Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Neoliberalismo, direito e mal-estar
Neoliberalismo, direito e mal-estar
Neoliberalismo, direito e mal-estar
E-book325 páginas4 horas

Neoliberalismo, direito e mal-estar

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Este livro parte da hipótese de que o discurso neoliberal causa mal-estar subjetivo e sofrimento psíquico. A racionalidade contemporânea é perpassada pelo neoliberalismo, teoria que nasce no campo da economia, mas se alastra para outras esferas da vida humana, como o direito, a política e a subjetividade. Para compreender em que consiste tal racionalidade, investigou-se o nascimento do liberalismo político e econômico juntamente ao Estado moderno. No liberalismo, o mercado serve como instância de verificação da atuação estatal e funciona de acordo com leis naturais; devendo, portanto, ser deixado livre. A passagem da ideologia liberal para a neoliberal implica modos distintos de compreender a atuação do Estado, que deve, então, interferir na economia de modo a promover a concorrência entre os sujeitos econômicos. Ocorre que a lógica concorrencial passa a reinar sobre toda a sociedade; as instituições públicas, privadas e os próprios indivíduos organizam-se na forma de empresa. Nesse meio, o direito positivo entra em crise, eis que se vê entre duas incumbências conflitantes: afiançar o mercado concorrencial e garantir os direitos fundamentais aos cidadãos; instaura-se, pois, um estado de exceção permanente. Enquanto isso, os indivíduos são obrigados a adaptar-se ao mundo contemporâneo, que cada vez lhes exige mais física e subjetivamente. A equação é vertiginosa, o discurso neoliberal está fadado a devorar tudo, falta saber se algo do sujeito e do seu desejo ainda vai restar.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de nov. de 2021
ISBN9786525216379
Neoliberalismo, direito e mal-estar

Relacionado a Neoliberalismo, direito e mal-estar

Ebooks relacionados

Direito para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Neoliberalismo, direito e mal-estar

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Neoliberalismo, direito e mal-estar - Gislaine de Paula

    1 INTRODUÇÃO

    Era chegada a hora. Vi aquelas oito pessoas caminhando para o centro da arena. Um coliseu moderno, feito por cima do chão batido. Ao redor, algumas centenas observavam, divertiam-se com o espetáculo que estava por vir. Eu estava ao lado das oito pessoas, antes de me dirigir a uma das arquibancadas e, depois, me embrenhar pelos corredores repletos de lojas bem iluminadas como um shopping; um contraste visível diante daquela terra dura tocada apenas pela luz do sol. Eu sabia o que viria, e sabia que não aguentaria ver. No meio da arena, à espera estava um carrasco com pouco mais de dois metros de altura, roupas puídas, sorriso sádico. Alguém explicou as regras: todas estas pessoas aqui presentes sofrerão as mais severas punições; ao final, vocês, espectadores, escolhem duas para morrer. Ninguém sabia por que havia as penas, mas isso era o que menos importava. Aqueles oito não pareciam ter medo, ou vontade de fugir, apenas submeteram-se - com certa apreensão, é verdade, porém, havia uma adrenalina e uma estranha animação em seus olhares.

    Foi quando começou. O carrasco dirigiu-se à primeira e atirou-a várias vezes para cima, deixando-a cair com seu corpo frágil no chão a cada vez, até formar-se uma poça de sangue e lágrimas. Vislumbrei algo branco junto a seu corpo, mas não consegui olhar. Eu estava na porta de um banheiro fétido, sujo e vomitado. Talvez, como eu, nem todos aguentassem aquele show à frio. Depois de incontáveis investidas, o corpo foi deixado desfalecido, ainda vivo, com um bizarro sorriso torto, mistura de dor, horror e... seria alegria?

    O carrasco dirigiu-se à segunda pessoa. Amarrou seus punhos bem afastados do corpo, jogou-lhe um líquido inflamável nos braços e ateou fogo. Os gritos terríveis ecoaram pelo coliseu, para espanto e animação dos espectadores. Apagado o fogo, a pessoa foi solta e correu para o banheiro, onde eu estava, para lavar e esfriar a pele queimada. Abri a torneira desastrada; a pessoa sorriu para mim e, feliz e dolorida, lavou os braços comentando baixinho: ufa, foi só isso. O carrasco a chama dizendo que ainda não tinha acabado e repete o procedimento, nos mesmos braços já queimados. Novamente, ao terminar, a pessoa corre ao banheiro. Não consigo dizer quantas vezes isso ocorreu, mas, em determinado momento, só havia algo como uma luva enrugada bordô escuro com manchas amareladas que iam até seus ombros.

    Saio dali, estou enojada, cambaleante, com o espetáculo, com os gritos do público. É quando vejo uma terceira pessoa a receber seu castigo, mais uma; seriam nove, então. Espantei-me. Não era uma pessoa, era um gigante. Não cabia dentro do coliseu. Apenas estendeu seu braço e cedeu sua mão para receber as penas. Dois de seus enormes dedos foram postos em uma máquina de choque que me lembrou muito o mecanismo que deu vida ao monstro do Dr. Frankstein, das fábulas de Mary Shelley. O choque era terrível, o gigante urrava e tremia de dor, fazendo o coliseu inteiro tremer junto. Os espectadores olhavam aquilo admirados e maravilhados, o carrasco sorria abertamente, um homem velho trajado de gala com uma bengala apontava para a mão do gigante.

    Como aquilo era possível? Tratava-se de um gigante, do tamanho de uma montanha que, apenas com um chute, conseguiria destruir o coliseu e todos dentro dele. Como ele se submetia àquilo? Como? Por quê? O gigante tremia tanto, tão convulsivamente, que começava a abalar as estruturas de todo o coliseu. Os espectadores continuavam em seus lugares, divertindo-se imensamente com aquele sinistro e incrível espetáculo.

    Percebi que era agora o próprio coliseu que tremia junto, olhei para alguns pilares que balançavam perigosamente, rachaduras foram aparecendo. Eu tinha que dar um jeito de sair dali... Todos tínhamos...¹

    Com o perdão da licença literária, é com essa formação noturna, vulgo, pesadelo, que gostaria de começar a tese. O gigante simboliza o coletivo. Como podemos nos deixar sofrer as severas consequências psíquicas de um discurso que ajudamos a fomentar? Seria próprio da condição humana não procurar a própria felicidade? Ou seria próprio do humano não saber que não procura a felicidade.

    Andando – ou correndo – por qualquer grande cidade do mundo, nossos sentidos são invadidos por todos os poros: tato – seja pelo calor de um escapamento de veículo ou de um exaustor de cozinha, o vento cortante que passa por entre os prédios ou o pingo da água viciada de um ar condicionado bem no meio da testa – ; olfato e paladar – com os cheiros e sabores mais variados, perfumes, suor, fumaça, comida, lixo e esgotos a céu aberto –; visão – placas de todas as cores, poeira, outdoors excessivamente luminosos, prédios, guetos, além das telas cheias de brilho ascético dos televisores e smartphones –; e, finalmente, audição – o martirizante ruído de automóveis e sua fuga putrefeita, o som insistente de obras, música de rua, bares barulhentos, fogos de artifício fora de época e tiroteios.

    Ah, que admirável mundo novo... e neoliberal!

    A cidade atordoa. Durante uma tortura real, a privação dos sentidos nos faz entrar em um estado de perda de nós mesmos, da personalidade e dos traços subjetivos. Claro que não estamos comparando a cidade com a tortura real, mas pensamos que há algo aí.

    Estamos como que atordoados, aturdidos pelo nosso tempo. Nem todos se sentem da mesma forma, por óbvio. Muito pelo contrário, há muitos indivíduos plenamente adaptados que conseguem andar na corda bamba do mundo neoliberal, divertem-se com isso, até o dia de cair no abismo e ver seu mundo ruir.

    Quando falamos mundo neoliberal, de que se trata?

    A posição que adotamos na presente tese é a de que o neoliberalismo não é simplesmente uma doutrina ou ideologia econômica. Entendemos o neoliberalismo como uma forma de racionalidade, um conjunto de práticas, um modo de governar as pessoas. O neoliberalismo espalha-se por vários âmbitos: econômico, social, político, jurídico e, como não poderia deixar de ser, subjetivo.

    Desde já, deixamos claro que se trata de uma racionalidade, um modo de organização que é própria do mundo contemporâneo, estamos nomeando esta racionalidade como neoliberal.

    A tese parte de uma questão que está tão imbricada na vida cotidiana, que mal percebemos: como o discurso do mercado invade todas as esferas da vida humana?

    Nossa hipótese é a de que o discurso do mercado e a lógica concorrencial não estão presentes apenas no jogo mercadológico, na economia, mas também na política, no direito e na subjetividade. Não se trata, no entanto, de uma relação de submissão e mestria entre sujeitos e discurso neoliberal. Mais do que presente, essa racionalidade é posta em prática e reforçada, em uma relação de reprodução de práticas e discursos.

    Nesse âmbito, o direito, que poderia vir a servir como anteparo simbólico, também se coloca parcialmente dentro da racionalidade neoliberal, em um processo de construção de um estado de exceção permanente, em que as leis e garantias fundamentais são colocadas em eclipse, ora sendo aplicadas, ora desaplicadas.

    Quando uma das instâncias que deveria trazer segurança traz a exceção e constrói falsos heróis, perde-se uma das possibilidades de colocar limite aos excessos do neoliberalismo. Nesse sentido, estado de exceção, crise e mal-estar talvez estejam mais ligados do que pensamos.

    Um dos objetivos desta tese, portanto, é refletir de que modo(s) o neoliberalismo, como uma ideologia que é própria do mercado, ultrapassa o mundo dos negócios e invade o mundo dos homens e da coletividade, mirando diretamente no sujeito e nos modos de subjetivação, causando-lhe sofrimento psíquico.

    Tomamos como marco teórico a teoria psicanalítica de orientação lacaniana. Para além de nos apresentar, junto com Freud, o conceito de mal-estar, a psicanálise atravessa o texto da tese – eis que atravessa a própria autora. Neste sentido, quando discutimos sujeito e modos de subjetivação referimo-nos à divisão subjetiva entre consciente e inconsciente e a alienação do humano à linguagem.

    Não obstante, a fim de compreender o neoliberalismo, partimos do Nascimento da biopolítica, de Michel Foucault, e A nova razão do mundo, de Pierre Dardot e Christian Laval. Ambos os autores nos acompanham durante todo o nosso texto, o que não significa, necessariamente, que encampemos todos os seus posicionamentos teóricos. Poderíamos dizer que ambos servem como guias do caminho que nós mesmas vamos traçar.

    A fim de compreender o discurso neoliberal, procuramos suas raízes no liberalismo econômico. Assim, nosso posicionamento metodológico foi o de ir direto às fontes, isto é, não satisfeitas com releituras, estudamos os autores que construíram, no âmbito da economia, o liberalismo e neoliberalismo. Analisamos, portanto, as principais obras de Adam Smith (liberalismo) e Friedrich Hayek e Milton Friedman (neoliberalismo).

    Para isso, dividimos nossa argumentação em alguns capítulos.

    No primeiro capítulo, voltamos às origens do liberalismo político e jurídico, estudamos os contratualistas e o surgimento do Estado moderno, para compreendermos como se configura a teoria do direito liberal, com Hans Kelsen. Ainda no primeiro capítulo, observamos como, política e juridicamente, na década de 1930 do século XX, passamos à deriva totalitária, e como o totalitarismo deixa suas pegadas, marcando o início dos nossos tempos.

    No capítulo segundo, investigamos o liberalismo econômico com Adam Smith e, consequentemente, qual o papel do direito para os economistas dos séculos XVIII a XIX. Outrossim, buscamos descobrir qual lei dirige o mercado. Esse modelo entra em crise na primeira metade do século XX, foi então que os direitos sociais puderam advir e reinou o Estado de Bem-estar Social até a década de 70 do século passado.

    No terceiro capítulo, demonstramos a derrocada da política do bem-estar para a instauração de um novo modo de organização econômica, jurídica e política: o neoliberalismo. Trata-se de um discurso que esperou algumas décadas para poder instalar-se, é que precisava que ocorresse uma crise, um choque que deixasse as pessoas atordoadas, para poder se colocar, inclusive cientificamente, como a única saída possível.

    No quarto capítulo, explicamos a relação entre neoliberalismo e direito, como o direito organiza-se e influencia o mundo neoliberal. Não é uma relação passiva e de submissão, mas uma espécie de ligação simbiótica em que jurídico, político e econômico se interpenetram e agem um no outro.

    Finalmente, uma vez feita a leitura teórica, procuramos explicar que a racionalidade neoliberal invade o campo subjetivo, causando sofrimento psíquico. Aliás, não teria como ser diferente, afinal, como disse Lacan, o inconsciente é a política².

    Desejamos ao leitor uma boa leitura.


    1 Todas as epígrafes são de autoria de Gislaine de Paula.

    2 LACAN apud BROUSSE, Marie-Hélène. O inconsciente é a política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2003. Lacan proferiu esta frase nos Seminário 14, A lógica do fantasma, de edição autorizada ainda inédita.

    2 A LEI E A-LEI

    Natureza, mãe dos viventes,

    Entre acasos e ausentes

    O horror há de perdurar

    Teu olhar não engana

    Declama e derrama

    Inunda em chamas a humanidade

    E que a lei se faça só

    Em teu enlace, corda e nó

    Ainda vai-se a ruir

    Começar uma escrita não é algo simples, principalmente se não definimos claramente por onde (ou por quando) queremos começar. Começar, portanto, é um ato de desbravamento, de lançar-se ao vazio. Pois bem, decidimos empeçar pela lei. Não a Lei (com l maiúsculo), mas a lei, mais singela; afinal de contas, este é um escrito que parte do campo do Direito.

    Vamos localizar-nos no tempo e no espaço – há lei em muitos lugares e tempos. Partimos da tradição ocidental de lei, mais precisamente daquilo que se convencionou chamar de modernidade. Não que as demais tradições não sejam importantes, ocorre que, para este texto, este é o breve ponto de partida. Talvez fique mais claro no decorrer da leitura por que decidimos avançar daí.

    2.1 A LEI COMO PACTO, O ESTADO COMO GARANTE

    Hannah Arendt localiza no limiar da era moderna três eventos que, embora pré-modernos, determinam o caráter da modernidade: a descoberta da América pelos europeus e, por conseguinte, a exploração de todo o planeta; a Reforma; e a invenção do telescópio, que, além de retirar o homem do centro do universo, deu ensejo a um novo modo de fazer ciência.³ Segundo François Ost, na modernidade a escrita do direito transforma-se: sob a influência dos modelos racionalistas do direito natural e no contexto de fortalecimento das soberanias de Estado, o direito concentra-se agora em textos escritos.⁴.

    Essa transformação se acelera a partir do século XVI, anunciando o fim paulatino das obrigações feudais e o surgimento de sociedades civis baseadas na liberdade de contratar e na propriedade. São elaboradas, consequentemente, codificações para assegurar tais fins, os quais se mostravam necessários para promover as revoluções burguesas.

    Nesta via podemos acrescentar, junto com Louis Dumont, que o coroamento das doutrinas modernas, com o triunfo do indivíduo, foi realizado pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789⁶. Não queremos pular algumas etapas para ir direto à Revolução Francesa – sobre a qual, aliás, não iremos nos debruçar. Primeiramente, é preciso compreender os autores que, no campo do Direito e da Teoria Política, iniciaram a construção de um ambiente teórico adequado à edição da Declaração de Direitos.

    De acordo com Jeanine Philippi, a legalidade, no princípio da era moderna, passa a ser entendida como construção humana racional, eis que não há nenhum deus zelando pelos homens. Trata-se, de certo modo, de uma antropologização do direito a qual se inicia com a teoria contratualista e seus três momentos distintos: o estado de natureza, o contrato social e o Estado civil.⁷ Trabalharemos, nas linhas a seguir, com os três principais autores do constratualismo, quais sejam, Hobbes, Locke e Rousseau, cada qual com suas particularidades.

    Por este viés, a fim de encontrar uma completa e perfeitamente consciente teoria individualista.⁸, é necessário ir a Hobbes. O filósofo inglês conjectura um estado de natureza onde os indivíduos são livres e só seguem seus apetites e paixões, entrando em conflito capital com frequência. Logo, estes indivíduos se veem obrigados a unir-se em uma sociedade para escapar da ruína de todos. Segundo Bobbio, essa reviravolta no ponto de partida tem consequências decisivas para o nascimento do pensamento liberal⁹ e democrático moderno.¹⁰

    Thomas Hobbes publicou o Leviatã em 1651. O título faz referência a um monstro mitológico que habitava os oceanos cujas lendas causavam horror aos navegadores europeus. Esta criatura fantástica representa o Estado, um ser artificial humanoide constituído para proteger e defender os homens:

    A soberania é uma alma artificial que dá vida e movimento a todo o corpo; os magistrados e outros oficiais de justiça e execução são ligamentos artificiais; a recompensa e o castigo [...] são os nervos, que fazem o mesmo no corpo natural; a riqueza e a abundância de todos os membros particulares constituem sua potência; a salus populi (a segurança do povo) é seu objetivo; os conselheiros [...] são a memória; a equidade e as leis, uma razão e uma vontade artificiais; a concórdia é a saúde; a sedição, a enfermidade; a guerra civil, a morte. Por fim, os pactos e os convênios, mediante os quais as partes desse corpo político se criam, combinam e se unem entre si, assemelham-se àquele fiat ou Façamos o homem pronunciado por Deus quando da Criação.¹¹

    Antes de surgir o príncipe infernal, no entanto, os homens estavam abandonados à própria sorte. Tendo como guias apenas seus desejos, apetites, necessidades e paixões, os indivíduos vagavam isolados sem nenhuma instância superior para protegê-los de seus semelhantes: eis o estado de natureza.

    A natureza, diz Hobbes, criou os homens iguais nas faculdades do corpo e do espírito. Claro que às vezes algum deles pode ser mais forte ou mais esperto que outro, mas, quando considerados em conjunto, a diferença entre cada pessoa não é tão relevante a ponto de um querer para si qualquer benefício que o outro não possa aspirar da mesma forma. Além disso, o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, até porque nas faculdades mentais os homens são mais iguais ainda¹².

    Todos os homens desejam ter uma vida feliz e manejam as suas ações para alcançar este fim. Para Hobbes, a felicidade é um contínuo progredir de desejos, passando de um objeto para outro, assegurando os meios para seus desejos vindouros. Ocorre com frequência, porém, que os homens queiram as mesmas coisas, não podendo desfrutá-las por igual: tornam-se inimigos e tratam de eliminar e subjugar uns aos outros¹³.

    Disso advém uma eterna postura de guerra entre os homens, onde não há noções de bem e mal, justiça ou injustiça; até mesmo os pecados oriundos dos desejos e paixões não são conhecidos dessa forma, porque não há uma lei comum que sirva de referência. Consoante Hobbes, não há lei onde não existe poder comum, onde não há lei, não há justiça¹⁴.

    O que existe no estado de natureza é tão somente o direito natural, ou seja, a liberdade que cada homem tem de utilizar seu poder como bem lhe aprouver, para preservar sua própria natureza, isto é, sua vida; consequentemente, é a liberdade de fazer tudo aquilo que, segundo seu julgamento e razão, é adequado para atingir esse fim¹⁵. É importante destacar que Hobbes compreende a liberdade como a ausência de empecilhos externos.

    A lei da natureza é estabelecida pela razão, proibindo o homem de destruir sua própria vida ou privar-se daquilo que é necessário para manter sua preservação. As leis naturais obrigam o homem apenas no foro interno, isto é, são conclusões racionais que cada homem cumpre porque assim o deseja¹⁶.

    A condição primordial dos seres humanos é a guerra de todos contra todos: no estado de natureza todos têm direito a tudo, inclusive ao corpo alheio. Percebe-se que não seria possível que os homens vivessem dessa forma por muito tempo, pois ninguém estaria seguro em lugar algum. Destarte, a primeira parte da lei da natureza diz aos humanos que devem procurar a paz e seguí-la. O homem quer a paz, pois não apenas teme uma morte violenta, como também deseja coisas que lhe dão conforto. A razão que leva os homens a desejarem normas que garantam a paz.¹⁷

    A segunda parte da lei da natureza estabelece que o homem deve abrir mão do seu direito sobre todas as coisas a fim de que, com uma pequena restrição de liberdade de cada humano, todos possam viver em paz. Trata-se de uma transferência mútua de direitos por meio de um contrato, um pacto que conta com a anuência de todos. Por fim, o desdobramento derradeiro da lei de natureza é o de que os pactos devem ser cumpridos¹⁸.

    Em suma, os seres humanos, preocupados com sua própria conservação e procurando uma vida feliz, acabam por viver voluntariamente em Estados. Com o pacto instituem poder a um só homem ou a uma assembleia que lhes garantirá segurança por meio da lei civil, limitando sua liberdade natural. O Estado é, para Hobbes, uma pessoa instituída, pelos atos de uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, como autora, de modo a poder usar a força e os meios de todos, da maneira que achar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum¹⁹.

    O soberano, autorizado pelos demais, os súditos, é titular dessa pessoa artificial denominada Estado. Aquele que detém o poder soberano representa a todos; logo, os verdadeiros autores dos atos e decisões do soberano são os súditos. Por isso, o soberano não pode ser destituído, ora, escreve Hobbes, ninguém pode destituir a si mesmo. No Estado, a lei fundamental é aquela que manda que os súditos sustentem o poder conferido ao soberano, qualquer que seja ele, já que, sem ele, o Estado não existiria e a guerra voltaria a reinar²⁰. A segurança, como nos lembra Jeanine Philippi, é o fundamento para a submissão dos homens a um poder supremo.²¹

    A lei civil – posta pelo Estado – e a lei natural – que vem da razão – contêm-se uma na outra. As leis naturais são equidade, justiça, gratidão e outras virtudes. Elas não são propriamente leis, pois as leis só existem com o Estado; trata-se de qualidades humanas que o predispõem para a paz e obediência. Obedecer à lei civil faz parte da lei natural. A obrigação dos súditos de obedecer à lei e ao soberano permanece enquanto dura o poder que lhes garante proteção, haja vista que o direito natural de defender-se não pode ser abandonado por meio de nenhum pacto²².

    Nesse processo, o direito de natureza – isto é, a liberdade natural do homem – é limitada pela norma civil, cuja finalidade, argumenta Hobbes, não é outra senão esta restrição. A lei, portanto, é instituída para coibir a liberdade natural dos indivíduos e, com isso, impedir que eles causem danos uns aos outros. Em Hobbes, (...) os termos direito e lei não se confundem. Para o autor, jus [direito] é sinônimo de libertas em contraposição a lex [lei], que significa grilhão(...).²³

    Consoante Philippi, Hobbes nos apresenta um novo nome para perpetuar, no silêncio da lei, a referência a uma autoridade inquestionável.²⁴ Embora esse discurso possa ter sido revisado ou obscurecido, temos a certeza de que ele não foi completamente destruído;²⁵ hoje, no entanto, talvez não seja mais o Estado a autoridade inquestionável.

    Hobbes constrói as bases para emergência do Estado moderno, que caracteriza a modernidade ocidental. Defendendo um modelo de Estado absolutista, cujo poder se concentra nas mãos do rei, o escrito de Hobbes deixa para trás o direito feudal. Mas não foi apenas Hobbes que alimentou o surgimento do direito moderno. Veremos que, com Locke, o fundamento para o Estado é, em última instância, a defesa da propriedade.

    Na obra de John Locke o estado de natureza é um estado de liberdade e igualdade perfeitas. Nele, todos podem exercer poder e jurisdição, sendo que a própria execução das leis está a cargo de todos os homens. Embora seja um estado de liberdade, em que os humanos podem dispor como quiserem de sua pessoa e de suas posses, não é um estado de licenciosidade, eis que lhes é vedado destruir a si mesmos ou qualquer criatura consigo – inclusive outros

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1