nasceu a manhã. Brilhante. Céu azul como esperado. Uns bichos bobos voando sem sentido entre as nuvens raras, arrulham e gorjeiam impunemente. Acordou. Olhou para os lados. O porão, caixas de papelão, lixo. Baratas e ratos passeiam. Algumas formigas tateiam a madeira podre do piso e teto. O porão fede. O odor é terrível. Nem esse velho morador de rua aguentou o cheiro de carne podre e restos. Parece que o odor aumentou agora de manhã depois que o sol saiu. Se tivesse farejado isso ontem à noite, não teria nem entrado.
Saiu escorregando pelo mesmo buraco na parede rente às pedras da rua. Olhou para cima. O velho casarão se impõe por sua altura e as paredes de adobe. A maioria à mostra. Reboco solto. As varas das treliças sustentam com seu pó de séculos a massa de barro nos pontos em que o adobe fora pulverizado pela chuva e o tempo. Ali uma mão habilidosa trançou varas que hoje não passam de gravetos ocos e quebradiços. O velho homem da rua vestido em seus trapos fedidos coçou a barba. Olhos miúdos, embaçados. Desce a rua. Mas aquele cheiro horrendo... Onde sentiu esse cheiro uma vez? Foi numa festa? Num casamento? Numa igreja.. num velório? Velório!
Não andou dez metros, virou-se. Voltou ao porão. A rua ainda deserta. O maltrapilho meteu-se no buraco. O cheiro miserável invadiu suas narinas, espirrou. A janela de vidros estilhaçados e poeira onde há pouco admirava pombos e pardais voando sem sentido. Deixa entrar a luz que afasta certas sombras.
Caminha entre o lixo, ratos e insetos. Segue o faro. Parece que o odor maior parte de dentro de uma caixa de papelão. Cobriu o nariz com um retalho da própria roupa. Nem o fedor do próprio retalho cobriu o perfume de carne putrefata que decididamente parte de dentro da caixa.
Aproximou lentamente. Botou as mãos trêmulas sobre as abas da tampa. Faltou coragem para abri-las. Pensou em se mandar. Sabia que um cadáver ou parte de um cadáver estava ali dentro em horrorosa decomposição. Mutilado até.
A questão é: gente ou bicho?
O velho andarilho olhou ao redor. Nada nem ninguém. O porão escuro, a única passagem de luz à distância na parede. Nada entre ele e a caixa de papelão. Pousou pela segunda vez as mãos vacilantes sobre a tampa. Com um dedo ou dois pegou a borda. De repente, recolheu as mãos. Deu um passo atrás. Mirou a janela. Pensou em correr. Mas o que há na caixa? Homem ou mulher? Menino ou menina? Cachorro ou gato? Não, não. Nenhum bicho pequeno produziria tanto cheiro assim. E não precisaria de uma caixa tão grande. Seja o que for, é grande.
Esticou a mão sem mover os pés. Curvou um pouco. Ergueu levemente uma das abas. Pegou a outra, levantou. Não quis olhar direto dentro da caixa. Fixou os olhos nas letras negras do produto, um carimbo no dorso da caixa. Não quer ler nada.
Tudo bem. Só ancorou os olhos ali para não desviá-los para dentro dela. O que menos precisava nessa hora era saber para o que a caixa servira antes.
Suor corre. O tremor se espalha pelo corpo. Gotas escorreram da testa e arderam nos olhos.
A caixa está aberta. O velho fecha os olhos. Deu um passo à frente. Parou em cima da caixa. Bastava abrir os olhos e desvendar seu conteúdo.
Uma olhadela, uma simples olhadinha.... vou abrir só um pouco os olhos. Prendeu a respiração. Suor desce. O cheiro horrível. Apalpou a caixa. Sentiu o papelão. Olhos fechados.
O que tem dentro?
As pálpebras apertadas. Uma decisão a tomar. Na escuridão do quarto... na escuridão do porão. Um quarto há 30 anos atrás. Os gemidos da mulher. Uma decisão. Quantos anos tem? 66? Passou trinta só nas ruas. O quarto escuro, um outro homem nu sobre a sua esposa. O gemido da mulher. Imagens antigas. Ela pedia mais e mais e mais. E agora? O que fazer? Qual seria a sua atitude. Abriu a porta? Irrompeu pelo quarto como um marido traído? Gritou? Bateu? Matou? Pelo menos perguntou a ela por quê? Por que meu amor?..
— Por que outro homem na nossa cama?
O que fez? No escuro do quarto? ou no escuro do porão? O que fez?
Abriu os olhos?
Deu as costas. Saiu pelo buraco e nunca mais se perguntou o que era aquilo dentro da caixa.
LINHA CRUZADA
O telefone tocou quatro vezes. Será que ninguém quer atendê-lo? Os ruídos navegavam a linha. Diziam de uma solidão horrível transpondo terras, nuvens, mares... Indo além dos ruídos do coração.
Por um momento fizeram-se patéticos. Não havia motivo, mas aqueles minutos intermináveis de apelo desesperado davam a certeza de que ninguém atenderia ao telefone. Ficou chato e a tristeza acompanhou tudo e persistiu assim dentro da alma, mesmo quando atenderam àquele chamado aflito, inseguro.
— Alô?
— Sou eu... Você demorou.
— Oi!! Até que enfim!
— Diz ai.
— Tenho muito é prá te fazer!
— Estou com saudades...
— É...
As vozes surgiam eletrônicas, zumbidas. Era a distância. Apagavam e acendiam. No entanto, havia um calor constante e um silêncio entrecortado – não por falha técnica – era algo escorrendo na garganta, amargo. As vozes negavam. Um estado tão claro que dispensou ser dito.
— Não tem muito tempo e eu te tocava... Em meus sonhos só dá você!
— Eu sei como é. Parece castigo... Te xinguei ontem o dia todo...
— Quê que eu fiz?!
— Está longe de mim, muito longe!
— Quero estar aí!
— Sabe, até ontem mesmo eu era só eu...
— Hoje somos nós.
— Somos dois.
— Eu sou dois.
— É... eu sou dois.
‘Dois’. Acho que falaram ao mesmo tempo.
— Não gosto desta dependência...
— O que há de errado em sermos dois?...
— Sei lá.
— Será amor?
— Bem... se não for, acho que estamos doidos.
— Malucos.
—... Eu só sei que quero você.
— Já temos.
— Já não dá prá viver sem você.
— Num dá pra viver sem nós!
— Agora temos que desligar...
––––––––
‘NÃO FAÇAM ISTO! POR FAVOR!!’
––––––––
— Alô?
— Quem está na linha, por favor?
— ...
— Alô?
— ...
— Quem entrou na linha?
— Responda!
— Alô? ... Alô?
— Quem está aí?
— Alô, responda!
— Alô?
— Alô? ... Alô?...
— ...
MALHAS
Deixou o carro num estacionamento do centro. Bateu a porta olhando para os lados, cautelosa. Desceu a rampa, correu, tomou um táxi sem maiores dificuldades. Eram sete e tanto. A esta hora da noite tudo é um pouco mais fácil, mas estava atrasada.
— BR-040, quilômetro trinta. – disse ocultando a voz.
O motorista sondou curioso pelo espelho. Ana ajeitou-se no banco de trás, cobriu o rosto fingindo retocar a maquiagem. Seu vestido com pernas de fora e seios de mamilos pontudos à frente eram provas suficientes de que estava para cometer um delito. Puxou o vestido sobre os joelhos e abraçou a bolsa.
— Chegamos. Aqui está bom ou paro na entrada?
— Não! Dê mais uma volta primeiro, por favor. – disse espiando pela janela.
Já experiente nestas manobras, o motorista contornou o motel onde a luz dos postes menos alcançava. Parou na entrada. A moça pulou sem esperar o troco. O motorista deu uma boa olhada. Viu a curvatura de todo o dorso, a marca ligeira da calcinha, os cabelos soltos escondendo o decote e o risco do biquíni que branqueava a pele, a aliança fulgurando no dedo, e antes que desaparecesse pelo prédio a desejou, depois pensou mais um pouco, resmungou algo sobre esse ‘material não é pro meu bico’. Virou o carro e foi para casa verificar se a sua dormia com os filhos.
Ana procurou informações na portaria sobre um possível hóspede de nome Maurício. A recepcionista indicou a suíte 112. Passou uma cópia da chave devidamente autorizada pelo hóspede. Não deixou transparecer o tremor súbito ao confirmarem a presença dele.
Acontecia esse êxtase só de pensar nele, não por amá-lo, Maurício não era essencial como companheiro, mas sim sua amizade, sua sensualidade e seu afeto. É normal Ana tremer em todas as suas escapadas. Uma mistura de desejo e perigo que a excita desde o