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AS TORRES DAS TRÊS VIRTUDES
AS TORRES DAS TRÊS VIRTUDES
AS TORRES DAS TRÊS VIRTUDES
E-book329 páginas4 horas

AS TORRES DAS TRÊS VIRTUDES

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Sobre este e-book

No início dos anos trinta, a região do Meio-Oeste de Santa Catarina, região Sul do Brasil, era constituída por grandes propriedades rurais, cujos fazendeiros se dedicavam à criação de gado e ao cultivo de cereais, em razão da fertilidade do solo. Os grandes proprietários de terras tinham seu próprio código de leis e aplicavam a justiça em seus territórios, face à total ausência do poder público.Em As Torres das Três Virtudes, contamos a história de uma dessas famílias, proprietária de grandes terras, cujo único herdeiro, por vontade da mãe, ingressa num seminário e passa a viver um grande conflito, pois não estava preparado para suportar os sacrifícios impostos aos candidatos ao sacerdócio.Júlio César, o nosso herói, é uma mente brilhante, uma inteligência privilegiada, que entra em choque com seus educadores, no seminário, a maioria de nacionalidade alemã, em cuja instituição reina uma disciplina férrea, com todos voltados para a oração, o estudo e o trabalho, enquanto na fazenda do pai imperam o crime e a devassidão. O jovem encontra no estudo e nos livros uma válvula de escape para as contradições de sua vida, alcançando um nível cultural bem além de seus companheiros de seminário. Torna-se, por isso mesmo, um espírito independente e contestador, dominado pelo orgulho e pela vaidade, até o dia em que entra em sua vida uma jovem, que o faz repensar todo o seu passado, além de trágicos acontecimentos que se sucedem em sua família. Embora seja uma obra de ficção, o autor de As Torres das Três Virtudes traz neste livro um pouco de suas experiências vividas no Seminário Seráfico São Luís de Tolosa, cenário de grande parte da ação aqui relatada. Trocou os nomes de alguns personagens, mas descreve fatos reais e situações existentes naqueles longínquos anos quarenta. Temperou a narrativa com um pouco de sonho e ficção.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de nov. de 2021
ISBN9781526046420
AS TORRES DAS TRÊS VIRTUDES

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    AS TORRES DAS TRÊS VIRTUDES - Reinaldo Souza

    Em memória de Frei Cipriano Chardon,

    extraordinário educador e amigo, e dos

    dedicados mestres do Seminário Seráfico

    São Luís de Tolosa, que nos deixaram ao

    longo do tempo.

    Copyright -2020 – Todos os direitos reservados a:

    R.H. Souza

    Montagem da capa:

    João Felipe Souza Requião

    Desenho:

    Engenheiro José  Guilherme Monfort

    Revisão:

    Gilda Pereira

    Registro:

    Fundação Biblioteca Nacional

    Escritório de Direitos Autorais

    Número de registro: 460.243, Livro 865, Folha 432

    Tomou Jesus de novo a palavra e falou-lhes em pará-bolas, dizendo: O reino dos céus é semelhante a um rei que preparou o banquete de bodas de seu filho. Enviou seus criados para chamar os convidados às bodas, mas estes não quiseram vir. De novo enviou outros servos, ordenando-lhes: Dizei aos convidados: Minha comida está preparada; os bezerros e cevados, mortos; tudo está pronto, vinde às bodas. Porém eles, desdenhosos, se foram, este para o campo, aquele para seu negócio. Outros, agarrando os servos, ultrajaram-nos e os mata-ram. Encolerizou-se o rei, e enviando seus exércitos, fez exterminar aqueles assassinos, e entregou às chamas a sua cidade. Depois, disse a seus servos: O banquete está preparado, mas os convidados não eram dignos. Ide, pois, às saídas dos caminhos, e todos os que encontrardes, chamai-os para as bodas. Saíram os servos aos caminhos, e reuniram quantos encontraram, maus e bons, e a sala de bodas ficou cheia de convidados. Entrando o rei para ver os que estavam à mesa, viu ali um homem que não trazia a veste nupcial, e disse-lhe: Amigo, como entraste aqui sem a veste nupcial? Ele emudeceu. Então o rei disse aos seus ministros: Atai-o de pés e mãos e atirai-o às trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes. Porque muitos são os chamados e poucos os escolhidos.

    (Mateus 22,1-14)

    Prefácio

    No início dos anos trinta, a região do Meio-Oeste de Santa Catarina, região Sul do Brasil, era constituida por grandes propriedades rurais, cujos fazendeiros se dedicavam à criação de gado e ao cultivo de cereais, em razão da fertilidade do solo. Os grandes proprietários de terras tinham seu próprio código de leis e aplicavam a justiça em seus territórios, face à toal ausência do poder público.

    Em As Torres das Três Virtudes, contamos a histó-ria de uma dessas famílias, proprietária de grandes terras, cujo único herdeiro, por vontade da mãe, ingressa num seminário e passa a viver um grande conflito, pois não estava preparado para suportar os sacrifícios impostos aos candidatos ao sacerdócio.

    Júlio César, o nosso herói, é uma mente brilhante, uma inteligência privilegiada, que entra em choque com seus educadores, no seminário, a maioria de nacionalidade alemã, em cuja instituição reina uma disciplina férrea, com todos voltados para a oração, o estudo e o trabalho, enquanto na fazenda do pai imperam o crime e a devas-sidão. O jovem encontra no estudo e nos livros uma válvula de escape para as contradições de sua vida, alcançando um nível cultural bem além de seus com-panheiros de seminário. Torna-se, por isso mesmo, um espírito independente e contestador, dominado pelo orgulho e pela vaidade, até o dia em que entra em sua vida uma jovem, que o faz repensar todo o seu passado, além de trágicos acontecimentos que se sucedem em sua família.

    Embora seja uma obra de ficção, o autor de As Torres das Três Virtudes traz neste livro um pouco de suas experiências vividas no Seminário Seráfico São Luis de Tolosa, cenário de grande parte da ação aqui relatada. Trocou os nomes de alguns personagens, mas descreve

    fatos reais e situações existentes naqueles longínquos anos quarenta. Temperou a narrativa com um pouco de sonho e ficção.

    Se o leitor passar algum dia pela cidade de Rio Ne-gro, no Paraná, e olhar ao longe, poderá ainda ver as torres do velho Seminário São Luis de Tolosa lá no alto da montanha, uma construção quase centenária, trans-formado em parque ecoturístico, tombado como patrimônio histórico e cultural do município de Rio Negro. Ele foi construído por frades alemães, e inaugurado em 3 de fevereiro de 1923. Na década de 70, o educandário foi desativado, sendo os estudantes transferidos para um novo seminário construído numa fazenda próxima à cidade de Agudos, no Estado de São Paulo. As instalações do velho seminário São Luis de Tolosa, depois de muitos anos fechadas, foram recuperadas e hoje nelas funcionam a prefeitura e secretarias do município da cidade de Rio Negro, Paraná, além de diversos órgãos dedicados à cultura.

    É neste cenário que se desenvolve a primeira parte da narrativa de As Torres das Três Virtudes. O cenário da segunda parte do livro é uma grande fazenda, no interior de Santa Catarina, na qual imperam o vício, o crime e a lei da winchester.

    PRIMEIRA PARTE

    Capítulo 1

    O sol mergulhava no horizonte naquela tarde de maio do ano de 1929, quando o Coronel Libório Antunes dos Santos chegou à porteira da Fazenda Pedras Negras, depois de uma viagem a Campos Novos, cidade catarinense, onde fora comprar produtos para sua propriedade. Quem veio recebê-lo foi o capataz, de nome Justino, um sujeito de pequena estatura e de poucas falas, que farejava à distância os desejos do patrão.

    – O patrão seja bem vindo! – exclamou o em-pregado, curvando-se, respeitosamente.

    – Como vão as coisas por aqui, Justino?

    – Tudo corre como devia, Coronel Libório.

    Em seguida, o recém-chegado entrou no grande salão da residência, seguido do capataz e sentou-se numa cadeira de vime. Mandou que Justino lhe tirasse as botas, pois sentia fortes dores nos pés. Enquanto isso, uma criada lhe servia um copo de refresco.

    O salão principal, com uns quinze metros de pro-fundidade, ocupava toda a largura da casa. Depois, entrava-se por um largo corredor, com três grandes quartos do lado esquerdo e dois do lado direito e mais um escritório. No final da residência ficava a sala de refeições com uma grande cozinha anexa. Atrás da casa, existia um grande galpão e dez pequenas casas, destinadas aos vaqueiros e empregados. No terreno ao fundo, erguia-se uma pequena elevação encimada por duas grandes pedras escuras, que deram origem ao nome Pedras Negras, como era designada a propriedade. Ao redor, a perder de vista, estendiam-se pastagens verdejantes, onde muitas reses se

    alimentavam. Nos terrenos da propriedade existiam pequenas ilhas, formadas por grandes pinheiros e mata fechada, os chamados capões, que serviam de abrigo a pássaros e pequenos animais. A Fazenda Pedras Negras era cortada por numerosos lajeados, que formavam agua-das, onde o gado saciava a sede. Na base da elevação, nos fundos da casa, tinha um pomar muito bem cuidado, com pessegueiros, ameixeiras e pereiras. A propriedade apre-sentava, no conjunto, uma paisagem verdadeiramente paradisíaca.

    Depois que descansou um pouco na sala principal da fazenda, Libório dirigiu-se ao interior da  residência, onde, num pequeno quarto, no final do corredor, uma mulher, de pouco mais de 30 anos, balançava um ber-ço, onde estava um menino de apenas meses de idade.

    – Então – falou o fazendeiro –, como está pas-sando meu filho, Isabel?

    – Ele está ótimo, patrão. Júlio César (esse era o nome do menino) se alimenta bem e acho que tem boa saúde.

    – Estive em Campos Novos e contratei uma gover-nanta para cuidar do nosso guri. Seu nome é Sofia, tem 15 anos, mas me pareceu muito esperta.

    – Pode deixar que eu cuido dele, patrão.

    – Não! Preciso que te dediques mais à adminis-tração da casa, enquanto Justino se dedica à fazenda. Precisamos dividir tarefas.

    Libório Antunes dos Santos estava viúvo. Perdera a mulher, Maria Lúcia, durante o parto do filho Júlio César. Isso aconteceu depois de uma gravidez difícil, durante a qual o fazendeiro não dera muita atenção à jovem esposa, pois continuara a sua vida desregrada, visitando suas amantes em locais diversos. Passava dias fora da fazenda, metido em farras e bebedeiras. Esse comportamento do fazendeiro causara grandes desgostos à sua delicada esposa, que ele conhecera ainda jovem, filha de um comerciante da região.

    A Fazenda Pedras Negras, Libório a herdara do pai, Eusébio, também já falecido, com o qual mantivera um conturbado relacionamento, pois seu progenitor sempre questionara o comportamento do filho, metido em arrua-ças, brigas de bailes e disputa por mulheres, quando che-gou mesmo a levar um tiro no braço esquerdo, cuja marca carregava pela vida afora. Agora, com 33 anos, ali estava ele, com um filho pequeno para criar, sem a presença da mãe, e sentia remorsos pelos males que causara à piedosa e delicada Maria Lúcia, que tanto sofrera nas mãos do trêfego e instável fazendeiro.

    Libório Antunes dos Santos perdera os pais e só lhe restava uma irmã, mais velha do que ele, que se casara com um fazendeiro gaúcho, que morava perto de Lages e com a qual não mantinha relações, pois se desentendera com ela e o marido por problemas de herança, quando da morte do pai, Eusébio.

    Dois dias depois de seu retorno à fazenda, Libório mandou o capataz Justino a Campos Novos buscar Sofia, que seria a governanta do menino Júlio César. Era uma jovem de apenas 15 anos, filha de uma família de italianos. Tinha muitos irmãos e aceitou o emprego com o intuito de ajudar os pais, pois era a mais velha de cinco irmãos. Bonita e inteligente, tinha experiência no trato com crianças.

    – Quero que cuides bem do meu guri – disse-lhe Libório, logo que a jovem chegou à fazenda –, pois ele perdeu a mãe ao nascer. Quem cuidava dele até hoje era Isabel, a quem ficarás subordinada. Sei que tens ex-periência com criancas e darás ao meu filho o melhor de ti.

    – Sim – respondeu a jovem –, tenho experiência, pois ajudei a criar meus cinco irmãos, duas meninas e tres meninos. Como eles agora já estão em idade escolar, não precisam mais de mim.

    – Tua mãe me disse que ajudarás a família com o dinheiro que ganhares aqui.

    – Exatamente! É o que pretendo fazer, pois meu paí trabalha de sol a sol em nossa propriedade e nem sempre tira da terra o suficiente para o sustento da família. Nós fomos criados com muito trabalho e pouco dinheiro e estamos acostumados a uma vida difícil.

    Enquanto o fazendeiro e a recém-chegada conver-savam, deles se aproximou Isabel, a administradora da casa, e Libório pediu que ela transmitisse à jovem Sofia todos os detalhes a respeito dos cuidados a serem dis-pensados a seu filho, Júlio César. Destacou que a jovem tinha experiência no trato com crianças, pois participara da criação dos irmãos menores, enquanto frequentava a escola do povoado.

    Isabel conduziu Sofia ao quarto da criança, que dormia, naquele momento, e depois lhe mostrou os aposentos que iria ocupar, contíguos ao quarto do filho de Libório, e lhe fez as recomedações sobre  o compor-tamento a ser adotado em relação ao menino e aos empregados da fazenda.

    Os negócios de Libório Antunes se desenvolviam muito bem, pois a região era propícia à criação extensiva de gado. Uma área da fazenda, ele a reservara para plantações de milho, feijão, batata, mandioca, trigo e cevada, culturas que lhe davam boas colheitas. Com elas, alimentava os numerosos empregados da fazenda e vendia o excedente, auferindo um bom lucro, que a generosidade da terra lhe proporcionava.

    O fazendeiro sentia remorsos pelo descaso com que tratara sua jovem esposa e pretendia compensar o pas-sado, dando ao herdeiro de Pedras Negras uma educação primorosa para que ele fosse digno de seu nome.

    Os empregados da fazenda eram bem tratados, pois Libório achava que um homem com saúde e bem alimentado produzia mais. Seu homem de confiança era o capataz, Justino Pires de Souza, nascido na fazenda. Ele era um vigilante cão de guarda, que cumpria cegamente as ordens do patrão, sem perguntar se o que fazia era certo ou errado. Gravitava à volta do fazendeiro como uma mariposa atraida pela luz, atento aos seus menores gestos. Às vezes, bastava um olhar de Libório e Justino entendia o que devia fazer. Ninguém na fazenda desafiava os poderes do capataz, pois a desobediência podia custar muito caro. Isabel, a administradora da casa, também seguia à risca as ordens do patrão e era de sua total confiança, tanto que ele confiara a seus cuidados o filho pequeno. Sob seu comando, ela tinha duas cozinheiras, uma arrumadeira e, agora, Sofia, a jovem governanta de Júlio César.

    Foi nesse ambiente que o menino Júlio César cres-ceu e se desenvolveu sob os cuidados da jovem Sofia, que lhe dedicava todo o carinho e atenção. Ele herdara a inteligência e a sensibilidade da mãe, cujo temperamento contrastava com o comportamento do marido, um homem rude e desprovido de sentimentos e refinamento inte-lectual.

    Capítulo 2

    Nove anos se passaram e as coisas na Fazenda Pedras Negras seguiam sua rotina. Libório Antunes dos Santos mandara cercar todas as suas terras e vaqueiros armados com winchesters percorriam as dependências da proprie-dade para que ninguém dela se aproximasse. Dentro das cercas, o gado pastava, as lavouras produziam muito e a fartura predominava.

    Na época das colheitas, grandes carretas carre-gadas de sacas de milho, trigo e cevada se dirigiam aos povoados próximos para vender as colheitas. O gado da propriedade tinha compradores certos e era levado até os grandes centros do Estado de Santa Catarina e entregue diretamente aos abatedouros.

    O jovem Júlio César participava ativamente da vida na fazenda. Era um menino esperto, de boa aparência, mas muito introvertido. Falava pouco com as pessoas e seguia à risca os conselhos do pai, que se desdobrava para fazer também o papel de mãe.

    Sofia, a governanta do menino, tratava-o com cari-nho, tentando suprir a presença da mãe, que ele perdera ao nascer. Foi ela quem lhe ensinou as primeiras letras e passava grande parte de seu tempo lendo para ele as histórias infantis que povoam o imaginário das crianças. Ela ficava admirada com a facilidade com que Júlio César aprendia as coisas e o interesse que tinha pela leitura, aptidão que, certamente, herdara da mãe.

    Com sete anos, o menino já montava com desen-voltura e o pai lhe dera de presente um belo cavalo preto, de nome Arisco, com o qual ele percorria as dependências da fazenda, recebido em todo lugar com reverência por parte dos empregados, pois sabiam da importância do herdeiro de Libório Antunes dos Santos. O fazendeiro administrava a fazenda com mão de ferro e não admitia interferência de terceiros na gestão de seus negócios.

    Júlio César teve uma demonstração dos métodos administrativos do progenitor, no dia em que, ao passear pela fazenda, montando seu cavalo, percebeu que umas reses da propriedade fronteiriça derrubaram uma cerca e passaram para as terras de Pedras Negras,  atrás  de  suas suculentas pastagens. Kaiser, um cão que sempre o acompanhava, se precipitou em direção aos animais e cravou os dentes no pescoço de um novilho, de onde jorrou o sangue em profusão. O animal correu deses-perado, até cair alguns metros depois da cerca, ago-nizante. Dias depois, o proprietário do novilho veio tomar satisfações e Libório mandou Justino recebê-lo com alguns capangas bem armados. O homem ficou apavorado e concordou que a culpa tinha sido dele, que não soubera cuidar bem de seus animais.

    Essa e outras histórias corriam pelas fazendas vizinhas e todos se mantinham à distância das terras de Libório Antunes, pois sabiam dos perigos que corriam ao delas se aproximarem. Ele era conhecido como um homem violento, que não admitia contestação à sua autoridade, bem ao contrário do pai, Eusébio, um homem cordato, que tinha feito muitos amigos na região.

    Por outro lado, Libório, no momento, evitava qual-quer confronto com os vizinhos, pois a preocupação dele era a educação do filho. Achou que estava na hora de Júlio César inciar os estudos fundamentais e, para isso, mandou buscar no povoado de Abdon Batista, um professor para introduzir o menino no mundo do conhecimento e do saber. Esse professor, de nome Virgílio Monteiro, era um jovem de vinte e cinco anos, estatura elevada, magro, pele morena, bem falante. Era conhecido por onde passava como um homem letrado. Dava aulas na escola estadual de Abdon Batista, onde o salário era de 200 mil-réis, muito pouco para suprir suas necessidades. O enviado de Libório Antunes lhe propôs um salário de 600 mil-réis, três vezes mais do que ele ganhava, além de alimentação e moradia.

    Virgilio Monteiro chegou à Fazenda Pedras Negras, numa tarde de verão, montado num burro teimoso, com dois alforjes na garupa, repleto de roupas e de muitos livros, pois fora chamado para uma longa temporada. Libório veio recebê-lo à porta da casa.

    – Seja bem vindo, preceptor – disse –, enquanto  introduzia  o recém-chegado no salão principal da casa.

    – Tão logo recebi o seu recado, me apressei em atendê-lo, senhor, pois para um pobre professor como eu, sua proposta é irrecusável.

    – Eu pago bem a todos que me servem – devolveu Libório – e só exijo competência e lealdade – lealdade, principalmente.

    A seguir, Libório mandou os empregados tirarem do lombo do burro a bagagem do professor e levá-la ao quarto de hóspedes, enquanto Isabel lhe servia um refresco. Virgílio demonstrava cansaço, depois da longa jornada, pois o povoado  de  Abdon  Batista  ficava perto do Rio Canoas e a estrada não passava de um trilha sinuosa e esburacada, além do trote duro e compassado da montaria. Depois de descansar um pouco, o professor ficou mais animado e começou a falar de seus planos para os estudos do menino Júlio César. Iria ensinar-lhe as primeiras letras, português, aritmética, história e geo-grafia, além de introduzi-lo no idioma francês, àquela época indispensável para quem pretendesse participar das rodas chegadas à cultura e ao saber.

    – Concordo plenamente com o currículo – assentiu Libório –, principalmente com o estudo do francês, pois quero que meu filho tenha uma educação esmerada, mas, se puder, ensine-lhe também um pouco de latim. Depois, lhe explicarei a razão dessa recomendação.

    – Meus conhecimentos de latim são bem avançados e terei satisfação em tansmiti-los ao jovem discípulo, pois a lingua de Cícero e Virgílio é a base das linguas latinas, como o francês, o espanhol, o italiano e, naturalmente, também, do idioma de Camões.

    – Que diabo de idioma é esse do qual nunca ouvi falar?

    Virgílio, com um sorriso de superioridade, com-pletou:

    – Ora, sr. Libório, é a nossa querida lingua portu-guesa e Camões é o nosso poeta maior, autor de Os Lusíadas.

    – Certo! – concluiu Libório –. Eu quero que meu filho tenha os estudos que eu não tive, pois o mundo agora é diferente. Hoje, um fazendeiro precisa saber um pouco mais do que laçar boi no pasto e tirar leite das vacas.

    Enquanto conversavam na sala, Júlio César entrou correndo pela porta principal. Parou junto ao pai e passou a examinar o professor dos pés à cabeça, sem dizer palavra. Foi Libório quem falou, depois de fazer o menino cumprimentar o preceptor:

    – Este é o Professor Vírgílio, meu filho. Ele foi contratado para se dedicar exclusivamente aos teus estudos, em tempo integral. Irá te ensinar a ler, escrever, fazer contas e também um pouco de latim.

    – Ler e escrever, eu já sei. Aprendi com Sofia – disse o menino.

    – Ótimo! – acrescentou o preceptor. – Assim, meu trabalho será facilitado.

    – Mas existem muitas coisas que tens que apren-der, filho, – concluiu Libório. – O preceptor vai te dar aulas todos os dias na parte da manhã, enquanto à tarde farás os deveres escolares. Quero que te dediques aos estudos, pois isso é importante para o teu futuro.

    – Mas, quando eu poderei brincar, montar a cavalo, passear pela fazenda, brincar com meus amigos?

    – Terás horas para o recreio e para as brincadeiras e folguedos, mas os estudos são de fundamental impor-tância para tua vida futura.

    A seguir, Libório convidou o professor a se dirigir a seus aposentos e descansar um pouco da longa via-gem.Virgilio Monteiro percorreu em silêncio o longo corredor que o levava até seu quarto, enquanto meditava sobre a missão que tinha pela frente, ou seja, educar o filho de um poderoso fazendeiro e, certamente, não poderia falhar nessa missão. O menino lhe parecia muito inteligente, o que, certamente, iria facilitar sua tarefa. O fazendeiro devia ser um homem muito rico, para contratar um professor exclusivamente para o filho, pagando uma boa soma, mensalmente.

    Quando chegou a hora do jantar, Isabel mandou chamar o professor e indicou-lhe uma mesa posta numa pequena sala ao lado da cozinha, onde o capataz Justino, a jovem Sofia e a própria Isabel faziam suas refeições. Libório Antunes estava na grande mesa da sala de jantar e comia acompanhado somente do filho e ambos eram aten-didos por duas empregadas.

    Virgílio sentou-se à mesa onde todos estavam, em silêncio, e tentou quebrar o gelo, dirigindo-se a Isabel.

    – A fazenda me parece muito grande...com muitos empregados.

    – Sim, esta é uma fazenda especial e nada na região a ela se compara. Depois, o sr. poderá conhecê-la e tirar suas próprias conclusões. O patrão é muito compe-tente no trato com os negócios. Ele cria gado para corte, cavalos de raça, além da plantação de cereais.

    Justino, o capataz, não abriu a boca durante a refeição. Virgílio percebeu que era um sujeito rústico, mal educado e de poucas palavras. A impressão que lhe transmitiu não era boa. Isabel e Justino terminaram a refeição e se retiraram. Ficaram à mesa somente Virgílio e Sofia. O Professor procurou encetar conversa com a jovem:

    – Há quanto tempo trabalhas aqui na fazenda, Sofia?

    – Trabalho há oito anos, praticamente desde o primeiro ano de vida de Júlio César. Fui contratada como governanta do menino, serviço que antes era feito por d. Isabel.

    – Mas hoje ele não precisa mais de uma gover-nanta.

    – Eu sou encarregada, atualmente, de cuidar de suas roupas, de sua higiene, devo lhe dar os remédios quando  ele  está com gripe ou outra doença qualquer e também ajudo d. Isabel nos serviços domésticos.

    – Gostas de trabalhar, aqui?

    – Tenho que gostar – falou Sofia em voz baixa –, pois não tenho para onde ir. Meus pais são muito pobres e eu mando para eles o dinheiro que ganho.

    Virgilio percebeu que a última pergunta deixara a jovem embaraçada e sua resposta dava a entender que existiam problemas no relacionamento das pessoas na Fazenda Pedras Negras. Encerrou o assunto, deixando para outra hora a pesquisa sobre os problemas existentes na casa de Libório Antunes. Ele estava convencido que certas anormalidades aconteciam ali, mas só o tempo demons-traria a realidade de suas suspeitas. Despediu-se de Sofia e retirou-se para os seus aposentos, onde começou a preparar as matérias para as aulas do jovem Júlio César. Afinal, ele precisava fazer jus ao salário de 600 mil-réis, que nenhum professor da região jamais sonhara ganhar.

    No dia seguinte, antes de iniciar a primeira aula de Júlio César, Professor Virgílio foi chamado ao gabinete de Libório Antunes, uma ampla sala com uma grande estante de livros ao fundo. O fazendeiro mandou que ele se acomodasse na cadeira em frente à mesa e começou a lhe transmitir as orientações relativas à educação de seu jovem herdeiro.

    – Quero – disse Libório – que prepares meu filho com os conhecimentos básicos para ingressar no semi-nário, pois seu futuro será a carreira eclesiástica.

    – Ingressar no seminário, senhor? Será que Júlio César tem vocação para o sacerdócio?

    – Foi um juramento que fiz junto ao leito de morte de sua mãe. Ela me fez jurar que eu mandaria o menino estudar num seminário, pois era uma mulher muito religi-osa e aspirava esse futuro para o seu filho.

    – Sem vocação, ele não suportará a vida no seminário, feita de estudos, trabalhos, orações e muitos sacrifícios...

    – Não quero discutir esse aspecto com o professor. Fiz um juramento a uma pessoa moribunda e devo cumpri-lo, pois juramento é juramento. Se ele, depois, não quiser dar prosseguimento a esse tipo de vida, que faça sua própria escolha, quando chegar à maioridade, momento em que todo homem deve tomar o seu próprio rumo.

    – Acho que entendi.

    – Quero que este assunto fique só entre nós. Júlio César ainda não sabe o que o futuro lhe reserva e as outras pessoas da fazenda também não precisam saber.

    Com essas palavras, Libório encerrou a reunião e professor Virgílio logo percebeu que estava diante de um homem poderoso, cujas decisões não deviam ser contestadas em momento algum.

    Logo que iniciou as aulas de seu jovem pupilo, Virgílio ficou admirado com a facilidade de aprendizado demonstrada pelo menino. Absorvia imediatamente os ensinamentos que lhe eram transmitidos e demonstrava uma grande curiosidade sobre todos os assuntos, fazendo perguntas que, às vezes, deixavam o professor embara-çado. Virgílio logo se convenceu que Júlio César não teria nenhum problema em acompanhar o curriculum do seminário, pois tinha grande facilidade para o aprendizado de idiomas e também para matérias outras como história e ciências humanas em geral. A dúvida do professor era quanto à vocação do menino para o sacerdócio,

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