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Nova Safo: 2.a edição, com Introdução por Anna M. Klobucka
Nova Safo: 2.a edição, com Introdução por Anna M. Klobucka
Nova Safo: 2.a edição, com Introdução por Anna M. Klobucka
E-book499 páginas3 horas

Nova Safo: 2.a edição, com Introdução por Anna M. Klobucka

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Sobre este e-book

Maria Peregrina, uma minhota, herdeira rica, parte para estudar em Londres, onde descobre o que é amar e ser amada. Às limitações que lhe são impostas pela sociedade e pela moral, contrapõe a protagonista a sua filosofia de independência e determinação que “ressalta, clara, dos meus versos – moldura própria de uma ciência nova que elegeu princípios grandes, como sejam, – a bondade, a sensualidade, o autodeterminismo (a fatalidade do temperamento) e a liberdade da alma.”

Sobre Nova Safo, Anna M. Klobucka escreve que é “a primeira e, de longe, a mais ambiciosa obra literária de Vila-Moura (...) uma obra literária quase esquecida, considerada como o único romance decadente da literatura portuguesa (...) que merece ser resgatado do esquecimento por uma grande variedade de razões, não sendo uma das menores a figura inédita (e única, mesmo no século seguinte da literatura lusófona) da sua protagonista, uma lésbica intelectualmente e sexualmente assertiva e uma poetisa genial.”

IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de dez. de 2020
ISBN9781005341558
Nova Safo: 2.a edição, com Introdução por Anna M. Klobucka

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    Nova Safo - Visconde de Vila-Moura

    Nova Safo

    Tragédia Estranha

    Romance de Patologia Sensual

    Visconde de Vila-Moura

    2.ª edição

    com

    Introdução por Anna M. Klobucka.

    Edição integral, revista e anotada.

    Segundo a primeira edição, de 1912,

    da Livraria Ferreira, Lisboa.

    INDEX ebooks

    2020

    Ficha técnica

    Título: Nova Safo: Tragédia Estranha

    Autor: Visconde de Vila-Moura

    2.ª edição, com Introdução de Anna M. Klobucka.

    Original: Nova Safo: Tragédia Estranha: Romance de Pathologia Sensual, Livraria Ferreira, Ferreira Lda. Editores, Lisboa, 1912.

    Capa: Mulher com tábuas de cera e estilete (conhecida por Safo), Museu Arqueológico de Nápoles. fresco romano de cerca de 50 DC, de Pompeia, foto de Romualdodedeu (Creative Commons CC0 1.0), aqui.

    Revisão e notas: João Máximo, Luís Chainho e Patrícia Relvas

    Data de publicação: 24 de julho de 2017

    Edição 2.00 de 2 de dezembro de 2020

    Copyright © João Máximo e Luís Chainho, 2017, 2020

    Todos os direitos reservados.

    Esta publicação não poderá ser reproduzida nem transmitida, parcial ou totalmente, de nenhuma forma e por nenhuns meios, eletrónicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, digitalização, gravação ou qualquer outro suporte de informação ou sistema de reprodução, sem o consentimento escrito prévio dos editores, exceto no caso de citações breves para inclusão em artigos críticos ou estudos.

    INDEX ebooks

    www.indexebooks.com

    indexebooks.com@gmail.com

    www.facebook.com/indexebooks

    Lisboa, Portugal

    ISBN: 978-1005341558 (ebook)

    Introdução

    Nova Safo, o primeiro romance queer de Portugal

    ANNA M. KLOBUCKA¹

    O romance Nova Safo, do Visconde de Vila-Moura, publicado em 1912, continua a ser o menos conhecido e o mais subestimado de entre as principais obras em prosa do modernismo português.² Adiando para uma oportunidade futura uma discussão abrangente da sua marginalização no cânone literário, dedico-me aqui principalmente a explorar a complexa relação do romance com a poética e a política da sexualidade dissidente na intersecção das preocupações estéticas e ideológicas decadentistas e modernistas. Nova Safo não foi o primeiro romance português a tematizar centralmente a homossexualidade ‒ foi precedido por O Barão de Lavos (1891), de Abel Botelho, e também por Sáficas (1902) e O Sr. Ganimedes (1906), de Alfredo Gallis ‒ mas podemos considerá-lo como a exploração inaugural, nesta forma literária, de estruturas epistémicas, energias afetivas e horizontes criativos de um universo queer singularmente diversificado e inclusivo. Embora O Barão de Lavos possa ser lido como um texto cultural que excede as limitações da sua fórmula naturalista e orientação violentamente homofóbica, inscrevendo-se portanto, malgré lui, na genealogia nacional do reconhecimento e emancipação queer, a intencionalidade diametralmente oposta e energeticamente homofílica de Nova Safo modula o conjunto expressivo das forças autorais e narrativas combinadas do romance para produzir uma obra que, apesar de todas as suas notas dissonantes, é nada menos do que um hino simultaneamente triste e aspiracional à possibilidade queer

    Em termos metodológicos e afetivos, a minha leitura de Nova Safo é orientada pelo apelo de Eve Kosofsky Sedgwick a uma substituição dos protocolos de leitura paranoicos por protocolos reparadores, impulsionada por um desejo cuja natureza é aditiva e acretiva (149). Mais especificamente, este modo de leitura deseja organizar e conferir plenitude a um objeto que passará então a ter recursos para oferecer a um eu incipiente (149). Tendo em conta que a escassa literatura crítica sobre Nova Safo tem revelado fortes tendências paranoicas, a minha abordagem reparadora ao romance de Vila-Moura segue a implementação que Heather Love fez da proposta de Sedgwick para a sua exploração da história do sentimento queer, que tende a ser mais descritiva do que crítica e aspira a pensar [com os autores] em vez de contra eles, a identificar-se com eles em vez de os criticar pelas suas recusas e conservadorismo (23). O engajamento com a obra de Love resulta numa vantagem adicional neste contexto, dada a atenção renovada que esta autora dedica ao que chama de modernismo atrasado (6). Tudo isto ecoa de múltiplas formas nos fantasmas de decadência que assombram o repertório modernista português, de que Nova Safo é apenas um dos vários bons exemplos corroborantes desta proposição. Por outro lado, uma das consequências da estratégia reparadora que adoto nesta leitura é a atenção relativamente escassa que presto nela aos debates contemporâneos no campo teórico anglo-americano em torno dos assuntos de temporalidade queer e utopismo. Embora Nova Safo mereça amplamente ser discutida em profundidade neste enquadramento, a sua situação de precariedade como objeto de arquivo torna mais urgente, por agora, abordar a sua amorfa substância hermenêutica numa perspetiva crítica provisória que é principalmente descritiva e contextualizante.

    Opus magnum de Vila-Moura

    Considerando que tanto o autor como a obra foram largamente esquecidos, será conveniente começar com um esboço resumido da vida e da carreira literária de Vila-Moura, e com uma sinopse igualmente sintética de Nova Safo. Bento de Carvalho Lobo (1877-1935), o primeiro e único visconde de Vila-Moura, recebeu o seu título do rei D. Carlos I em 1900, ano em que completou o curso de Direito em Coimbra (Fernandes 10). Embora nascido em Vila Moura, passou a maior parte da sua vida em Porto Manso, outra propriedade familiar, também na região do Douro. A fonte mais extensa de informações biográficas sobre Vila-Moura é um livro publicado, dois anos após a sua morte, por João Alves, aparentemente o último de vários companheiros que residiram com ele em Porto Manso e que o acompanharam em longas viagens pela Europa. Apesar do ambicioso título do livro, O génio de Vila Moura: meditação sobre os problemas da literatura contemporânea, talvez o seu maior interesse esteja na representação que faz do ambiente de vida meticulosamente estilizado do visconde, que combina a estética feudal do Douro com infusões cosmopolitas. Tal acontece, por exemplo, quando Alves compara os torsos nus dos trabalhadores rurais com as estátuas de mármore que Vila-Moura estudava em Itália (28, 171) ou quando Louis Fabulet, o tradutor francês de Calamus, o conjunto de poemas homoeróticos de Walt Whitman, chega de Florença (onde fora companheiro de André Gide) para uma visita, e o seu anfitrião português encena para ele, como atração especial, uma dança dos rudes do Douro (39).

    Nova Safo foi a primeira e, de longe, a mais ambiciosa obra literária produzida por Vila-Moura, para além de ser o seu único romance. Embora da lista das suas publicações, anexa ao livro de Alves, constem vinte e cinco obras, os contos e as novelas que Vila-Moura continuou a publicar, em vários volumes, após 1912, começando com Doentes de beleza, em 1913, são bastante mais modestos no seu alcance narrativo do que Nova Safo, além de permanecerem firmemente confinados a temas e enredos heteronormativos.⁵ A lista inclui também vários estudos de figuras literárias e artísticas portuguesas, obras genologicamente difíceis de classificar, entre a biografia e o ensaio (Braga, Visconde de Vila Moura 299), entre as quais se incluem escritores como Camilo Castelo Branco, António Nobre, Fialho de Almeida e Mário Beirão, além do escultor Teixeira Lopes e do pintor António Carneiro (este último, tal como Beirão, um amigo pessoal de Vila-Moura, que o retratou e ilustrou alguns dos seus livros). Apesar de Nova Safo ter sido publicada em Lisboa, pela Livraria Ferreira, todas as obras subsequentes de Vila-Moura surgiram no Porto, geralmente sob a chancela da Renascença Portuguesa. Deputado parlamentar pelo Partido Regenerador durante os últimos dois anos da monarquia, Vila-Moura retirou-se da vida política depois da implantação da república, e estabeleceu-se permanentemente no Norte, alternando entre Porto Manso e o Porto (onde também possuía residência) ao longo das últimas duas décadas e meia da sua vida, embora passando sempre alguns meses por ano fora de Portugal, vaguea[ndo] pelos países da grande cultura, sobretudo pela sua querida e fecunda Itália (Alves 24).

    A narrativa de Nova Safo evidencia uma convergência semelhante de afinidades cosmopolitas e regionais, cristalizadas na figura da protagonista do romance, Maria Peregrina Álvares de Lorena e Vila-Verde, uma jovem fidalga do Minho.⁶ Nascida em 1880 e órfã desde muito cedo, a jovem é independente e pode dispor livremente da sua grande fortuna, que gasta em viagens e atividades literárias. É já famosa pelos seus dois volumes de poesia, Nova Safo e Emparedada, quando o narrador a conhece numa viagem de comboio, entre o Porto e Guimarães, para ser, mais tarde, encarregue de escrever a sua história a partir das notas que Maria Peregrina lhe entrega. Peregrina descreve estas anotações como "as minhas confissões, que marcam mais ousio […] do que as celebradas confissões de Rousseau, e a sua motivação para as partilhar como decorrente de um sentido de missão pública orientado para o futuro: Quero que os que estão por vir aprendam no meu caso a coragem da verdade" (Vila-Moura 55).

    Esta declaração sobre a natureza confessional da história de Peregrina e a expressão coragem da verdade aludem ao que Óscar Lopes, no seu resumo hostil e didático da carreira literária de Vila-Moura ‒ o único texto crítico dedicado ao autor no âmbito canónico da história literária portuguesa ‒ viria a descrever como uma atitude […] nitidamente apologética […] em relação a diversas manifestações de «amor exótico» ou «extravagante» de que o livro constitui um inverosímil mostruário (418). Estas manifestações incluem, em primeiro lugar, as diversas relações lésbicas de Peregrina, que começam, paradigmaticamente, com a sua governanta inglesa, uma aventureira inteligente, na casa dos trinta, que tirocinara o ensino pela Alemanha, Áustria e França (79) antes de se estabelecer no Minho, para cuidar da sua pupila.⁷ Aos quinze anos, Peregrina inicia a sua própria itinerância transnacional quando os seus tutores a inscrevem no St. James College, em Petersfield, Inglaterra, onde se destaca pelo seu desempenho académico brilhante e onde estabelece relações estreitas com vários e várias colegas, incluindo Edgar, Hugh (o companheiro constante de Edgar, um adolescente de olhar quebrado), Violet e Helen, a predileta de Maria Peregrina (90).⁸ Este grupo de adolescentes queer conversa profundamente sobre a vida, a arte e as vantagens e desvantagens do amor extravagante vis-à-vis o amor vulgar (89), enquanto Peregrina lhes explica o projeto de livro em que está a trabalhar ‒ Nova Safo ‒ que se propõe reinventar o legado de Safo para os tempos modernos.

    O idílio de Petersfield é interrompido quando Helen parte para celebrar um casamento arranjado, e Edgar (apaixonado por Peregrina, apesar da sua relação com Hugh) se suicida depois de Peregrina o convidar para a sua cama na noite de núpcias de Helen ‒ a fim de perder a virgindade ao mesmo tempo que a sua amada ‒ para depois rejeitar todas as tentativas de intimidade do rapaz. Já legalmente emancipada e na posse da sua fortuna, Peregrina abandona a escola para se instalar em Londres, com Violet como sua dama de companhia, contratada por cinco anos; um ano depois, a publicação de Nova Safo em Portugal é recebida com aplausos e protestos (112). Por fim, Peregrina e Violet deixam Londres e, depois de viajarem pela Europa, instalam-se por algum tempo na Grécia, a pátria espiritual de Peregrina (119), onde além de estudar arte, explorar a cultura grega e escrever, a herdeira colabora na organização de refinadas orgias com ricos expatriados de gostos semelhantes aos seus. É na Grécia que acrescenta mais um companheiro à sua comitiva: Jacob, o anão alemão, a quem resgata de uma barraca de feira e emprega como serviçal. Depois de trocar a Grécia por Paris, em novembro de 1900, instada por um telegrama de Robert Ross, que lhe anunciava que Oscar Wilde se encontrava no leito de morte, mais viagens se seguem, até que, dez anos depois, Peregrina (que acaba de publicar o seu segundo poema longo, Emparedada), acompanhada pela sua fiel Violet, regressa a Portugal.

    Tendo conhecido o narrador anónimo do romance em junho de 1910, e tendo-lhe entregado os papéis sobre os quais aquele baseará a sua história da nova Nova Safo, Peregrina deixa o Minho para ir morar em Lisboa. (Neste ponto, vale a pena mencionar que não é claro como é que o narrador consegue acompanhar e recontar os eventos subsequentes do romance, pois nunca mais voltará a reaparecer na história.) Em Lisboa, rodeada por uma aura de notoriedade literária e pessoal, Peregrina conhece outro aristocrata/escritor do Norte, Nuno Álvaro de Sousa e Vilar, o terceiro conde de Nevogilde (135). Nuno de Vilar entrou recentemente numa relação de amitié amoureuse com um jovem escultor e pintor, Rui Augusto, e os dois homens logo passam a ser os amigos mais próximos de Peregrina, em cuja companhia ela se refugia da sua vida social agitada em outros dias, aqueles em que tratava à puridade os íntimos, que eram os da casa, Nuno de Vilar e Rui (148). Outro acontecimento importante é a chegada a Lisboa do novo embaixador britânico, que se revela ser John Brook, o marido de Helen, a amada de Peregrina em Petersfield. Helen visita Peregrina, que a aconselha a deixar o marido que odeia: Deixas de ser ministra de Inglaterra, mas és a mulher digna, ainda que vivas como uma rameira, de amores com outras rameiras. Sê a mulher livre […] (162).

    Nos capítulos finais do romance, a ação desloca-se principalmente para o Norte, quando (por insistência de Peregrina) Nuno e Peregrina viajam juntos para Vila Feia, o paço ancestral de Nuno, no Douro. No último momento, Rui recusa juntar-se a eles, para grande desgosto de Nuno. Durante o mês que passam em Vila Feia, Nuno e Peregrina tornam-se amantes; o relacionamento prossegue depois de regressarem a Lisboa, mas é interrompido pela morte de Rui, quando lutava ao lado dos insurgentes na revolução republicana de 5 de Outubro. A morte de Rui deixa Nuno esmagado pela dor e impossibilitado de se juntar a Peregrina, que já partira para a Figueira da Foz, onde os dois planeavam passar o outono. Algumas semanas depois, Nuno escreve-lhe a terminar o relacionamento. É então que Jacob conta a Peregrina que Nuno apareceu nas proximidades da Figueira, exigindo ter sexo com ele. Jacob tinha-se submetido a Nuno em ocasiões anteriores, sob indicação de Peregrina; desta vez, no entanto, o anão aproveita a oportunidade para se vingar de Nuno, por o ter violado e por ter abandonado Peregrina, e mata-o no decurso do encontro. Peregrina corre para a praia onde o corpo de Nuno jaz e permanece ao seu lado até que as ondas da maré-alta os arrastam para o mar. O romance termina com a reprodução da última obra de Peregrina, Elegia da morte, que terminara pouco antes do suicídio.

    Um álbum de recortes de sentimentos queer

    As motivações que levaram a que o romance de Vila-Moura fosse tão completamente marginalizado poucos anos após a sua publicação e, depois, praticamente esquecido durante mais de um século, continuam envolvidas nalgum mistério. Como uma das possíveis razões, proponho que um aspeto intrinsecamente queer de Nova Safo seja a incapacidade e/ou recusa do texto em conformar-se com padrões estabelecidos de coesão narrativa e qualidade estilística, caraterística que, por vezes, o torna genuinamente difícil e até desagradável de ler.⁹ Trechos inteiros do romance parecem confusos e amadores na sua conceção e execução, facilitando a rejeição da obra de Vila-Moura como má escrita, indigna de inclusão canónica ou de interesse crítico sério. É claro que acusações semelhantes de ilegibilidade têm sido tradicionalmente dirigidas contra a notoriamente difícil escrita decadentista em geral, cuja combinação de sexualidade, violência e pensamento esotérico [...] causa apreensão até aos leitores contemporâneos mais pacientes e recetivos (Constable, Denisoff e Potolsky 3). No entanto, transcendendo o poder explicativo desta filiação literária, Nova Safo, comummente descrita como o único romance decadente de Portugal, também pode ser vista como uma coleção deliberadamente provisória e desordenada de referências, artefactos, imagens e rascunhos, que não foram concebidos para serem combinados numa qualquer completude discernível, seja ela estética ou ideológica. Poderá, portanto, ser aconselhável e esclarecedor interpretar Nova Safo não apenas como uma obra de ficção literária de composição convencional e circulação pública, mas também como uma espécie de álbum de recortes, semiprivado e contracultural. Neste sentido, Nova Safo constituiria um espaço idiossincrático de representação, governado por uma sensibilidade antiquária, combinada com um impulso de revelar ou trazer para primeiro plano, por acumulação e justaposição, diversos significados latentes e inesperados, tal como tem sido historicamente o caso dos álbuns de recortes criados por sujeitos queer ou por outros indivíduos marginalizados (Moynihan). Tais álbuns de recortes carecem dos propósitos formais e das ambições artísticas das colagens modernistas, e a sua (des)articulação não é sustentada por uma qualquer ideologia unificadora de produção estética; quaisquer estruturas de coesão que possam ser detetadas através da sua análise pertencem ao domínio da epistemologia afetiva e sensorial, como formas de compreender os próprios sentimentos e de pressentir os contornos do conhecimento elusivamente disponível.

    É verdade que ler Nova Safo com recurso a uma tal estrutura hermenêutica pode parecer corresponder ao que Liz Constable, Dennis Denisoff e Matthew Potolsky denunciam como a tendência para o sincretismo irrefletido (3) e um impulso para a classificação e taxonomia (4) de temas, imagens e figuras decadentes, que podemos observar em muitos textos críticos sobre este corpo de literatura. No entanto, o objetivo da minha abordagem é aproveitar uma das evoluções recentes da teoria queer, que opta pela exploração de formas não teleológicas e antidisciplinares de produção de conhecimento, assumindo um certo tipo de relação benjaminiana com o conhecimento, um caminhar por avenidas desconhecidas na direção «errada», em oposição a não sair de territórios bem cartografados e saber exatamente qual o caminho a seguir, antes de começar (Halberstam 6). Em relação a Nova Safo, e em contraste com a procura do conhecimento sob a forma de exposição (Sedgwick 138) da teoria paranoica, uma análise paciente do repositório exuberantemente excessivo de sentimentos e representações queer do romance pode, de alguma forma, ajudar a dar ao texto uma dimensão da plenitude que tão manifestamente lhe falta quando abordado através de protocolos de leitura mais disciplinados e exigentes.

    Para começar, Nova Safo acomoda um grande elenco de personagens sexualmente dissidentes, apresentadas mais ou menos explicitamente como tal. Isto sucede desde a primeira cena do romance, na qual o narrador é testemunha dos olhares perversos trocados pelas ainda não identificadas Maria Peregrina e Violet, num ambiente de certa intimidade sensual (43). Depois surge Luísa Huley, a governanta inglesa de Peregrina, a que se segue o grupo de colegas de escola da protagonista, em Petersfield, e, alguns anos depois, a comunidade de ricos expatriados cosmopolitas, na Grécia, entre os quais Peregrina procura aqueles que mais se lhe aproximavam em perversão e requintes (124). Depois do regresso de Peregrina a Portugal, os leitores do romance ficam a conhecer o principal personagem masculino, Nuno de Vilar, e testemunham o início da sua relação com Rui Augusto. Curiosamente (dada a franqueza com que as relações eróticas lésbicas e gays foram apresentadas no texto até este ponto), o encontro de Nuno com Rui é representado através de um dispositivo astuto de elisão narrativa ‒ suficientemente transparente na sua codificação para transmitir a mensagem aos leitores motivados, mas, ao mesmo tempo, prudentemente camuflado em negação plausível ‒ quando, da cena em que Nuno convida Rui para jantar, a narrativa salta diretamente para o pequeno-almoço que ambos tomam juntos alguns dias depois (144). A cautela é compreensível, pois o personagem de Rui parece modelado, pelo menos em parte, no poeta Mário Beirão, que residia com Vila-Moura em Porto Manso à época em que Nova Safo foi publicada.¹⁰ No entanto, alguns capítulos depois, a circunspeção é lançada ao vento quando os dois homens conversam longamente sobre os seus sentimentos mútuos, ‒ bem como sobre o caso amoroso de Nuno com Peregrina, ‒ em linguagem incomummente frontal e direta: Porque és tu tão esquivo aos meus afetos, depois da convivência que temos tido? (181), pergunta Nuno e, mais adiante, afirma: Vais deixar abraçar-te (182). Apesar da resistência de Rui ao amor de

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