José Miguel Leal da Silva - Entre química e minas
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Sobre este e-book
José Miguel Leal da Silva, um engenheiro formado em Química Industrial na Universidade do Porto, já na infância brincava «às fábricas» no jardim de casa e, na adolescência, fugia de bicicleta para explorar as minas dos concelhos da Feira, de Valongo e de Gondomar, revelando a sua paixão por fábricas e amostras minerais.
Este livro mostra o seu contributo para a evolução tecnológica da produção de adubos nas fábricas da Companhia União Fabril (CUF) no Barreiro, para onde entrou em 1961. Na área de produção de ácido sulfúrico a partir de pirites e de enxofre, teve várias funções de liderança, deixando o seu legado na transição das unidades de câmaras de chumbo para as fábricas de contacto.
Tanto no grupo fundado pelo industrial português Alfredo da Silva como na QUIMIGAL e na Empresa Mineira e Metalúrgica do Alentejo, acompanhou o aproveitamento dos minérios do Alentejo, defendendo sempre projectos de coordenação entre a mina e a metalurgia.
Maria João Alexandre
é jornalista e coordenadora de edições especiais na área dos negócios há mais de 20 anos, colaborando com grupos de media líderes em Portugal. Estreou-se na escrita de histórias de vida em 2018, com a publicação da biografia de Carlos de Abreu Faro, engenheiro químico português e criador do famoso sabão Clarim para o Grupo CUF. Em Memórias de Um Inovador, conta a história da infância do engenheiro, passada na Casa Pia, da criação do sabão Clarim e do primeiro hipermercado em Portugal. É ainda autora de duas biografias da colecção «Histórias de Liderança», incluindo este José Miguel Leal da Silva: Entre Química e Minas e outra obra no prelo.
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José Miguel Leal da Silva - Entre química e minas - Maria João Alexandre
José Miguel Leal da Silva – Entre Química e Minas
Título: José Miguel Leal da Silva: Entre Química e Minas
Autor: Maria João Alexandre
© Fundação Amélia de Mello, 2022
Reservados todos os direitos
A presente edição não segue a grafia do novo acordo ortográfico.
Revisão: André Morgado
Design: Ilídio J.B. Vasco
Fotografia da capa: Gonçalo Português
Isbn: 978-989-702-734-5
Guerra e Paz, Editores, Lda
R. Conde de Redondo, 8–5.º Esq.
1150-105 Lisboa
Tel.: 213 144 488 / Fax: 213 144 489
E-mail: guerraepaz@guerraepaz.pt
www.guerraepaz.pt
«Histórias de Liderança» e alguns ensinamentos para o futuro
A gestão é normalmente abordada como uma prática, uma actividade, uma técnica, mas é também o domínio profissional a que se dedicam milhares de pessoas, mulheres e homens, que, dia após dia, procuram criar, desenvolver e melhorar as organizações em que trabalham, em contextos de organizações alargadas ou até de dimensão reduzida. Sendo inúmeros os livros de gestão publicados todos os anos, raros são os que se dedicam às biografias daqueles cujas vidas fazem mover as organizações das sociedades modernas.
Os problemas e paradoxos com que os gestores se confrontam hoje são, na sua essência, os mesmos com que cada um de nós se confronta diariamente: questões e dúvidas «permanentes» que, em sentido geral, se repetem ao longo dos tempos.
A colecção «Histórias de Liderança» tem por missão ajudar a compreender o percurso das organizações e da sua gestão em Portugal através das histórias de vida de alguns dos seus gestores.
A nossa ambição é podermos receber também os contributos de pessoas que se destacaram nos seus sectores de actividade, numa abordagem de um gestor em sentido amplo.
Aproveitando a ligação natural da Fundação Amélia de Mello à extensa e muito rica actividade do antigo Grupo CUF, optou-se, numa fase inicial do projecto, por ir buscar exemplos de gestores que se destacaram, de forma relevante, nessas empresas. Esta opção pode ser considerada, sem grande dificuldade, um corolário da expressão «Tradição do Futuro», que passou a fazer parte integrante do léxico do antigo Grupo CUF e que, resumidamente, significa apontar caminhos para o futuro a partir dos exemplos de excelência do passado.
Numa outra perspectiva, a colecção «Histórias de Liderança» centra-se nos gestores, mas não esquece que as boas organizações são o resultado da colaboração de muitos outros, maioritariamente anónimos. E tem o duplo propósito de ajudar a preservar a memória empresarial de Portugal com base em experiências vividas, mas não fixadas como hagiografias, por um lado, e de contribuir para melhor compreendermos o passado, de modo a facilitar as escolhas para o futuro, por outro lado.
Por último, importa explicar que a lógica subjacente às primeiras escolhas dos biografados se baseou na circunstância de ser possível ter depoimentos de viva voz, sem que isso invalide a nossa intenção de partilhar também histórias de vida exemplares de alguns gestores já falecidos.
A colecção «Histórias de Liderança» é dinamizada pelo Centro da Memória Empresarial da Nova School of Business and Economics, com o apoio da Fundação Amélia de Mello.
índice
Prefácio
I. O despertar: infância e liceu
Na Rua da Fonte Santa, «às Árvores»
O ano de 1944
O retrato com boina
No liceu
A primeira escolha: Ciências ou Letras
II. Na universidade
Minas ou Química, uma outra opção
Ciências ou Engenharia?
Na Rua dos Bragas
O primeiro estágio: La Felguera (1958)
O segundo estágio: «O Sulfureto» (1959)
O terceiro estágio (1960)
III. Aprender no terreno
O «assistente extraordinário fora do quadro»
CUF: o «desembarque» no Barreiro (1961)
Engenheiros P. e Engenheiros I.
A formação intramuros e a colaboração com o ensino oficial no Barreiro
A abertura ao exterior
O Contacto 5 (1965)
A relação com o TCP – tratamento de cinzas de pirite
Do Barreiro, para lá e para cá do largo das Obras
O perdido ramalhar d’«as Árvores»…
Os Fiat 600 (e 600-D)
O Contacto 6 e os fornos de turbulência
A «torre» de oleum, os ácidos diluídos e o ácido GP
IV. A Life in an Ocean Wave e outras marchas
O ano de 1974
As «Novas Instalações»
O «mistério» da CUF mineira e o aparecimento da «crise da pirite»
A CPP e o PAIP
Neves-Corvo: Santiago, SOMINCOR, EDMA, EDM e o que mais foi
De algo que ficou abandonado nas minas
O regresso à QUIMIGAL: o projecto Cobre
Último Conselho de Gerência da QUIMIGAL enquanto empresa pública
Outras actividades até 1997
A privatização da QUIMIGAL (1995 e 1997)
1997 e a intervenção política no Barreiro
Após a privatização
O «caso Stinville»
Reforma
Arouca e o regresso às minas (por outra porta)
V. Legado familiar
Genealogia
VI. Testemunhos
Contributo deixado por Samuel Levy
Contributo deixado por José Manuel Mântua
VII. Ensinamentos para o futuro
VIII. Fechando
Ponto final. O gestor como prático reflexivo
Notas
ANEXOS
Obras publicadas ou levadas a público
«Uma Viagem ao Passado»
Antecedentes
Gamas típicas
O período do cobre
O período do enxofre
Produções a partir da pirite no Barreiro (Pereira, 1985)
A crise dos anos 70: o PAIP (Plano de Aproveitamento Integrado da Pirite)
O PAIP (1982)
Fase 1 (1965-1989)
Fase 2 (após 1982)
A «crise nacional» do purple ore
O projecto Cobre
Concluindo
Prefácio
É uma vida plena. Repleta de histórias únicas, episódios irrepetíveis e momentos insólitos. Desde a meninice em Gaia, a conclusão dos estudos universitários no Porto ou durante a sua longa carreira profissional – sempre com o Barreiro e a CUF como referências indeléveis. Marcando todos aqueles que tiveram o privilégio de se cruzarem na sua vida.
Eu tive o prazer de trabalhar de perto – e conviver – com o Leal da Silva. Pessoa muito afável, trabalhadora, eu dizia-lhe que «trabalhava 12 horas por dia e ainda encontrava forças para trabalhar outras 12 de noite».
Desses tempos, ficaram gratas memórias. Recordo-me de ele me ter pedido para ir encontrar, em França, as origens do engenheiro Auguste Stinville, antigo colaborador da CUF na altura do meu bisavô. Desdobrou-se em pesquisas na Net, até encontrar indícios da sua origem, qual Colombo, sem descansar até ao desenlace final. Esta era uma das suas características, não descansar até resolver o problema, sempre de cara alegre, contra tudo e contra todos.
Para lá destes pequenos episódios, é importante destacar o contributo de Leal da Silva para a grande evolução industrial que o Barreiro sofreu nas décadas de 60 e 70. Mal entrou nas fábricas da CUF, em 1961, Leal da Silva envolveu-se activamente e assumiu responsabilidades na concepção, construção e operação das fábricas de ácido sulfúrico – desenvolvimento esse que levou ao surgimento das unidades de Contacto 5, 6 e 7.
Leal da Silva destacou-se sempre pela busca de soluções inovadoras – estudando, testando e colocando em funcionamento as tecnologias mais recentes. Como também se destacou na vertente mais prática da engenharia, no chão da fábrica onde gostava de estar, contribuindo para a resolução dos inevitáveis problemas que surgem sempre que uma nova unidade começa a operar.
Além da engenharia química, que acompanhou todo o seu percurso profissional, Leal da Silva revelou-se um autêntico «homem dos sete instrumentos». Deu aulas na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, integrou a Ordem dos Engenheiros e presidiu ao júri do Colégio de Engenharia Química. A par de tudo isto, decidiu licenciar-se em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, inscreveu-se na Ordem dos Advogados e ainda exerceu na barra dos tribunais.
Depois de reformado, participou activamente nas comemorações do Centenário da CUF no Barreiro, integrando a sua comissão organizadora, e decidiu regressar à universidade. Desta feita para frequentar e concluir o mestrado em Antropologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. A sua tese de mestrado, Volfro! Esboço de Uma Teoria Geral do Rush
Mineiro – O Caso de Arouca, marca um regresso às origens. Um regresso ao Norte e às minas que o encantaram desde criança. As minas que são, a par da engenharia e da química, outra das paixões que marcaram a sua vida.
João de Mello
Presidente
Bondalti
I. O despertar: infância e liceu
Na Rua da Fonte Santa, «às Árvores»
José Miguel Leal da Silva nasceu às 19:30 horas do dia 8 de Junho de 1937, na então freguesia de Santa Marinha, concelho de Vila Nova de Gaia, distrito do Porto.
A mãe, Maria Eugénia Leal da Costa e Silva, era doméstica, e o pai, José Cândido da Costa e Silva, empregado comercial (contabilidade e escrituração) numa sociedade portuense que fazia intermediação no comércio de tecidos entre os grandes fabricantes nortenhos e os retalhistas do continente, ilhas e colónias. Os avós paternos chamavam-se Cândido José Gonçalves da Silva, comerciante, e Maria da Luz de Menezes Costa, doméstica, ambos de Valença do Minho. E os avós maternos, Miguel Joaquim da Silva Leal Júnior, notário, e Arminda Amorim Oliveira Leal, doméstica, ambos portuenses, mas radicados em Vila Nova de Gaia.
Nasceu numa casa arrendada, estreita, mas com dois pisos, que já não existe e que se situava no extremo norte da Rua da Fonte Santa, na arriba nascente do vale cavado onde teria havido uma fonte, da qual o vale e a rua sem saída receberam nome.
Nas traseiras, além do pequeno jardim, uma tanoaria; à frente, numa rua paralela e aproveitando o declive, um bairro ferroviário, com a sua arquitectura típica; no outro lado do vale, começava a zona industrial das Devesas (nome então grafado com z), que descia do sítio das Árvores até à estação do CF, com a grande Fábrica Cerâmica das Devezas, mais conhecida como «a cerâmica do Costa», hoje em ruínas (tanto ali como na Pampilhosa), e as oficinas metalúrgicas de uma companhia mineira afecta a interesses alemães, cujos fornos de estanho iluminavam a noite na azáfama dos anos da guerra, azáfama que também justificaria a instalação de uma separadora de volfrâmio no topo sul da própria rua.
Zé Miguel, como era então conhecido, era sensível a este ambiente industrial circundante, com os seus ruídos, fumos, oficinas, toques, armazéns, chaminés, o regular vaivém das horas de trabalho e dos comboios que, por um viaduto, atravessavam o vale. Tanto que o procurava imitar em miniatura: a sua mãe contava (e ele vagamente ainda recorda) a utilização que dava às cornetas de lata que lhe ofereciam. Espetando-as na terra, no bordo do único canteiro, via-as como chaminés de fábrica – que logo fazia seguir por uma correnteza de seixos, para representarem pavilhões industriais, e em que pequenas pitadas de açúcar atraíam formigas e permitiam simular uma ocupada população fabril. Tinha, nessa altura, quatro ou cinco anos e assim se entretinha sozinho «a brincar às fábricas».
Nesse tempo, as pessoas e as famílias visitavam-se. Era frequente a visita à casa dos avós maternos, próxima da Câmara Municipal, onde estes viviam com dois tios ainda solteiros (Guilherme, Maria Arminda), estando já casados e ausentes os tios Mário e António. Aí se reunia a família a propósito de festas e celebrações. Muito maior, com a fachada recoberta de vinha virgem e com um vasto jardim, a «casa das heras» (entretanto demolida) oferecia-lhe sempre surpresas.
Menos frequente era o contacto com a família paterna, mais numerosa e com uma distribuição geográfica mais ampla (tios e primos), que justificava encontros mais espaçados ou mesmo oportunidades de viagem em férias, inclusive à casa de Valença, que fora a dos avós paternos e berço dos seus nove filhos, alguns já então falecidos, mas onde continuava a viver uma tia mais velha, que ficara solteira. Nesse ramo Silva, localiza hoje alguns factos que muito o iriam influenciar: a colecção de minerais e a caixa de música do tio Adriano, o engenho, a oficina e as histórias do tio Luís, o correr mundo do tio Aristides, médico, que a todos surpreendia com postais ilustrados, que chegavam de locais remotos, e que preferira ficar a bordo do navio atracado, lendo os clássicos, a afrontar o frio que reinava em Nova Iorque quando, pela primeira vez, aí aportou «porque sempre teria tempo, mais tarde, para visitar a cidade» (e teve!) – isto sem desprimor para outros parentes com quem menos conviveu ou que não chegou a conhecer.
Quando, com 18 anos, o pai ajudava o avô na loja familiar, em Valença, onde se vendia de tudo um pouco, um «senhor Gavrilo» decidiu abater, em Saraievo, um arquiduque e a respectiva consorte, desencadeando convulsões mundiais que há muito se preparavam e cujas repercussões ainda se fazem sentir. Por causa disso, dois anos passados, o pai e o tio Luís foram metidos num comboio para Lisboa e, depois ainda, num barco para Brest, desembarcando ali para combater os boches numa França atravessada pela guerra. Ambos falavam francês e iriam receber uma forçada e intensiva «formação europeia», da qual o pai, sempre parco em relatos bélicos, regressou afectado pelos gases de guerra para convalescer em Paredes de Coura.
A mãe, nascida em Vila Nova de Gaia em 1904, tirara, num colégio interno do Porto, um curso cujo programa continha matérias que hoje fariam parte do ensino secundário e outras de formação feminina, à moda da época. Zé Miguel nunca se preocupou em saber como os pais se tinham conhecido. Compreendia que, num mundo em conflito, viviam muito felizes com um orçamento cuidadosamente vigiado e, por isso, sem lugar a exageros, recordando hoje como sua mãe cantava quando viviam na pequena mas cómoda casa da Rua da Fonte Santa, 31.
Com 6 anos, entra para o ensino primário, no Colégio Externato de Gaia, e ingressa logo na 2.ª classe porque já sabia ler, e bem. Tinha aprendido em