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Professores, leitura e escrita: Relações e ecos para suas práticas pedagógicas
Professores, leitura e escrita: Relações e ecos para suas práticas pedagógicas
Professores, leitura e escrita: Relações e ecos para suas práticas pedagógicas
E-book399 páginas11 horas

Professores, leitura e escrita: Relações e ecos para suas práticas pedagógicas

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Sobre este e-book

Este livro investiga as relações com a leitura e a escrita estabelecidas por professores do ensino fundamental, escutando esses docentes com atenção e sensibilidade. Uma das contribuições é questionar as relações dos professores com a leitura e a escrita e as suas consequências para a prática pedagógica escolar a estudiosa assinalando o quão importante é compreendermos as histórias e memórias dos professores, a fim de que essas análises sobre suas práticas pedagógicas escolares sejam aprofundadas e críticas. Trata-se de importância ímpar para pedagogos, profissionais da educação de maneira ampla e, também, para todos aqueles que se interessam pela leitura, escrita e formação de professores.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de dez. de 2020
ISBN9786587782447
Professores, leitura e escrita: Relações e ecos para suas práticas pedagógicas

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    Professores, leitura e escrita - Filomena Elaine Paiva Assolini

    Paulo

    APRESENTAÇÃO

    Neste trabalho, a pesquisadora Elaine Assolini traz resultados de uma pesquisa que investigou a relação que sujeitos-professores estabelecem com a leitura e a escrita. O interesse pelo estudo nasceu a partir da observação de que, antes mesmo de deter-se na reflexão sobre os saberes pedagógicos, fazeres e ações pedagógico-educacionais dos professores, fazia-se necessário compreender como se relacionavam com a leitura e a escrita, que sentimentos e emoções vinculavam-se a essas práticas culturais, bem como as consequências e implicações dessas relações para a sua docência. Dessa forma, a autora preocupa-se com questões anteriores às práticas pedagógicas, didáticas de ensino desenvolvidas pelos professores, considerando os seus saberes gerais e específicos sobre leitura, escrita, alfabetização e letramento. Reside aqui uma das riquezas deste trabalho, pois a estudiosa não se ocupa de imediato com as consequências, ou seja, com as relações construídas com a leitura e a escrita pelos professores, mas sim com fatores que antecedem essas relações. Há, portanto, movimento científico no sentido de buscar algumas das raízes, das causas dessas relações, que, como é mostrado ao longo do trabalho, repercutem nos fazeres pedagógicos dos professores.

    Em seu percurso de investigação, a pesquisadora nos traz os fundamentos teóricos da Análise de Discurso de Matriz Francesa, destacando questões, conceitos e definições centrais desse campo de conhecimento desafiador. Desafiador porque para compreendê-lo é preciso conhecermos e lidarmos com a linguística, com a semântica, com o materialismo histórico, com a ideologia, tendo em vista que esses eixos são atravessados pelo inconsciente.

    Os ensinamentos de Michel Pêcheux e seus seguidores são abordados com propriedade, sendo debatidos, exemplificados e articulados. É possível observar, ao lermos o capítulo referente à Análise de Discurso de Matriz Francesa (Pecheuxtiana), que a autora é estudiosa assídua e dedicada dessa área, pois consegue discorrer sobre conceitos e problematizações complexos de modo didático e instigante, convidando o leitor a aproximar-se da Análise de Discurso de Matriz Francesa (Pecheuxtiana), AD, doravante.

    Ler e interpretar de maneira menos ingênua e literal, saber que podemos escutar o dito no não-dito, observar os efeitos de sentido de nossos dizeres, flagrar sentidos em movimento, migrando de uma formação discursiva para outra, notar o poder transformador do discurso nas relações e interações entre os sujeitos, tudo isso sempre me fascinou

    Em diálogo com a AD, temos o aparato teórico da Teoria Sócio-Histórica do Letramento-Abordagem discursiva, que fornece a autora forte embasamento para pensar a leitura, a escrita e a produção textual. A pesquisadora, ao discorrer sobre essa teoria, ressalta que: Compreender que a escrita está associada, desde os primórdios dos tempos, ao jogo de dominação/poder, participação/exclusão que caracteriza ideologicamente as relações sociais, principalmente em uma sociedade desigual como a nossa, entender a alfabetização como um processo que nunca chega a um fim, saber que existe algo mais amplo que a alfabetização, que é o letramento, e que este também nunca se encerra, que a autoria pode se instalar também em produções linguísticas orais, que o discurso oral do sujeito não alfabetizado pode estar perpassado por características do discurso escrito, inteirar-me da proposta alfabetizar-letrando sempre me deixou encantada e motivou-me a estudar e a pesquisar o letramento, em sua abordagem discursiva, diz a pesquisadora.

    As contribuições de teóricos como Jacques Derrida, Michel Foucault e Jacques Lacan enriquecem o aparato teórico construído pela autora, que se vale de seus postulados para elucidar problemáticas e realizar análises discursivas de um corpus constituído a partir de vasto material. Derrida ‘brinca’ com as palavras, trazendo à baila a história, a etimologia de cada uma, prenhe e repleta de sentidos esquecidos, naturalizados pelo tempo, mas cujos traços permanecem ali, sendo atualizados pela memória, ensina-nos Assolini (2018). O filósofo francês Michel Foucault traz os fundamentos concernentes à escrita de si, a escrita, de forma ampla, bem como as relações de poder, sempre tão delicadas na instituição escolar, investigada destemidamente pela autora. A aproximação à psicanálise freudo-lacaniana dá-se por conta da preocupação desse campo teórico com a singularidade do sujeito, que é olhado e analisado com profundidade, considerando que enuncia a partir de seu desejo, de seu inconsciente. A pesquisadora consegue tratar e trabalhar com relevantes conceitos psicanalíticos de modo a convidar a leitor a também desejar conhecer as contribuições dessa área do saber.

    A tessitura teórica urdida por Elaine Assolini é composta por diferentes fios que se entrelaçam, dialogam, convivem ora harmoniosamente, ora experimentam embates e discussões. Mas, uma questão é certa e irrefutável: promover o entrelaçamento de diferentes fios de distintos campos do saber, em prol da construção de uma pesquisa científica que traz resultados significativos, é tarefa para pesquisadores que, de fato, preocupam-se com a melhoria da escola, do ensino, com o desenvolvimento de crianças e jovens e, ainda, com o avanço, o crescimento profissional dos professores,

    A estudiosa trabalhou com 35 (trinta e cinco) sujeitos, professores do ensino fundamental, participantes de oficinas pedagógico-culturais. Esses profissionais do ensino concederam-lhe entrevistas, depoimentos orais e escritos, abriram as portas de suas salas de aulas, permitindo que suas aulas fossem observadas e, ainda, partilharam textos escritos pelos alunos pelos quais eram responsáveis. Falamos de um número considerável de sujeitos, 35 (trinta e cinco), que celebraram parceria e construíram laços sociais harmoniosos e produtivos com a cientista.

    Devo salientar aqui a relação de confiança entre a pesquisadora e os sujeitos de pesquisa, que foram generosos em seus dizeres e divisão de experiências, vivências e materiais. É pertinente assinalar que não é tarefa fácil alcançar a confiança de professores, sobretudo na sociedade atual, que parece responsabilizá-los por todos os acontecimentos e situações da sala de aula, de modo particular e da escola, de maneira ampla. A confiança dos professores, conquistada pela estudiosa, deve-se ao seu posicionamento ético, à sua seriedade científica, à sua busca por conhecer o que de fato acontece no chão da escola, no seu interior, dentro das quatro paredes da sala de aula, sem julgar, criticar os professores e suas ações. Não por acaso, os cursos de formação continuada ministrados pela autora sempre foram muito bem recebidos e aceitos pelos professores, cujo desenvolvimento profissional sempre foi e continua sendo objeto de preocupação por parte da estudiosa.

    A relação com o saber, tal como pensada por Bernard Charlot, os diferentes conceitos de autoria e a questão da produção de sentidos, a história da leitura, do mundo grego aos dias atuais, baseada nas valiosas contribuições de Roger Chartier, bem como diferentes conceitos de escrita são, também, fundamentos teóricos importantes de que a autora se vale, pensando e discutindo sobre eles com seriedade científica.

    Outra riqueza do presente estudo refere-se às concepções de leitura dos professores. A pesquisadora, Elaine Assolini, dedica-se a conhecer e analisar as concepções de leitura desses profissionais, mostrando como elas funcionam em sala de aula, ou seja, como a partir dessas concepções são desenvolvidas atividades de leitura, estudo do vocabulário, atividades de compreensão e interpretação textual. É válido ressaltar que todas as concepções por ela identificadas, ou seja, ler é sinônimo de decodificar, ler é sinônimo de interagir, ler é ler o que o livro didático traz, ler é ler na tela, são pensadas, examinadas, discutidas à luz de suas bases teóricas,. às quais se somam outros estudiosos que também colaboram para refinar as análises e reflexões.

    A última seção deste trabalho é destinada ao conceito intérprete-historicizado, que vem sendo construído e desenvolvido pela autora desde a elaboração de sua tese de doutorado. Trata-se de um conceito que compreende leitura como interpretação, destacando que sentidos outros podem e devem circular na sala de aula. Esse conceito, proposto pela investigadora, contrapõe-se ao entendimento de uma leitura literal e dirigida, que permanece apenas no âmbito, no nível da decodificação. Decodificar é importante sem dúvida, mas o leitor não pode permanecer apenas nesse nível. Ele precisa ir além, ocupando a posição de intérprete historicizado, que lhe permite ler para além do que está posto, do que parece óbvio, explícito. A posição intérprete historicizado possibilita ao educando historicizar os sentidos, compreendendo como foram sendo constituídos, inaugurar novas redes de sentido, mobilizar o seu interdiscurso e memória discursiva. Trata-se, portanto, de um conceito que, caso seja considerado e incorporado ao trabalho com a alfabetização, leitura, escrita e letramento poderá contribuir significativamente para a formação de estudantes críticos, perspicazes em relação aos sentidos que se lhe apresentam como natural, responsáveis pelos rumos de sua própria história. E isso não é pouca coisa.

    Desejo que os leitores possam saborear este trabalho, que tem muito a lhes ensinar e a colaborar com a sua formação profissional e pessoal. Espero, também, que os leitores dialoguem com a autora, tragam retornos, devolutivas, críticas e questionamentos, pois, por meio da discussão e da reflexão podemos continuar nossa caminhada rumo ao conhecimento científico, que tanto nos desafia.

    Dra. Elci Antonia de Macedo Ribeiro Patti

    Psicanalista, professora no Ensino Superior

    INTRODUÇÃO

    Algumas questões

    A realização do curso de doutorado, de 2000 a 2003, respondeu a algumas perguntas, mas, já por ocasião da defesa, muitas outras foram formuladas, dentre elas, por que alguns professores não gostavam de ler? Por que não se aproximavam de leituras literárias, concentrando-se principalmente na leitura de livros didáticos e dos manuais que os acompanhavam? Por que temiam a escrita, inclusive de relatórios sobre suas práticas pedagógicas, por exemplo? Por que tantas dificuldades e medos para ler e redigir relatórios de alunos?

    A oportunidade de fazer parte do corpo docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, FFCLRP/USP, por meio de um concurso público de provas e títulos, a partir de 2005, deu-me condições adequadas de produção para realizar investigações a respeito de alguns problemas que me inquietavam. Assim, durante alguns anos, as pesquisas por mim realizadas se detiveram em questões como: o não desejo de ler e escrever, por parte de muitos professores, sendo essas práticas, a da leitura e a da escrita, fundamentais para o exercício responsável de seu magistério, materiais didático-pedagógicos por eles utilizados em sala de aula, autoria nas produções linguísticas infantis, concepções de alfabetização, letramento, autoria, formação de professores, concepção de língua portuguesa, escrita, literatura, alfabetização, letramento, o funcionamento linguístico-discursivo de textos de programas e parâmetros oficiais de ensino, discursos dos sujeitos-professores sobre o seu magistério, o discurso pedagógico escolar tradicional (DPE), e suas assimetrias nas relações, enfim, foram várias pesquisas concretizadas. Consegui obter muitas respostas que me permitiram conhecer um pouco os professores do ensino fundamental, seus gostos, opções de leitura, o quê, como e quando escreviam, como desenvolviam suas práticas em sala de aula, quando e em que condições de produção os educandos posicionavam-se como autor, por exemplo. Entretanto, algo ainda me inquietava e me incomodava muito.

    O interesse em pesquisar a relação que sujeitos-professores estabelecem com a leitura e a escrita nasceu a partir da observação de que, antes mesmo de me deter na reflexão sobre seus saberes pedagógicos, fazeres e ações pedagógico-educacionais, fazia-se necessário compreender como se relacionavam com a leitura e a escrita, que sentimentos e emoções vinculavam-se a essas práticas culturais, bem como as consequências e implicações dessas relações para a sua docência. Ou seja, cheguei à conclusão de que eu precisaria me preocupar com questões anteriores às suas práticas pedagógicas, didáticas de ensino, conhecimentos gerais e específicos sobre leitura, escrita, alfabetização e letramento.

    As leituras sobre o conceito de memória discursiva, a partir de Pêcheux (1999), Orlandi (1999), bem como os postulados de Charlot (2000; 2005) a respeito da relação do sujeito com o conhecimento e, ainda, o conceito lacaniano de après-coup, segundo o qual acontecimentos traumatizantes podem ser ressignificados, a partir de experiências posteriores, deram-me argumentos para que eu me ativesse a essa problemática, partindo do pressuposto de que a memória não se apaga, mas é atualizada no discurso e continua produzindo e reverberando sentidos.

    A proposta de realizar uma pesquisa que se concentrasse nas relações que os professores haviam construído com a leitura e a escrita, ao longo de suas vidas, observando possíveis ecos para as suas práticas profissionais foi escutada e bem recebida pela profa. dra. Maria José Fernandes Faria Coracini, no início do ano de 2014, por ocasião de um evento científico. Assim, no início de 2015, comecei o curso de pós-doutorado sob sua supervisão, no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade de Campinas, IEL-Unicamp.

    Realizar o curso de pós-doutorado, nos anos de 2015, 2016 e 2017, permitiu-me pensar a problemática acima descrita à luz das teorias que, desde o mestrado, fundamentaram os meus estudos, ou seja, a Análise de Discurso de Matriz Francesa (pecheuxtiana) e a Teoria Sócio-Histórica do Letramento – abordagem discursiva, tal como proposta por Tfouni. A esses campos teóricos, somam-se as contribuições da Psicanálise freudo-lacaniana e os estudos de Derrida.

    Quando iniciei o pós-doutorado, já havia lido e estudado alguns textos e livros dos psicanalistas Sigmund Freud e Jacques Lacan, assim como já havia concluído alguns cursos, mas as perguntas, as discussões e as reflexões dos integrantes do Grupo de Estudos Psiquê, coordenado pela profa. dra. Maria José Fernandes Faria Coracini, de que participei e ainda participo, ajudaram-me a aprofundar alguns conceitos, a aprender inúmeros outros e a estabelecer relações, observando semelhanças e afastamentos entre a Psicanálise e a Análise de Discurso de Matriz Francesa (pecheuxtiana).

    Além de Pêcheux, Foucault, Freud e Lacan, a proposta Discursivo-Desconstrutivista, pensada e formulada por Coracini (2010; 2015), conta, também, com os ensinamentos e postulados de Jacques Derrida. Conheci e aprendi com a Prof.ª Coracini a amar Derrida e suas contribuições para entendermos o discurso, a memória, a leitura e a escrita.

    Os estudos do discurso sempre me fascinaram, desde quando fui a eles apresentada, por ocasião de um curso de Especialização em Linguística, na Unesp-Araraquara, em um módulo ministrado pela profa. Maria do Rosário Valencise Gregolin.

    Ler e interpretar de maneira menos ingênua e literal, saber que podemos escutar o dito no não dito, observar os efeitos de sentido de nossos dizeres, flagrar sentidos em movimento, migrando de uma formação discursiva para outra, notar o poder transformador do discurso nas relações e interações entre os sujeitos, tudo isso sempre me fascinou. Pensar discursivamente as circunstâncias mais amplas da enunciação, no contexto sócio-histórico, cultural e ideológico, nas condições de produção do contexto imediato em que ocorrem os nossos dizeres, saber que o imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem, compreender que o sentido não existe por si mesmo, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas, entender que elas mudam segundo as posições ocupadas por aqueles que as empregam é interessantíssimo, instigante. A Análise de Discurso de Matriz Francesa (pecheuxtiana), campo teórico ao qual me filio, desde sempre, contribuiu sobremaneira para responder a algumas das indagações que me inquietavam em relação aos professores e seus vínculos com a leitura e a escrita. Entendo, acredito e observo que a Análise de Discurso de Matriz Francesa (doravante AD) promove deslocamentos significativos nas maneiras de ler (interpretar) e analisar o texto e o discurso, assim como em nós mesmos, enquanto sujeitos-pesquisadores.

    À Teoria Sócio-Histórica do Letramento – abordagem discursiva – fui apresentada em 1996, quando conheci a profa. dra. Leda Verdiani Tfouni e comecei a cursar algumas disciplinas por ela ministradas, no âmbito do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia de Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, DPE-FFCLRP/USP.

    Compreender que a escrita está associada, desde os primórdios dos tempos, ao jogo de dominação/poder, participação/exclusão que caracteriza ideologicamente as relações sociais, principalmente em uma sociedade desigual como a nossa, entender a alfabetização como um processo que nunca chega a um fim, saber que existe algo mais amplo que a alfabetização, que é o letramento, e que este também nunca se encerra, que a autoria pode se instalar também em produções linguísticas orais, que o discurso oral do sujeito não alfabetizado pode estar perpassado por características do discurso escrito, inteirar-me da proposta alfabetizar-letrando sempre me deixou encantada e motivou-me a estudar e a pesquisar o letramento, em sua abordagem discursiva. As sólidas e pertinentes contribuições dessa teoria para o entendimento das relações dos sujeitos-professores com a leitura e a escrita poderão ser observadas nas análises discursivas.

    Devo a Charlot (2000; 2001; 2005; 2013) o conceito de relações com o saber, fundamental para o desenvolvimento da pesquisa de pós-doutorado. A leitura e o estudo de seus textos ajudaram-me a compreender a importância de conhecermos as relações dos sujeitos com o conhecimento, como se relacionam com a sua aquisição, dentro e fora da escola, a relação com os processos de (des)construção de seus conhecimentos e, ainda, o quão importante é analisarmos a escola tendo em mente o que professores e estudantes sentem e dizem sobre ela, ou seja, a partir da subjetividade desses sujeitos.

    A Psicanálise freudo-lacaniana me interessou em função, principalmente, das noções de aprés-coup, segundo Lacan, e a posteriori, de acordo com Freud, subjetividade, sujeito, transferência, dentre outras, que me possibilitaram concretizar análises discursivas mais bem fundamentadas e aprofundadas, segundo a minha avaliação.

    O significado de a posteriori pode ser apreendido pela sua tradução do alemão, em que o verbo tragen significa levar, carregar e o advérbio nach significa depois. Souza (2010, p. 206-207), esclarece que nachträglich é o advérbio ou adjetivo, e nachträglichkeit, o substantivo.

    Souza (2010), nessa linha de pensamento, salienta que:

    Embora não se trate de um substantivo abstrato, e seja antes uma paráfrase, esta seria uma opção defensável, talvez: atribuição retrospectiva ou posterior de sentido-juntando-se entre colchetes o termo alemão. Outra hipótese, esta com a vantagem da simplicidade, seria recorrer a efeito a posteriori. (Souza, 2010, p. 219)

    Usarei ressignificação para me referir ao substantivo nachträglichkeit, considerando que algo do vivido fica reminiscente e latente, como se suspenso, recebendo mais tarde significação, significações.

    Aprender, com Freud e Lacan, que o psiquismo não está marcado por um determinismo linear e imutável, que podemos nos libertar e ajudar outros sujeitos também a se libertarem da rigidez de suas histórias e sentimentos, ressignificando-os, foi para mim marcante, um divisor de águas para o meu trabalho com os sujeitos-professores e comigo mesma. O encantamento, a fascinação e a paixão pelos teóricos da psicanálise sempre foram associadas a muita preocupação, no sentido de fazer leituras críticas responsáveis, cujos argumentos me ajudassem a compreender, fundamentar e respaldar algumas análises discursivas. A análise pessoal, à qual me dedico há 18 (dezoito) anos, os cursos e os estudos que venho fazendo e as supervisões clínicas também me ajudaram a entender muitos conceitos, casos clínicos e o corpus que tinha em mãos para analisar.

    No texto Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar, ao destacar essa aura transferencial com a qual os mestres são investidos, Freud (1914 [1986]) ressalta que estes são mais decisivos no aprendizado dos alunos do que as disciplinas que ensinam. Não é raro, por exemplo, que um aluno escolha uma dada profissão ou fuja dela, em função de um professor que teve ao longo da vida.

    Aprender que Freud nos revela a existência do inconsciente, fazendo cair por terra o sujeito centrado na consciência, mostrando-nos que o eu está submetido à força inconsciente e que esta determina o modo de existência da espécie humana também me instigou aos estudos psicanalíticos. A questão do inconsciente mostra-nos que a linguagem é opaca e escorregadia e que não há purificação alguma capaz de torná-la límpida e transparente.

    Aproximei-me da Psicanálise freudo-lacaniana, também, por sua valorização ao sujeito-professor, à sua subjetividade e singularidade, e, ainda, por conta das críticas que faz ao esvaziamento do lugar de professor, que, na sociedade contemporânea, parece crescer significativamente. Nessa perspectiva, Voltolini (2011) destaca que:

    O discurso pedagógico contemporâneo tende a esvaziar o espaço da subjetividade do professor, reservando-lhe um lugar abstrato de mediador entre o aluno e o objeto de conhecimento. Sabemos os múltiplos nomes reservados ao lugar de professor, que mudam conforme as teorias adotadas, sem variar, contudo, o seu nível de esvaziamento: facilitador, intermediador, instrumento de aprendizagem etc. (Voltolini, 2011, p. 32)

    Dando prosseguimento, destaco que os complexos textos de Derrida exigem dedicação e paciência. O filósofo pressupõe um leitor muito atento, capaz de acompanhá-lo no ir e vir de conceitos, definições e argumentos. Ler alguns textos, como, por exemplo, A farmácia de Platão, Posições, Mal de Arquivo e outros capítulos de seus livros foi uma experiência nova para mim, que me enriqueceu e me permitiu adquirir outros argumentos para fundamentar minhas investigações.

    De acordo com Coracini (2010),

    a obra de Derrida efetua o que se convencionou denominar de desconstrução, modo de pensar que problematiza de dentro o que parece natural, óbvio, familiar, de modo a provocar, exatamente aí, estranhamentos, a trazer questionamentos sobre as articulações e as decorrências. (Coracini, 2010, p. 128)

    Não se trata, portanto, de destruir para construir sobre novas bases: não é possível, segundo o filósofo, estar fora, no exterior daquilo que nos constitui, como é o caso da epistemologia ocidental baseada no primado da racionalidade e na busca da verdade e da perfeição. Os trabalhos de Derrida focalizam a linguagem e subvertem as concepções vigentes de leitura, escritura e texto, questionando-o como fonte de seu sentido e deslocando a noção de texto para todo e qualquer acontecimento. Coracini (2010) explica-nos que alguns críticos confundem desconstrução com destruição e consideram que suas obras destroem os primados metafísicos da filosofia.

    Escritor lúdico, Derrida brinca com as palavras, trazendo à baila a história, a etimologia de cada uma, prenhe e repleta de sentidos esquecidos, naturalizados pelo tempo, mas cujos traços permanecem ali, sendo atualizados pela memória. Como diz Coracini (2010, p. 31): [...] no caso da escrita derrideana, se for possível falar da lógica, diríamos que ela se opõe, ao mesmo tempo em que dela se serve para o trabalho de desconstrução. E, com a estudiosa, especialista nesse filósofo, saliento que: [...] escrever é para Derrida cortar a folha, levantar a pele das palavras, fazer incisões, cortes, enxertos, inserções de si no corpo estranho do outro (Coracini, 2010, p. 31).

    Considerando as bases teóricas acima expostas, bem como os passos dados até a chegada no curso de pós-doutorado, destaco que, como objetivo geral, propusemo-nos a buscar compreender as relações que sujeitos-professores estabeleceram com a leitura e a escrita, ao longo de suas vidas, e como essas relações ecoam em suas práticas pedagógicas escolares. Como objetivos específicos, buscamos: (a) conhecer as suas concepções de leitura; (b) identificar indícios de autoria em produções linguísticas escritas de estudantes pelos quais esses professores são responsáveis; (c) construir o conceito de intérprete-historicizado.

    Sendo assim, apresento neste Relatório de Pesquisa destinado ao processo de livre-docência parte do Relatório de Pesquisa de Pós-Doutorado, apresentado ao IEL-Unicamp, em fevereiro de 2018. A parte que ora exponho envolve a fundamentação teórica, na qual trago alguns conceitos centrais da AD, as diferentes noções de escrita, a história da leitura no mundo ocidental e noções de autoria. Em seguida, apresento os aspectos metodológicos, incluindo as condições de produção das oficinas de alfabetização, oferecidas aos 35 (trinta e cinco) professores participantes da pesquisa, a constituição do corpus e do dispositivo de análise discursiva. Exponho, em seguida, as concepções de leitura de 16 (dezesseis) sujeitos-professores, as análises discursivas concernentes às relações que estabelecem com a leitura e a escrita e como essas relações ecoam em suas práticas pedagógicas escolares. Por fim, o conceito de intérprete-historicizado, que venho tentando construir, com a finalidade de contribuir com as discussões a respeito da produção de sentidos.

    Entendo que a investigação realizada pode colaborar para pensarmos as questões da leitura e da escrita na escola e na sala de aula, tendo em vista como os sujeitos professores se relacionaram com essas práticas. Pensar o antes, o que os antecede e lhes é constitutivo, tendo sido ressignificado ou não, é imprescindível para compreendermos o presente e projetarmos o futuro.

    Acredito que assinalar indícios de autoria em produções linguísticas de educandos pelos quais esses sujeitos-professores foram responsáveis, elaboradas em diferentes condições de produção do contexto escolar e da sala de aula, pode nos ajudar a pensar a sala de aula, a condução das aulas, o ensino e as atividades de leitura, escrita e produção textual.

    O conceito de intérprete-historicizado, que venho tentando elaborar, fundamenta-se nas postulações da AD e, também, na perspectiva Discursivo-Desconstrutivista, proposta por Coracini (1995; 2003; 2010; 2015). Entendo que, ao conceber leitura como interpretação, tal como propõem Pêcheux (1997) e Coracini (2015), estudiosos nos quais me inspirei e venho me inspirando para formular e aprimorar o citado conceito, é possível marcar oposição à leitura concebida como decodificação, ainda realizada na sala de aula, quase sempre de forma dirigida e técnica, buscando-se a reprodução de sentidos já conhecidos e legitimados. Marcar essa oposição e discutir os benefícios de a leitura ser compreendida como interpretação e as possibilidades de gestos interpretativos que são abertos para o educando, quando ocupa a posição de sujeito intérprete-historicizado, significa oferecer oportunidades valiosas de circularem sentidos outros na sala de aula e na escola, sentidos aos quais não tenham sido colocados limites decorrentes de formações ideológicas que não consideram o novo e o diferente e, por isso mesmo, em alguns casos, perguntas, brincadeiras com a linguagem e neologismos formulados pelas próprias crianças, por exemplo, não são escutados, nem reconhecidos, muito menos valorizados.

    A meu ver, se a escola e os professores conseguirem compreender que podem se deslocar e se abrir para outras formações discursivas, daríamos passo importante, rumo ao avanço e a melhoria da escola e do ensino. E isso não é pouca coisa, sobretudo em uma sociedade letrada e desigual, que não garante formas iguais de participação, como a brasileira.

    Tenho expectativas de que o Relatório a seguir se constitua leitura crítica e agradável para os meus importantes leitores. Expor-me plenamente, compartilhar ideias e argumentos e escutar retornos daqueles que me leem, suas perspectivas e contribuições, é instigante, mas, também, inquietante, posto que a linguagem não é clara, nem completa e, assim, sempre deixamos de dizer muitas coisas, por mais que intentemos dizer (quase) tudo. De qualquer forma, acredito ter conseguido condensar o que de mais importante construí no pós-doutorado, uma etapa fundamental em minha vida acadêmica, que aprimorou conhecimentos e capacidade analítica, aqui assinalados.

    1. FUNDAMENTOS TEÓRICOS

    1. Análise de Discurso de matriz francesa: questões centrais

    O tecido que sustenta teoricamente esta investigação é tramado por meio da urdidura entre fios da Análise de Discurso de matriz francesa, pecheutiana, à qual nos filiamos desde sempre, fios da Psicanálise freudo-lacaniana, também imprescindíveis para as análises e, ainda, alguns advindos das Ciências da Educação, em especial daqueles estudos que se dedicam a pensar sobre as problemáticas concernentes à formação de professores. A Análise de Discurso francesa (doravante AD) é fundamental, uma vez que traz os conflitos, as contradições e a incompletude dos dizeres de um sujeito-professor, constituído pela ideologia. Dizeres esses apreendidos na materialidade linguística do discurso, o que permite ao analista compreender como se dá o processo de produção de sentidos, que nunca são únicos. A Psicanálise freudo-lacaniana, por sua vez, traz a noção de sujeito dividido, clivado, fragmentado, que se expressa à revelia de suas intenções. A área educacional, particularmente a que se concentra no campo teórico de formação de professores, ajuda-nos no entendimento das ações e saberes educacionais e didático-pedagógicos dos sujeitos-professores, com os quais trabalhamos, tanto no âmbito da pós-graduação quanto no da extensão universitária.

    Apresentada a tessitura teórica que nos ampara, iniciamos com o imprescindível conceito de discurso: [...] efeito de sentidos entre interlocutores sócio-historicamente determinados (Pêcheux; Fuchs, 1975, p. 65). De acordo com essa concepção, discurso não se confunde com texto, nem com gramática, nem com língua, nem com a fala (parole saussuriana). Em sua origem etimológica, discurso provém do latim discursus, do qual deriva discurrere, particípio passado do verbo latino, onde dis significa fora e currere, correr. Nesse espaço de significados, vicejam ideias de percorrer, atravessar, discorrer, que nos fazem pensar no movimento e funcionamento da palavra, em

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