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Direitos humanos em evidência: Volume 2
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Direitos humanos em evidência: Volume 2
E-book574 páginas6 horas

Direitos humanos em evidência: Volume 2

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Sobre este e-book

A publicação do segundo volume "Direitos humanos em evidência" reafirma o compromisso do Mattos Filho com a defesa dos direitos humanos e a ampliação ao acesso à Justiça.
Por acreditar que a difusão do conhecimento jurídico representa uma importante contribuição a organizações da sociedade civil e defensores de direitos humanos, são apresentadas análises e pesquisas que tratam de temas como enfrentamento à violência de gênero, direitos sexuais e reprodutivos, direito à segurança pública, ao trabalho digno, direito antidiscriminatório, direitos da população LGBTQIAP+, prerrogativas para o exercício da advocacia e direitos de refugiados e imigrantes.
Elaborados entre 2019 e 2021, sob a coordenação da prática Mattos Filho 100% Pro Bono, os estudos e as pesquisas são o resultado de um trabalho colaborativo, realizado por equipes de diversas áreas jurídicas que, sob perspectiva crítica e m,ultidisciplinar, atuaram em parceria com entidades nacionais e internacionais de referência, para ffazer avançar a garantia de direitos humanos no Brasil.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de dez. de 2022
ISBN9786555065084
Direitos humanos em evidência: Volume 2

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    Pré-visualização do livro

    Direitos humanos em evidência - Editora Blucher

    Apresentação

    A superação das desigualdades, do racismo estrutural, da discriminação e das diversas formas de violência constitui um desafio permanente para a efetivação dos direitos humanos no Brasil, país em que parcela considerável da população encontra enormes obstáculos para o efetivo acesso à justiça.

    Soma-se a esse desafio, a crise sanitária de grandes proporções provocada pelo coronavírus, cujos prejuízos sociais e econômicos afetaram de forma mais severa as populações historicamente marginalizadas.

    Nesse contexto, urge uma advocacia radicalmente comprometida com a sua função social e que se dedique não somente ao patrocínio de casos, mas também à formulação de teses, difusão de informações e perspectivas sobre os direitos humanos.

    Consciente desses desafios, o Mattos Filho oferece serviços jurídicos gratuitos há mais 20 anos e, em 2018, estruturou uma equipe 100% dedicada a casos de interesse público e impacto social. Neste momento, tem a satisfação de publicar o segundo volume de Direitos Humanos em Evidência, com novos estudos, memorandos e pareceres sobre temas presentes no dia a dia de seu trabalho pro bono.

    Elaborados entre 2019 e 2021, os textos abordam temas relacionados aos direitos das mulheres, da população LGBTQIAP+, de refugiados e imigrantes, aos direitos sexuais e reprodutivos, ao direito à segurança pública, ao trabalho digno, ao direito antidiscriminatório e, ainda, às prerrogativas para o exercício da advocacia.

    Escritos de forma colaborativa, interconectam as diferentes expertises jurídicas presentes no escritório que, somadas a pesquisas de outros campos do conhecimento, permitem que nossas equipes desenvolvam perspectivas críticas e soluções criativas para a garantia do acesso à justiça.

    Nosso objetivo é colaborar, de forma consistente, com a produção de conhecimento neste campo e fortalecer as lutas protagonizadas por organizações da sociedade civil e defensores de direitos humanos.

    Estrutura da publicação

    Direitos Humanos em Evidência – Vol. 2 traz um compilado de 11 textos, agrupados em sete temas: Direitos das Mulheres, Direito Antidiscriminatório, Refúgio e Migração, Trabalho Digno e Enfrentamento à Violência no Campo, Segurança Pública e Prerrogativas da Advocacia.

    No primeiro texto, inserido na seção dedicada aos Direitos das Mulheres, analisamos os direitos reprodutivos à luz da saúde materna no Brasil, a pedido do Center for Reproductive Rights. A pesquisa evidencia a compreensão da saúde materna sob a ótica dos direitos humanos, em perspectiva que vise diminuir não somente os índices de mortalidade materna, mas garantir que mulheres se tornem sujeitos ativos na reivindicação de seus direitos reprodutivos.

    Em seguida, a pedido da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE/SP), realizamos extensa pesquisa normativa e jurisprudencial sobre o instituto dos alimentos gravídicos. O documento conclui que a aplicação do direito de família deve atentar à desigualdade de gênero existente na sociedade, uma vez que a sobrecarga de mulheres na posição de cuidado lhes impõe situação de desvantagem econômica.

    No texto "O instituto das imunidades parlamentares no ordenamento jurídico brasileiro: contribuição com o caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil", contribuímos com as argumentações levadas pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) à audiência pública em julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nele, reforçamos que as imunidades parlamentares devem ser aplicadas a fatos estritamente relacionados à função parlamentar para que não constituam obstáculo à justiça, em especial nos casos de violência contra a mulher.

    Na última pesquisa relacionada aos direitos das mulheres, elaborada ao Núcleo Especializado de Promoção e Defesa de Direitos das Mulheres da DPE/SP, evidenciamos que a violência de gênero é uma questão estrutural e presente em toda a sociedade, inclusive no ambiente universitário, e que políticas dedicadas ao seu enfrentamento devem preservar a autonomia das mulheres, evitar a revitimização e garantir um atendimento integral.

    O segundo tema, Direito Antidiscriminatório, apresenta inicialmente um parecer elaborado ao Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial da DPE/SP. Ao longo do texto, analisamos se a rescisão de um contrato de locação de imóvel em função de intolerância religiosa contra praticantes de religião de matriz africana constituiria ilícito civil ou se seria direito do locador amparado pelo exercício de sua autonomia privada. Concluímos que a ótica dos direitos humanos deve prevalecer nas relações entre particulares e impossibilitar que a violação a tais direitos – no caso em debate, a intolerância religiosa – seja justificada pela autonomia privada.

    No texto seguinte, é apresentado o memorando elaborado à Human Rights Watch sobre o direito de acesso à educação sexual em sala de aula no contexto em que movimentos como o Escola Sem Partido têm apresentado projetos de lei que objetivam limitar o ensino sobre gênero e sexualidade em escolas brasileiras. O trabalho buscou destacar, à luz do direito nacional, o direito à liberdade de expressão e de cátedra em relação aos direitos LGBTQIA+.

    A regulação da situação migratória de venezuelanos no Brasil é tratada no tópico sobre Refúgio e Migração, que evidencia a compreensão da migração como direito humano, discorrendo sobre as variadas formas jurídicas pelas quais uma pessoa migrante pode se estabelecer no Brasil. O trabalho foi realizado, por meio do Programa Trust Law, à organização venezuelana Un Mundo Sin Mordaza.

    O tema Trabalho Digno e Enfrentamento à Violência no Campo, conta com dois pareceres elaborados ao Cejil. O primeiro evidencia a necessidade de intervenção estatal quando da verificação de trabalho análogo à escravidão como medida necessária de proteção aos direitos humanos. O segundo analisou os critérios de atualização monetária da pensão mensal vitalícia aos familiares das vítimas do caso Fazenda Ubá, em Acordo de Solução Amistosa celebrado com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, cujo pagamento foi assumido pelo Estado do Pará como forma de garantir à família reparação material e moral. O texto reforça que questões envolvendo violações a direitos humanos devem garantir a interpretação mais favorável à dignidade da pessoa humana, sendo necessária, no caso discutido, a atualização monetária dos valores devidos de forma a beneficiar os familiares das vítimas da execução.

    O tema da Segurança Pública é tratado em memorando que discorre sobre os marcos normativos da atual política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro e suas consequências para a situação enfrentada pelos habitantes do Complexo da Maré. O texto defende a necessidade de participação popular na construção de uma política de segurança pública que efetivamente proteja direitos da população.

    O último tema, Prerrogativas da Advocacia, traz memorando elaborado à Law Society of England and Wales com análise da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça sobre casos relativos à proteção das garantias relacionadas ao exercício da advocacia, traçando paralelos com os Princípios Básicos sobre o Papel dos Advogados da ONU. O memorando evidencia que, mesmo sem terem sido formalmente internalizados pelo ordenamento jurídico brasileiro, os direitos e as garantias previstos no documento da ONU estão, em sua maioria, presentes em dispositivos legais já existentes no país.

    Lista de Siglas e Abreviaturas

    Direitos das Mulheres

    1. Direitos reprodutivos: a saúde materna no Brasil

    Neste capítulo, apresentaremos a pesquisa elaborada ao Center for Reproductive Rights (CRR) em outubro de 2019 sobre legislação, projetos de lei, políticas públicas e jurisprudência brasileira relacionados à saúde materna. O seu objetivo foi colaborar com as estratégias de advocacy do CRR na América Latina, que atua na defesa dos direitos reprodutivos como direitos humanos fundamentais.

    A pesquisa evidencia a necessidade de compreensão da saúde materna sob a ótica dos direitos humanos, visando não somente diminuir índices de mortalidade materna, mas garantir que mulheres se tornem sujeitos ativos na reivindicação de seus direitos.

    Introdução

    Este memorando foi preparado a pedido do Center for Reproductive Rights (CRR) para subsidiar as suas estratégias de advocacy sobre a saúde materna no Brasil.¹ O relatório analisa quatro aspectos principais sobre o assunto no país: legislação, projetos de lei, políticas públicas e jurisprudência de janeiro de 2012 a julho de 2019.

    O trabalho adotou uma abordagem da saúde materna baseada nos direitos humanos, de acordo com as referências da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH),² que não limita a análise sobre saúde materna apenas à redução da mortalidade e morbidez materna, mas busca garantir que mulheres sejam capazes de reivindicar seus direitos, exigindo a construção de políticas públicas pelo Estado.³

    Essas referências também ressaltam que marcadores sociais tais como educação, acesso ao mercado de trabalho, acesso a métodos contraceptivos e acesso ao aborto podem agravar a discriminação e desigualdade vivenciadas por diferentes mulheres em muitos aspectos de sua vida.

    Considerando as necessidades do projeto desenvolvido pelo CRR, este documento limitou a análise à saúde materna na gestação, parto ou pós-parto e aos índices de mortalidade materna, uma vez que o Brasil avançou, mas não alcançou as metas internacionais estabelecidas. A análise é baseada em documentos produzidos pelo Estado brasileiro nessa temática, em trabalhos acadêmicos e materiais publicados por organizações da sociedade civil e universidades, dentre outros.

    O memorando contém (i) uma análise de como os diferentes níveis de legitimidade e aceitação social da maternidade estão relacionados às diferentes características das mães (raça, idade, orientação sexual, classe social e outros marcadores sociais relevantes); (ii) uma visão geral sobre legislação, projetos de lei, políticas públicas e jurisprudência relacionada à gravidez (assistência pré-natal), parto, pós-parto e mortalidade materna; e (iii) uma descrição das organizações da sociedade civil e instituições do Sistema de Justiça que realizam diferentes atividades relacionadas à saúde materna e aos direitos reprodutivos, com alcance local, regional, nacional ou global.

    1.2 Hierarquias reprodutivas: vulnerabilidades, direitos humanos e desigualdades maternas na saúde

    Do ponto de vista dos direitos humanos, a maternidade deve ser sempre voluntária, segura, socialmente apoiada e prazerosa.⁵ Entretanto, essa não é necessariamente uma descrição que se verifica na vivência de mulheres brasileiras que experimentam a maternidade.

    Apesar de sua notável dimensão individual – e considerando as marcantes desigualdades sociais do país⁶ ao lado da cultura racista e LGBTfóbica⁷ –, existem⁸ diferentes níveis de legitimidade e aceitação social das maternidades em sua pluralidade, que estão relacionados às características de cada mãe. Nesse sentido, a vivência da maternidade, enquanto um fenômeno social, é marcada por desigualdades sociais, raciais, étnicas e de gênero e, com base nessas questões, não é qualquer maternidade que é socialmente aceitável.⁹

    A imagem de uma maternidade ideal tende a ser aquela em que a mãe é saudável, possui 20 ou 30 anos, casada ou em união estável monogâmica com parceiro masculino, com recursos financeiros e culturais suficientes e endereço fixo. Isso significa que tudo o que diverge desse ideal de construção social pode reduzir o nível de aceitação social da maternidade e, portanto, o respeito a ela e aos direitos humanos de seu bebê.¹⁰

    O exercício dos direitos reprodutivos pelas mulheres, portanto, é impactado pelas desigualdades de poder inerentes à nossa sociedade.¹¹ Questões, como racismo, machismo, colonialismo, pobreza e outros fatores, como status de imigração, deficiência, identidade de gênero, saúde, orientação sexual e idade, podem afetar se as mulheres recebem ou não cuidados da saúde materna adequados.¹²

    Desde que o movimento feminista começou a levar em consideração as interseccionalidades que permeiam a vida das mulheres¹³ na análise de suas experiências de maternidade e acesso à saúde materna, o discurso existente sobre direitos e saúde reprodutiva se transformou em um discurso de justiça reprodutiva. Como resultado, o acesso aos direitos reprodutivos começou a ser pensado a partir do discurso de justiça social e direitos humanos,¹⁴ passando-se a compreender que, como qualquer outro direito humano, uma decisão reprodutiva verdadeiramente livre depende do acesso a recursos materiais, sociais e políticos que estão distribuídos desigualmente.¹⁵

    Dito isso, abordaremos aspectos que tendem a afetar as experiências da maternidade no Brasil como raça, idade, orientação sexual e classe social.

    1.2.1 Raça

    Uma análise da saúde materna requer o reconhecimento do racismo como um dos principais responsáveis pelas desigualdades enfrentadas pelas mulheres negras brasileiras no acesso aos serviços públicos de saúde e ao exercício adequado de seus direitos sexuais e reprodutivos.¹⁶ Essa realidade afeta diretamente a experiência da maternidade. Alguns dos problemas enfrentados pelas mulheres negras no Brasil são: esterilizações forçadas, altos índices de mortes maternas, violência obstétrica, atendimentos médicos de baixa qualidade, perda injustificada da guarda de seus filhos e filhas e a interrupção de sua maternidade pela morte violenta sistemática de seus filhos, jovens negros.¹⁷

    Nos anos 1990, durante a criação do sistema público de saúde nacional, o Sistema Único de Saúde (SUS), o movimento negro brasileiro teve um papel central na garantia e ampliação do acesso aos serviços de saúde.

    Em 2007, o governo federal criou a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN),¹⁸ com o objetivo de promover a saúde da população negra e contribuir para a redução das desigualdades raciais por meio do enfrentamento ao racismo institucional e à discriminação na estrutura do SUS. Passados quase 13 anos da criação da PNSIPN, dados sobre raça no sistema público de saúde ainda demonstram que as mulheres negras estão entre as mais vulneráveis devido ao acesso dificultado aos serviços de saúde adequados.¹⁹

    Estudos também demonstram que a gravidez e o parto de mulheres negras são marcados por violência institucional, racial e obstétrica. Em comparação com as mulheres brancas, as mulheres negras (i) correm maior risco de receber cuidados pré-natais inadequados, (ii) são mais propensas a não ter acompanhante durante o trabalho de parto; (iii) tendem a receber menos anestesia; e (iv) precisam procurar mais de um hospital no momento do parto.²⁰ Como resultado, os níveis de mortalidade materna são duas vezes e meia maiores entre as mulheres negras do que entre as brancas no Brasil.²¹

    Em números precisos, apenas 55% das mulheres negras no ano de 2012 tiveram as sete consultas de pré-natal recomendadas pelo Ministério da Saúde, percentual abaixo da média nacional de 62,4%.²² O tempo de espera pelo atendimento é maior para mulheres negras/pardas (16,6%) se comparadas às brancas (14,5%). Além disso, 68% das mulheres negras/pardas não tiveram acompanhante no momento do parto e para mais de 50% delas, embora seja um direito previsto em lei, o motivo da ausência de acompanhante foi a recusa do serviço de saúde.²³ Por fim, as mulheres negras são 62% das vítimas de mortes maternas no Brasil.²⁴

    Assim, conforme mencionado anteriormente, o racismo precisa ser reconhecido como aspecto central para determinar limites e possibilidades de uma vivência livre dos direitos sexuais e reprodutivos para mulheres negras, o que significa violações frequentes dos direitos humanos e a constante negação de uma experiência de maternidade segura, socialmente apoiada e prazerosa.²⁵

    Há décadas, o movimento de mulheres negras vem denunciando o uso de políticas de controle de natalidade para reduzir a população negra, como esterilizações forçadas²⁶ e a imposição de métodos anticoncepcionais de longa duração.²⁷ Em 2018, por exemplo, Janaína Quirino foi submetida a procedimento de esterilização compulsória após determinação judicial deferida a pedido do Ministério Público.²⁸ Mais recentemente, em 2019, um acordo governamental para a colocação compulsória de dispositivo anticoncepcional intrauterino (DIU) de longa duração em adolescentes que estão em centros de acolhida no município de Porto Alegre foi alvo de intensas críticas.²⁹ Vale ressaltar que tal dispositivo não está disponível no SUS, uma vez que a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia (Conitec) entende que não há evidências de sua eficiência e segurança em relação a outros métodos anticoncepcionais disponíveis.

    Além disso, o exercício da maternidade por mulheres negras está sob constante ameaça no Brasil. Mulheres negras constantemente têm a perda da guarda de seus filhos e filhas determinada judicialmente apenas por estarem em situação de vulnerabilidade social e têm sua maternidade interrompida pelos altos índices de homicídio de jovens negros no país.³⁰

    De acordo com o Atlas da Violência de 2018,³¹ a taxa de homicídios de jovens negros era duas vezes e meia maior do que a de não negros (16,0% versus 40,2%), enquanto a taxa de homicídios de mulheres negras era 71% superior à de não negras. Dados do Mapa da Violência 2016³² confirmam as seguintes conclusões: enquanto o número de homicídios de jovens brancos caiu 32,3% de 2002 a 2012, o de jovens negros aumentou 32,4%.

    Por trás desses números estão milhares de mulheres negras, em sua maioria mães, que se esforçam, geralmente no isolamento e na solidão, para proteger seus filhos, tentando preservar suas vidas ou, após sua morte, tentando garantir dignidade de tratamento aos jovens assassinados para enterrar seus corpos e buscar reparação e justiça.³³

    Os dados apresentados indicam que o acesso das mulheres negras à saúde materna é marcado por inúmeras desigualdades em decorrência das hierarquias reprodutivas presentes na sociedade. O racismo, como um dos principais aspectos que estruturam a sociedade brasileira, é um fator determinante dentre as vulnerabilidades sociais e deve ser um ponto de partida para qualquer análise do exercício dos direitos reprodutivos das mulheres negras e das experiências de maternidade no país.

    1.2.2 Idade

    Além da raça, uma segunda característica que determina a aceitação social da maternidade é a idade.

    De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), entre 2010 e 2015, o Brasil teve a terceira maior taxa de fecundidade dentre adolescentes na região da América Latina e Caribe, estimada em 68,4 nascimentos a cada 1.000 meninas de 15 a 19 anos, em comparação com 66,5 nascimentos a cada 1.000 meninas na mesma faixa etária na região. A média do país também foi superior à média mundial, que foi de 46 nascimentos a cada 1.000.³⁴

    Para muitas adolescentes, a gravidez e o parto não são planejados nem desejados.³⁵ Dados da pesquisa Nascimento no Brasil: Inquérito Nacional sobre o Trabalho de Parto e Nascimento, da Fundação Oswaldo Cruz, mostram que, entre 2011 e 2012, 66% das gestações de adolescentes foram indesejadas.³⁶ Por sua vez, quando a maternidade na adolescência é desejada, tornar a gravidez mais segura para adolescentes mães e seus bebês é extremamente difícil: acesso tardio aos serviços de saúde materna e o enfrentamento do estigma ou rejeição por parte dos pais, profissionais de saúde e ameaças de violência são muito comuns.³⁷

    A gravidez na adolescência é uma grande preocupação do Brasil, uma vez que impacta a vida de adolescentes – especialmente meninas – em termos de saúde,³⁸ sociais, econômicos e educacionais, já que continua sendo um dos principais fatores para a mortalidade materna e infantil e para os ciclos intergeracionais de saúde precária e pobreza.³⁹

    Um estudo nacional realizado em 2004 mostrou que adolescentes grávidas, especialmente as muito jovens (menores de 15 anos), demonstraram atraso para iniciar o pré-natal (48,2%) e realizam um menor número consultas pré-natais (48,3%),⁴⁰ resultados também observados em outros estudos.⁴¹

    Além disso, de acordo com o Ministério da Educação, em 2015, a gravidez na adolescência foi responsável por 18% da evasão escolar das meninas no Brasil.⁴² Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2013 indicam que apenas 24,8% das mães adolescentes voltaram à escola a fim de continuar sua educação.⁴³

    Finalmente, a mortalidade materna é um fator relevante para análise da mortalidade de adolescentes no Brasil. Durante 2012, complicações na gravidez, parto e puerpério foram responsáveis por 4% das mortes de mulheres de 10 a 19 anos.

    No caso das mulheres de 15 a 19 anos, esses óbitos representaram 6,14% do total de óbitos, ocupando, para essa faixa etária específica, o sexto lugar entre as principais causas de morte.⁴⁴

    No Brasil, o impacto da gravidez indesejada na adolescência depende, em grande parte, de sua condição socioeconômica. Para adolescentes de classe média, a gestação e maternidade geralmente não representam fatores de ruptura em sua vida, embora possam atrasar sua carreira acadêmica. Por sua vez, entre adolescentes de baixa condição socioeconômica, o impacto é geralmente maior e contribui para a evasão escolar, menores níveis de escolaridade, dificuldade de acesso a oportunidades de emprego e, consequentemente, menores níveis de renda.⁴⁵

    De acordo com um estudo de caso realizado no estado da Paraíba, os principais fatores associados à gravidez indesejada na adolescência são: falta de consultas ginecológicas anteriores e falta de acesso a métodos contraceptivos.⁴⁶ A gravidez na adolescência aumenta quando é negado às meninas o direito de tomar decisões sobre sua saúde sexual e reprodutiva e bem-estar, enfrentando barreiras ao acesso à contracepção e à obtenção de informações sobre o uso de métodos anticoncepcionais para garantir seu direito ao planejamento familiar.

    Nos últimos anos, as mudanças em relação à saúde reprodutiva e aos adolescentes são particularmente preocupantes.⁴⁷ Por exemplo, em março de 2019, o governo proibiu ilustrações de cartilhas distribuídas a adolescentes que forneciam instruções sobre como usar preservativos.⁴⁸ Além disso, houve maior atuação do Movimento Escola Sem Partido,⁴⁹ que tem por objetivo coibir discussões sobre identidade de gênero, diversidade, educação sexual e política nas escolas.⁵⁰

    1.2.3 Orientação sexual e identidade de gênero

    Desde o fim da ditadura militar, o governo brasileiro introduziu inúmeras leis e políticas destinadas a melhorar o reconhecimento dos direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais, Assexuais (LGBTQIA+).⁵¹ Em 1996, o Brasil foi um dos primeiros países a oferecer medicamentos antirretrovirais gratuitos às pessoas com HIV.⁵² Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união de pessoas do mesmo sexo e, em 2018, decidiu que as pessoas transgêneras têm o direito de mudar seu nome e gênero no registro civil sem fazer cirurgias de modificações corporais.⁵³ Finalmente, em 2019, o STF decidiu que a lei que regula os crimes raciais deveria ser aplicada à homofobia e à transfobia até que o Congresso Nacional aprovasse uma legislação sobre o assunto.⁵⁴

    Homens e mulheres que rompem as expectativas sociais de expressão de gênero e sexualidade no Brasil estão particularmente expostos a situações de discriminação.⁵⁵ Enfrentamos uma verdadeira epidemia de violência contra pessoas LGBTQIA+: o Brasil é considerado um dos países que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo.

    De acordo com o Grupo Gay da Bahia,⁵⁶ houve 420 mortes de pessoas LGBTQIA+ registradas no Brasil durante 2018, incluindo 100 suicídios. A organização estima que ocorreu um assassinato a cada 20 horas.⁵⁷ Como resultado, embora no Brasil houvesse em 2010 pelo menos 58 mil famílias autodeclaradas LGBT,⁵⁸ a sociedade não tem sido capaz de fornecer um apoio adequado e efetivo à parentalidade LGBTQIA+. Esse número provavelmente está subestimado, uma vez que dados coletados nas estatísticas do registro civil de 2017, realizadas pelo IBGE, mostraram que o casamento entre pessoas do mesmo sexo aumentou 10% em relação a 2016,⁵⁹ resultado também observado em estudos anteriores.⁶⁰

    No Brasil, estudos retratam duas possibilidades para a parentalidade LGBT: acesso a métodos conceptivos e adoção.⁶¹

    A adoção passou a ser reconhecida na sociedade e ganhou espaços de discussão, ampliando a visão sobre as possibilidades de constituição familiar.⁶²

    Embora não haja legislação específica para regulamentar essa questão no Brasil, em 2010, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu pela primeira vez o direito de adoção a um casal de lésbicas e, desde então, a jurisprudência tende a reconhecê-lo para outros casais também.⁶³ No entanto, as barreiras relacionadas à discriminação devido à orientação sexual ainda existem e a adoção por casais LGBTQIA+ pode se tornar mais difícil do que se o procedimento for realizado por um casal heterossexual.

    Quanto à reprodução assistida, infelizmente, há poucos investimentos públicos, o que geralmente causa longas listas de espera no sistema público de saúde e limita o acesso aos métodos de concepção apenas aos casais heterossexuais inférteis. A par dos custos consideravelmente elevados para tais tratamentos em clínicas privadas, o acesso de casais LGBTQIA+, especialmente casais de lésbicas, a esse método tende a ser dificultado ou, pelo menos, limitado.⁶⁴

    Mesmo quando a adoção ou reprodução assistida é possível, outras barreiras permanecem: (i) acesso a cuidados de saúde por mães lésbicas, (ii) nomeação de ambos os pais/mães nas certidões de nascimento e, finalmente, (iii) igualdade de acesso à licença-maternidade e paternidade.

    Apesar dos avanços obtidos após a criação em 2011 da chamada Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais,⁶⁵ mulheres lésbicas enfrentam desafios específicos no acesso aos cuidados de saúde, incluindo barreiras sociais, políticas e econômicas.⁶⁶

    Segundo a Rede Feminista de Saúde, em 2006, 40% das mulheres lésbicas não revelavam sua orientação sexual durante as consultas de saúde. Entre as que revelam, 28% relatam consultas médicas mais rápidas e 17% afirmam que os profissionais de saúde não pedem exames que consideram importantes.⁶⁷

    O mesmo se aplica às mulheres lésbicas grávidas: elas enfrentam muitas dificuldades com a assistência à maternidade no Brasil. Uma vez que a prestação de cuidados obstétricos tem sido historicamente baseada no pressuposto da heterossexualidade,⁶⁸ as lésbicas relatam algumas situações desconfortáveis envolvendo os profissionais de saúde durante a concepção, gravidez, parto e pós-parto: presunção da heterossexualidade, dúvidas ou questionamentos sobre a legitimidade das relações dos casais e alguns casos de discriminação e violação de direitos.⁶⁹

    Além disso, até 2016, a nomeação de ambos os pais ou mães na certidão de nascimento dependia exclusivamente de decisões judiciais. A Corregedoria Nacional de Justiça publicou o Provimento nº 52/2016, que regulamenta a emissão de certidão de nascimento para crianças concebidas por meio de reprodução assistida ou nascidas de mãe substituta, o que significa que casais do mesmo sexo que desejam ter seus nomes na certidão de nascimento dos filhos podem fazê-lo.⁷⁰

    Além disso, em 2017, o CNJ publicou o Provimento nº 63/2017,⁷¹ instituindo o procedimento de reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva, que é a relação de afiliação baseada exclusivamente nos laços afetivos entre pai/mãe e filho, uma vez que não há vínculo biológico entre eles. A lei também facilitou a inclusão dos nomes dos pais nas certidões de nascimento.

    Embora essas normativas buscassem reduzir as barreiras durante o registro civil, elas não foram suficientes para resolver o problema. Os pais socioafetivos só são reconhecidos após um determinado período e, no caso de reprodução assistida, é necessário ter declaração da clínica de reprodução, do posto de saúde ou do centro de reprodução humana, assinada pelo seu diretor e/ou pelo médico assistente, relacionando as técnicas utilizadas e seus destinatários.

    Por fim, outra preocupação para a população LGBTQIA+ é a licença-maternidade e paternidade. A legislação brasileira prevê licenças de maternidade (120 a 180 dias) e paternidade (5 a 20 dias), mas não há previsão legal para a situação de duas mães ou de dois pais. Com exceção das empresas que adotaram formalmente a licença parental, inclusive para pais/mães homossexuais e adotivos, normalmente, apenas uma mãe tem licença-maternidade e a outra, no máximo, terá seus direitos iguais à concessão da licença-paternidade ou apenas uma. A concessão de licença a ambas as mães, portanto, depende de uma análise caso a caso pelos empregadores.⁷²

    Os dados apresentados permitem concluir que a compreensão do que se considera família deve ser questionada no Brasil, destacando a necessidade de ampliar os significados do arranjo familiar para além da tradição heteronormativa. Ainda há muito a ser feito para que se avance na efetiva implementação de políticas públicas com o objetivo de estabelecer serviços de saúde que atendam às demandas específicas da população LGBTQIA+.

    1.2.4 Classe social

    De acordo com a renda, é possível dividir a população feminina brasileira em dois grupos: um formado por aquelas, que têm acesso a plano de saúde privado, que representa 30% das mulheres brasileiras; e um segundo formado pelos 70% restantes das mulheres, que dependem exclusivamente do SUS.⁷³ Embora existam desafios para o exercício dos direitos humanos relacionados à maternidade pelas mulheres nos sistemas de saúde público e privado no Brasil,⁷⁴ os problemas relacionados ao sistema público tendem a ser mais graves, portanto, afetando principalmente as mulheres mais pobres.

    São dois exemplos emblemáticos: (i) a falta de continuidade do acompanhamento médico pelo mesmo profissional durante o pré-natal e parto e (ii) a peregrinação das mulheres para recebimento de atenção obstétrica adequada no momento do parto. Em relação ao primeiro, geralmente o médico que acompanha o pré-natal da gestante não é o mesmo que a assiste no parto. Mais comumente, as mulheres recebem atendimento pré-natal na unidade de saúde do seu território, mas serão assistidas durante o parto pelo médico que está de plantão no momento em que ela chega ao hospital em trabalho de parto. Quanto ao segundo, muito frequentemente, o hospital de escolha da mulher não possui leitos disponíveis para interná-la quando ela chegar (geralmente já durante o trabalho de parto), o que significa que terá que fazer mais de uma tentativa (e, não raramente, várias) para encontrar um hospital capaz de recebê-la. Isso tem sido chamado de peregrinação obstétrica e tem sido relacionado à grande parte das mortes maternas.⁷⁵

    Portanto, é importante considerar as violências vivenciadas por mulheres em razão de sua classe social⁷⁶ – denominada por alguns estudos críticos de criminalização da pobreza –, que tente a estigmatizar também a maternidade.⁷⁷

    1.2.5 Outros marcadores sociais relevantes

    Além dos marcadores sociais já mencionados, variantes como condições de saúde, uso de álcool e drogas, status migratório e antecedentes criminais criam outros níveis de legitimação social da maternidade. Quanto maior a interseccionalidade e mais aspectos considerados negativos, pior é a experiência da maternidade.⁷⁸

    Fica clara, portanto, a urgência de políticas públicas que garantam as condições adequadas ao exercício da maternidade. Isso pode ser alcançado por meio da implementação de políticas que considerem as múltiplas vulnerabilidades que permeiam a vida das mulheres e proporcione os meios necessários para que toda e qualquer maternidade seja socialmente amparada.

    1.3 Gravidez (cuidados pré-natais), parto e pós-parto

    Nos últimos anos, o Brasil tem obtido alguns avanços em relação à saúde materna: o atendimento pré-natal atinge 98,6% de cobertura e a realização de parto assistido por profissionais qualificados (médico e/ou enfermeiro) é vivenciada em 98% dos casos.⁷⁹ A despeito disso, desafios substanciais permanecem. O Brasil ainda enfrenta (i) a baixa qualidade dos atendimentos ofertados; (ii) desigualdades socioeconômicas, regionais e raciais no tratamento; (iii) intervenções médicas desnecessárias, principalmente para acelerar o trabalho de parto, maximizando, assim, a produtividade e a eficiência nas enfermarias obstétricas;⁸⁰ (iv) elevada ocorrência de partos prematuros;⁸¹ e (v) violência obstétrica generalizada, com altas taxas de cesarianas.

    Uma pesquisa realizada entre fevereiro de 2011 a outubro 2012⁸² mostrou que apenas 60,6% das mulheres no Brasil começaram consultas pré-natais antes da 12ª semana de gestação, conforme recomendado pelo Ministério da Saúde.⁸³ Quando incluídos outros parâmetros, como realização de rotina, exames pré-natais e informações sobre parto e amamentação,⁸⁴ menos de 10% das mulheres receberam os procedimentos recomendados.

    As diferenças regionais e as desigualdades no acesso aos cuidados de saúde também são evidentes. Segundo o Ministério da Saúde, em 2014, a chance de realizar sete ou mais consultas de pré-natal foi maior entre as gestantes residentes nas

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