Crise no Regime Geral de Previdência Social no Brasil: amparar ou economizar?
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Crise no Regime Geral de Previdência Social no Brasil - Aline C. Mantovani
constitucionais.
CAPÍTULO I - CENÁRIO DA CRISE
Integra o estudo adequado do tema, antes ainda de adentrar seu cerne, avaliar o cenário em que se situa a crise. Isso porque a crise na previdência, como se tem conhecimento, não ocorre apenas no Brasil, mas na maioria dos países, o que demonstra, desde já, que problemas de gestão administrativa e econômica se tornaram globalizados e afetam a todos, inclusive países que não compartilham do mesmo sistema previdenciário.
Nessa sistemática, considerando que cada localidade encontra desafios diferenciados a enfrentar na solução do embaraço, tornam-se necessários o cruzamento de informações, o estudo histórico e a análise sistematizada, levando-se em conta que cada povo e cada sociedade tem necessidades diferenciadas quanto ao seu desenvolvimento.
1.1 CONCEITO DE CRISE
Nicola Abbagnano¹ explica que, hoje, o termo crise
refere-se a transformações decisivas em qualquer aspecto da vida social; mas explica primeiro que se trata de um termo de origem médica, que indicava a transformação decisiva que ocorre no ponto culminante de uma doença e orienta o seu curso em sentido favorável ou não. Esclarece, em seguida, que existe necessariamente uma situação de progresso no curso da história, que compreende uma sucessão de épocas orgânicas e de épocas críticas, sendo que a época orgânica é a que repousa num sistema de crenças bem estabelecido, desenvolve-se em conformidade com ele e progride dentro dos limites por ele estabelecidos
, enquanto a época crítica
tem origem justamente nesse progresso, quando o mesmo provoca a mudança da ideia central em que a época está apoiada.
Etimologicamente, ainda segundo o autor italiano, trata-se de um termo usado pelos médicos antigos com um sentido particular: quando o doente, depois de medicado, entrava em crise, era sinal de que haveria um desfecho: a cura ou a morte. Crise, então, significa, em decorrência desse contexto, separação, decisão ou definição.
Verifica-se, portanto, a lógica e a adequação do termo usado pelo autor italiano, considerando-se que sob a ótica da crise da previdência social, ou outra crise qualquer, a exemplo de crises financeiras, políticas ou sociais, trata-se justamente do alcance do ponto culminante de uma situação delicada, e o consequente direcionamento da solução em um sentido ou outro. Assim, em não havendo o progresso dentro de determinados limites, é necessária uma postura de mudança da ideia central – a qual será investigada detalhadamente no decorrer deste trabalho.
A palavra crise
, conforme dicionário etimológico,² vem do grego krísis
, e possui vários significados, quais sejam: ato ou faculdade de distinguir; ato de escolher, escolha, eleição; ato de separar, dissentimento, contestação; contestação em justiça, processo; ato de decidir; decisão, julgamento (de uma questão, de uma dúvida); julgamento de luta, de concurso; concurso, decisão judiciária, julgamento, condenação; o que resolve qualquer coisa, solução, decisão, resultado (de guerra); fase decisiva de doença, crise; explicação, interpretação de sonho.
John Kennedy, ex-presidente dos Estados Unidos, pronunciou-se em certa oportunidade dizendo que, na língua chinesa, a palavra crise
é composta por dois caracteres, um que representa perigo e outro que representa oportunidade. Ele queria dizer, com isso, que a crise não consiste apenas em acontecimentos negativos, mas também em uma oportunidade de traçar novos caminhos e optar por escolhas diferentes.
É justamente nesse sentido que deve ser tomada a expressão crise
atualmente: não apenas como um problema da sociedade e do governo em sua má administração do sistema, mas numa retórica otimista e engajada na consecução dos objetivos constitucionais, utilizando-se a necessidade de mudança (em função de agruras como o desemprego e a miséria) como fator de oportunidade para novas e melhores escolhas por parte do legislador.
A crise da previdência social, portanto, é real na medida em que a conjuntura fática clama por mudanças, e ela se caracteriza pelo fato de que apenas a mudança – especialmente na gestão do sistema – pode amenizar as mazelas que essa crise gera na sociedade. É fato que o Regime Geral de Previdência Social passa por um momento delicado e que aguarda por um ponto culminante de decisão, por uma escolha. Essa escolha poderá refletir suas consequências no seio da sociedade, por um lado, imprimindo na economia ares mais humanizados, ou, por outro lado, conferindo ao aplicador do direito a responsabilidade de se pautar por um viés mais engajado em preservar objetivos constitucionais.
1.1.1 Direito Comparado: Visão Global da Crise na Previdência Social
Como dito anteriormente, não chama a atenção apenas a crise previdenciária pela qual passa o Brasil, mas especialmente a crise pela qual passa a sociedade global. Justamente porque o homem vive hoje sob a égide da globalização, que, de uma forma ou de outra, unifica os homens e suas relações entre si, seja pela ocorrência de catástrofes, seja pelo interesse em lucros financeiros, é inevitável a integração de informações, culturas e mercados.
Nesse contexto de globalização é que se verifica que o humanismo integral de Maritain é vivo, no sentido de unificar os homens, como se verifica nas exortações das Cartas Encíclicas do Vaticano – a exemplo da Populorum Progressio, escrita pelo Santo Papa Paulo VI, que lembra que o humanismo cuida do desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens.
³ Isso significa que a globalização tem por efeito unificar os homens e, mais que isso, ela mesma é a integralização dos homens como indivíduos.
Por isso, os efeitos de uma crise em um país qualquer inevitavelmente se alastram para todas as sociedades do planeta, de uma forma ou de outra, e os trabalhos direcionados para superar tal crise devem envolver a todos, o que comprova que a superação de uma crise é justamente resultado do desenvolvimento integral do homem como indivíduo, mas também dos homens todos como sociedade.
Dessa forma, não faz sentido, neste trabalho, cuidar unicamente da crise do sistema previdenciário brasileiro sem que sequer se mencione a situação pela qual passam outros países. Embora não seja possível, em função de tempo e de espaço, esmiuçar a situação específica de cada país, ao menos é possível trazer à tona o contexto de alguns países e blocos econômicos relevantes, como se verá adiante.
1.1.1.1 América Latina
Segundo historiadores, o termo América Latina
é um termo repatriado, tratando-se de conceito aplicado a questões tanto políticas como literárias, tendo sido utilizado pela primeira vez no continente europeu, por padres franceses que visitaram o Texas e o México. Já em 1836, foi utilizado em um artigo do francês Michel Chevalier e retomado pelo escritor e diplomata colombiano José Maria Torres Caicedo (1827-1889) no poema Las dos Americas, que expressa o contexto político das Américas de meados do século XIX: o fortalecimento dos Estados Unidos da América como nação autônoma e poderosa e a necessidade dos recém-independentes países ao Sul do continente de se unirem para fazer frente ao vizinho "lleno de ambición" e à Europa onde "domina el despotismo".⁴
Como se verifica da literatura, a América Latina compreende basicamente os países americanos colonizados por culturas latinas, como italianos, espanhóis, portugueses e franceses. São vinte países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República, Uruguai e Venezuela.
Segundo dados da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), o antigo esquema da divisão internacional do trabalho, que atribuía à América Latina a qualidade de periferia do sistema econômico mundial produzindo alimentos e matéria prima para os grandes centros, tem sido dizimado aos poucos pela realidade, considerando-se que nesse esquema não havia espaço para a industrialização de países novos.⁵ A contradição entre o sistema preestabelecido e a realidade é que esses países até então periféricos descobriram sua grande capacidade de produção industrial como fruto do progresso técnico.
Feitas essas considerações, sob o espectro de que o direito previdenciário está visceralmente ligado às relações de trabalho, não apenas na legislação brasileira, mas em toda a origem e evolução dos institutos de direito previdenciário, passa-se à análise da situação específica da crise previdenciária em países da América Latina.
Segundo Meiriane Nunes Amaro, há várias características comuns entre os sistemas previdenciários latino-americanos que foram reformulados recentemente, sendo que todos, antes da reforma, eram muito similares por se basearem no sistema de repartição via pacto intergeracional. Além disso, quando havia fundos de reserva no sistema de repartição, estes eram aplicados com fins diversos, com pouca rentabilidade ou até mesmo perda total, sem que se considerasse o prejuízo que a futura geração de segurados sofreria. A autora esclarece ainda que no trâmite entre anos 70 e anos 80 a previdência dos países latino-americanos já começava a passar por modificações dentro do próprio sistema, em função da baixa cobertura e da elevada agressividade do sistema, da iniquidade entre os benefícios, da elevada evasão do sistema, dentre outros. Mas, a partir desse período, passa-se a perceber também mudanças fora do sistema, a exemplo do papel do Estado quanto a suas limitações fiscais, o que se relaciona às alterações macroeconômicas do país.⁶
Tais modificações nos são, à evidência, familiares, especialmente quanto às medidas adotadas a respeito da racionalização e unificação do sistema, à redução do rol de benefícios e à implementação de legislação mais rigorosa no que diz respeito aos critérios de elegibilidade.
Segundo dados de relatório da CEPAL, a crise gerou um aumento significativo do desemprego, um aumento do setor informal da economia, e cerca de 7 milhões de trabalhadores em pobreza extrema, sendo que tais efeitos podem reverter os progressos realizados nos últimos anos na América Latina e reduzir a cobertura da segurança social. Ainda segundo o relatório, as crises criam recessões profundas e desequilíbrios financeiros na segurança social por dois motivos: primeiro porque o lucro se esvai pelas contribuições salariais, pelas contribuições fiscais, pelo retorno de investimentos e reservas, aliados ao aumento da evasão e delinquência; e segundo porque os gastos aumentam devido ao aumento da demanda por benefícios de desemprego e assistência social, aumento do custo de medicamentos e equipamentos médicos, e pressão para ajustar as pensões para a inflação.⁷
Ainda segundo o mesmo relatório, os países latino-americanos podem ser subdivididos em três grupos para análise, sendo eles: Grupo 1 - Chile, Costa Rica, Uruguai, Brasil, Argentina e Panamá. Socialmente desenvolvidos, apresentam cobertura combinada maior e facilitada, porque tem o menor setor informal (geralmente não coberto pela seguridade social) e proporcionam benefícios sociais para os pobres (exceto Panamá). Eles também têm a menor razão de dependência (transição demográfica avançada), desfrutam do bônus demográfico, mas possuem menos oportunidades que os dois outros grupos. Grupo 2 - Colômbia, Venezuela e México. Ocupam uma posição intermediária entre os grupos 1 e 3 em relação ao seu desenvolvimento social, cobertura e fatores que a influenciam, e a razão de dependência (transição demográfica avançada e oportunidades intermediárias). Grupo 3 - Equador, El Salvador, Guatemala, República Dominicana, Peru, Bolívia, Nicarágua, Honduras e Paraguai. São menos desenvolvidos socialmente e sofrem pela cobertura menor, pois têm os maiores setor informal e incidência da pobreza, e não proporcionam pensões de assistência aos pobres. Estes países têm a maior relação de dependência (transição demográfica completa, moderada na Guatemala) e mais tempo para aproveitar o bônus demográfico.
Nesse contexto, Amaro ressalta que, no início da década de 90, quando a reforma chilena foi legitimada por um governo democrático e essa reforma parecia ser o padrão a ser seguido, ela deixou de ser a única alternativa, tendo em vista que o Estado tem papel decisivo quanto ao custo da transição de regimes, na regulamentação dos fundos, na prestação de garantias e manutenção de benefícios mínimos. A autora continua, esclarecendo que a reforma chilena e a segunda geração de reformas na América Latina não eliminaram completamente o regime de benefícios definidos a que se aplica o sistema de repartição. No Chile, todos os que adentraram o mercado de trabalho tiveram que aderir ao regime privado; na Colômbia e no Peru, foi mantido o regime público por opção ao privado; na Argentina e no Uruguai, fica mantido o regime público ao lado de uma pensão básica pública de filiação obrigatória. A conclusão é que todas essas medidas, em especial a experiência chilena, apenas comprovam que não convém retirar do Estado a responsabilidade pela previdência social.⁸
Mais que isso, como se verá em capítulo adiante, a previdência social é fator de desenvolvimento da sociedade, especialmente quanto ao grau de democratização alcançado pelo Estado. E é justamente nesse ponto que insiste a referida autora quando conclui:
(...) com relação aos fatores políticos envolvidos nos processos de reformulação do país, pode-se concluir que quanto mais democrático o país, mais difícil instituir mudança radical pela total privatização do sistema. A reforma chilena se deu sob um regime militar autoritário. A peruana, que constituiu aquela que menos direitos reconheceu, também ocorreu em regime de exceção. As reformas argentina, uruguaia e colombiana, por outro lado, foram implementadas em ambientes democráticos, assim como no Brasil.⁹
A seguridade social, portanto, não pode atacar as causas da crise, mas desempenha um papel crucial na absorção de choques, na substituição da renda perdida, na contenção e redução da pobreza, na manutenção dos cuidados de saúde, no reforço à solidariedade, na redução de desigualdade, e na adoção de medidas-chave de proteção social para os mais afetados pela severa recessão, reforçando, assim, a coesão social.
Dessa forma, Mesa-Lago lembra que
(...) o impacto da crise é diferente dependendo do modelo do sistema de pensões. Os de capitalização individual pura são mais afetados pela volatilidade do mercado de ações que tem redução patrimonial nas contas individuais, a rentabilidade e o valor das pensões daqueles que se aproximam da data da aposentadoria; mecanismos de solidariedade, como a pensão universal básica em vários países, o aporte estatal solidário no Chile e os multifundos atenuaram o impacto.¹⁰
Assim, é possível compreender que os sistemas mistos que equilibram riscos funcionam como amortecedor social. Segundo o autor, a queda no valor do fundo e o desempenho têm sido mais fortes no grupo 1 (exceto Brasil e Costa Rica) e menor no grupo 3 (exceto Peru), em grande parte devido à diversidade de composição da carteira. No Chile, Costa Rica e República Dominicana, há indícios de que a crise pode ter atingido o grau máximo e uma recuperação lenta tenha tido início. Continua, ao fim, dizendo que, no longo prazo, o sistema privado do Chile e o público da Costa Rica parecem ser os mais sólidos financeira e atuarialmente, o sistema nacionalizado argentino enfrentou um desequilíbrio e o do Brasil seguirá com déficit financeiro, embora o mesmo tenha sido retardado pelas reformas recentes; o déficit financeiro atuarial de Cuba deve se manter, apesar da reforma de 2008, e o da Venezuela, provavelmente, será pior.
Como se percebe, o acesso à seguridade social é um direito humano, de forma que é essencial aos indivíduos, à sociedade e ao progresso da economia. Recentemente, foi possível observar que houve progresso no desenvolvimento da seguridade