O Anatomista: e outros contos
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Sobre este e-book
Adir ben Kauss
Adir ben Kauss é carioca, arquiteto por formação e ficcionista por vocação, autor do livro de contos 'O domador', lançado em 2019. Colaborou com ensaios, artigos, crônicas para diversas revistas e jornais e, como escritor, participou de antologias literárias. O anatomista é seu segundo livro de contos.
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O Anatomista - Adir ben Kauss
Copyright © 2021 by Adir ben Kauss
Capa e projeto gráfico: Thiago de Barros (Solo)
Revisão: Carolina Medeiros
Leitura crítica e preparação: Juva Batella
Coordenação editorial: Lucia Koury
DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
N518e
Kauss, Adir ben, 1946-
O anatomista e outros contos / Adir ben Kauss.
– Rio de Janeiro : Outras Letras, 2020.
124 p. ; 21 cm.
ISBN 978-65-89794-03-5
1. Contos brasileiros. 2. Ficção brasileira. I. Título.
CDD – B869.8
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Lioara Mandoju CRB-7 5331
Nota da Editora: o título deste livro foi inspirado no conto da página 61. Qualquer outra obra literária com título semelhante será mera coincidência.
Todos os direitos desta edição estão reservados à
Outras Letras Editora Ltda.
Telefone: (21) 22676627
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O que a literatura faz é o mesmo que acender um fósforo no campo no meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas permite ver quanta escuridão existe ao redor.
William Faulkner
SUMÁRIO
Capa
Folha de rosto
Créditos
Epígrafe
Chuva forte
Epifanias
Lua cheia de São Jorge
Esquinas
A quiromante
Criador e criatura
Engenho humano
Olhos
Amores conexos
Silêncios
A estrela
Diálogos imprecisos
Rezadeira
Amor e morte
Meias verdades
O anatomista
A carta
Cicatrizes
Instável equilíbrio
Vida e morte
Olhos verdes
Beijo da morte
Borboleta
Fantasias
Loucuras secretas
O andarilho
O encontro
Quem dá as cartas
Ponte aérea
Até o ano que vem
CHUVA FORTE
Vento sudoeste entrando na baía, nuvens carregadas, céu chumbo, temporal na certa. Sentada na areia da praia, a moça espera a chuva chegar, olhar perdido. Acabara de ser despedida do quinto emprego no último ano. Vazio no peito.
***
O homem dentro do quiosque organiza as cervejas que acabara de receber. Com a chuva, o movimento seria muito fraco, quase nenhum. Não importava, tinha seu trabalho e onde dormir, não mais sob as marquises. Vida difícil, muito diferente do que imaginara quando deixou para atrás sua cidade lá na Paraíba.
***
Mal completara dezessete anos, ela largou Tauá, no sertão nordestino, pai, mãe, irmãos, o primo Tião a quem estava prometida, o grupo escolar da professora Elisa, as bonecas de pano, a alegria, a fome, a miséria. Veio à procura da irmã que viera antes. Nunca a encontrou. Já tinha três anos de cidade grande, por onde vagou e vagou nos primeiros dias, assustada e desesperada por um trabalho. Não fosse uma boa alma a acolhê-la, teria se perdido.
***
Quando a seca apertou, o pai chamou os filhos e disse: a plantação secou, os animais morreram, cada um agora que tome seu rumo. Ele, o mais velho, foi o primeiro a partir. Caminhou muito, conseguiu algumas caronas em boleias de caminhão, acabou chegando a João Pessoa. Arranjou trabalho numa dessas barracas comuns no litoral. O patrão avisou que tinha dormida e comida garantidas ali na areia junto à barraca, mas salário, não. Dinheiro ia depender do que fosse vendido. Negócio sem futuro, pensou. Juntou uns trocados e voltou à estrada. No Sul haveria de ser melhor.
***
Enquanto morou no quartinho da casa de família em que se empregara, ela sentiu uma ponta de aconchego, segurança e esperança. Mas durou pouco. Logo o casal mudou-se para outra cidade. Já com experiência, ela entendeu que o caminho possível, no momento, era ser empregada doméstica. Teria casa e comida, e com o tempo talvez pudesse voltar a estudar, trabalhar no comércio, ter outra profissão. Fé em Deus. Haveria de encontrar seu caminho. Aprendera na marra a sobreviver numa cidade grande.
***
Na rodoviária, ele ficou aturdido com tanta gente e com que rumo tomar. Já na descida da Serra, ouviu o zumbido da cidade grande, como se fosse um bicho desconhecido, mas desde criança aprendeu com o pai a não temer qualquer animal, mesmo os mais ariscos e traiçoeiros, e decidiu que naquela primeira noite dormiria ali mesmo. Quando o dia clareasse sairia em busca de trabalho. Encontrou uma construção, bateu no portão da obra. O encarregado, conterrâneo, ficou com pena, teria trabalho, sim, mas por pouco tempo, porque a obra seria paralisada. Duas semanas depois, recebeu o envelope com dinheiro, já com os descontos do que lhe fora adiantado na quinzena, e três palavras: boa sorte, irmão.
***
A cada novo emprego que ela arrumava esforçava-se ao máximo pra agradar. Trabalhava muito. Quando chegava numa nova casa, a principal preocupação era organizar o seu quartinho. Limpava-o para apagar os sinais de presença da sua antecessora. Nas paredes colava as fotografias de seus ídolos recortadas de revistas. Depois, forrava a cama com a colcha bordada com suas iniciais, que a mãe lhe dera quando partira. Vivia tristonha. Ninguém com quem compartilhar sua vida, desejos, dúvidas. Pequenas conquistas: o perfume de cheiro bom aos domingos à tarde, o circo, a praça, a lanchonete da esquina.
***
Antes de sair para a rua contou o dinheiro que tinha dentro do envelope. Pouca coisa, poderia durar no máximo uma semana. Foi batendo de obra em obra atrás de trabalho. Nada. Como não tinha para onde ir foi ficando pelas ruas. Num dia comia, noutro não. À noite viu coisas que não acreditava existirem. Homens brigando por restos de comida, por cachaça, mulheres violentadas. Fundo do poço.
Ao pedir comida num restaurante, conversou com um rapaz que lá trabalhava. Contou-lhe sua história. O moço, penalizado com sua situação, pensou numa forma de ajudá-lo. Disse-lhe, certo dia, que precisavam de um ajudante num quiosque na praia. Foi lá em busca do emprego. O patrão lhe disse que o trabalho era pesado, carregar caixas de cerveja, sacos de gelo, limpar o quiosque, atender os fregueses. E poderia dormir lá mesmo, e que se agradasse do seu trabalho melhoraria o salário.
***
Mal tinha acabado de lavar a louça, a patroa entrou na cozinha com dinheiro na mão. Disse a ela, sem muitas explicações, que não precisava mais do seu trabalho, que tratasse de pegar suas coisas e fosse embora logo. Uma tristeza abateu-se sobre ela. Botou o pé na rua, não tinha mais qualquer esperança. Merda de vida. Pra quê viver assim? Caminhou a esmo por algumas horas. Quando viu, estava na beira da praia. No quiosque um rapaz, novo como ela, trabalhava cheio de energia. Coitado, era o próximo na lista dos afogados.
***
Ele olhou a moça, preocupado com seu rosto tão desesperançado, e acompanhou seu lento caminhar em direção à areia. Pensou em segui-la, mas tinha o que fazer. Teve é sorte de encontrar aquele trabalho. Não poderia perdê-lo. Ainda tinha muita vida para viver.
***
Vento, chuva, mar encapelado, vontade de