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Usos e Desusos do SUS pela Classe Média
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Usos e Desusos do SUS pela Classe Média
E-book312 páginas3 horas

Usos e Desusos do SUS pela Classe Média

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Sobre este e-book

O SUS é um sistema de saúde pobre para pobres? Quem tem plano de saúde, ao utilizar o SUS, "ocupa o lugar" de quem não tem? Quem gere e trabalha no SUS usa o SUS ou atua e decide sobre um sistema do qual, na vida real, se distancia? Quem é responsável pelo SUS? A partir de uma pesquisa sobre a visão da classe média sobre o SUS, a autora re?ete sobre essas e outras questões viscerais e relevantes para a sobrevivência do Sistema Único de Saúde brasileiro. Descubra quais são os usos e desusos do SUS perpetuados pela classe média carioca.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de ago. de 2022
ISBN9786525025025
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    Usos e Desusos do SUS pela Classe Média - Carolina Lopes de Lima Reigada

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    Usos e desusos do SUS pela

    classe média

    Editora Appris Ltda.

    1.ª Edição - Copyright© 2022 da autora

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis n.os 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.

    Catalogação na Fonte

    Elaborado por: Josefina A. S. Guedes

    Bibliotecária CRB 9/870

    Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT

    Editora e Livraria Appris Ltda.

    Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês

    Curitiba/PR – CEP: 80810-002

    Tel. (41) 3156 - 4731

    www.editoraappris.com.br

    Printed in Brazil

    Impresso no Brasil

    Carolina Lopes de Lima Reigada

    Usos e desusos do SUS pela

    classe média

    Dedico estas palavras a todas e todos que acreditam na Saúde como direito e lutam, incessantemente, pelo SUS. Que continuemos sonhando enquanto agimos — sonhando, para que não morra a realidade.

    AGRADECIMENTOS

    Agradeço a meus pais, irmãos, ao meu marido, à minha filha, aos amigos e às amigas de sonho. Vocês me mantêm viva.

    O vento é o mesmo.

    Mas sua resposta é diferente em cada folha. 

    Aprendi com as primaveras a me deixar cortar para poder voltar sempre inteira.

    (Cecília Meirelles)

    Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.

    (Rosa Luxemburgo)

    PREFÁCIO

    Este livro foi escrito com uma mão na indignação, presente em toda busca por sentido quando uma dada realidade é incompreendida; e outra mão no espelho, quando olhar para nós mesmas reforça o desejo de nos entendermos dentro dos processos de vida e de trabalho em que estamos inseridas.

    Um livro que foi alicerçado pela coragem e pelo desejo da autora em abordar um SUS — Sistema Único de Saúde — em que a classe média se ilude nas falas de não pertencimento, porque se faz presente quando dele necessita e porque ele lhe é um direito constitucional.

    Um livro que nos revela os valores dessa classe média, em que decisões são tomadas pela emoção, derrubando qualquer racionalidade, argumentação, evidência ou vivência de cuidados de qualidade em saúde ofertados pelo SUS. Um SUS que é, assim, negado, renegado, maldito e simultaneamente imerso na ambiguidade não percebida pelos frequentadores da classe média.

    A Saúde da Família descrita no livro oferta acesso, vínculo, empatia, coordenação do cuidado e a classe média agradece baixinho, olhando para os lados para não ser confundida com os pobres, pedindo em sussurro para não ser identificada. Carolina Reigada não quer amenizar, e aponta agilmente a reação quase ingrata dessa classe média do Rio de Janeiro, que não se enxerga usuária legítima de um serviço de saúde pública.

    A autora nos brinda com uma fala de fundo sobre preconceito, em uma sociedade que se constituiu na desigualdade, no autoritarismo, na hierarquia, na violência da escravidão e que hoje defende o mercado, o privado, o individualismo na regulação da vida social brasileira.

    A elite brasileira não tem um projeto para a nação, valoriza o que é externo, desvaloriza seu povo e mantém, assim, o ranking do país, classificado como um dos mais desiguais do mundo.

    A alta classe média incorpora os valores dessa elite, mimetizando comportamentos, pensamentos, ideologias e consumo, e isso segue em cadeia, chegando na classe média de estudo da autora, que, no entanto, não tem condições financeiras para se manter parecida, em nenhuma dimensão, com a alta classe média e muito menos com a elite rica e poderosa idealizada. Resta a frustração e a patética negação em usufruir de um direito à saúde, alegando ser o SUS um lugar para os pobres e, portanto, de desvalor.

    Conheci Carolina Reigada nos tempos em que ela era residente em Medicina de Família e Comunidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro/Fiocruz e desde então admiro sua honesta atitude de lutar pelo Sistema Único de Saúde, escrita em suas ações. Essa disposição à luta pelo SUS, pela Medicina de Família e Comunidade e pela Saúde da Família está presente na leitura deste livro.

    Então, se me permite um conselho, prezado(a) leitor(a), sugiro que traga sua indignação, seu espelho e venha com Carolina Reigada percorrer o discurso da classe média sobre o SUS, que ela tão bem registrou. Um registro que revela a descrição de ambiguidades e contradições, em contraponto com um serviço público de saúde que, ao ofertar acesso de qualidade, recolheu descrença.

    Mas este não é um livro desesperançoso!

    É antes de tudo um livro de ação e atitude, se entendermos a palavra como ato.

    Desejo a você uma boa leitura!

    Rio de Janeiro, maio de 2021.

    Valéria Ferreira Romano

    Professora associada da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro;

    Médica de Família e Comunidade;

    Coordenadora do Laboratório de Estudos em Atenção Primária da Universidade Federal do Rio de Janeiro;

    Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social Hésio Cordeiro/Uerj;

    Pós-doutoranda em Saúde Pública pela Fiocruz.

    APRESENTAÇÃO

    Este livro aborda o processo de expansão da Estratégia Saúde da Família (ESF) à classe média residente no bairro Grajaú, Rio de Janeiro, no prisma da seguinte questão: como se estabelece a comunicação entre os sujeitos, moradores da classe média, que, resistentes ao cuidado da equipe, relacionam-se com os profissionais da Estratégia Saúde da Família? Qual a percepção desses moradores de classe média sobre a possibilidade de cuidados em saúde ofertada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pela clínica da família (CF)?

    Durante minha formação na residência em Medicina de Família e Comunidade (MFC) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, atuei principalmente em bairros com condições estruturais precárias, da periferia urbana na cidade do Rio de Janeiro, com famílias de classes socioeconômicas mais baixas, excluídas historicamente do acesso aos sistemas públicos.

    No entanto, após a conclusão da Residência, trabalhei em equipes de Saúde da Família (eSF) responsáveis por territórios em que predominam famílias de classe média, a maioria com acesso a planos privados de saúde. Dessa maneira, passei a enfrentar novos desafios, outras vulnerabilidades, diferentes das observadas nos primeiros anos da minha formação.

    Em março de 2015, passei a trabalhar em um território de classe média, quando notei resistência — por vezes uma concreta barreira — de grande parte das famílias de classe socioeconômica mais elevada ao cadastro e seguimento pela equipe de saúde, principalmente no bairro Grajaú. Em geral, essas famílias de classe média, diferentemente do que estava acostumada a lidar, recusavam até o cadastro na equipe! Tinham um comportamento de desconfiança em relação ao Agente Comunitário de Saúde (ACS), algumas relatando medo de deixá-los entrar em suas casas; outras talvez reticentes em dividir seu espaço privado com desconhecidos, temendo por sua privacidade. Muitos desses pacientes me olhavam também com desconfiança, alguns verbalizavam a suspeita de que eu não era médica, entre outros motivos, por acreditarem ser difícil encontrar médicos no serviço público. A reação desses pacientes, em geral, era de espanto ao perceber agilidade para a marcação de consultas e julgar o atendimento de boa qualidade, encontrar medicação disponível gratuitamente ou ter facilidade em marcar exames complementares.

    No entanto, mesmo aprovando o atendimento, muitos expressavam vergonha em precisar recorrer ao SUS. Alguns pediam para não fazer visita em suas casas, para os vizinhos não saberem que estavam indo ao postinho. A maioria não se vinculava ao serviço de forma integral, procurando utilizá-lo de maneira oportunista, para solicitar renovações de receitas ou transcrições de exames, porém recusando-se a passar por consultas para tal, ou participar de outras atividades e propostas terapêuticas sem a presença do médico, como grupos de educação em saúde. Muitas vezes, a equipe se via frustrada, pois não conseguia prover um atendimento integral ao paciente, atuar como coordenadora do cuidado e muito menos inspirar atitudes menos medicalizantes e mais promotoras de saúde.

    Essas posturas, que tanto atrapalhavam o cuidado proposto pela ESF, repetiram-se entre indivíduos da classe média que moravam em dois bairros diferentes do Rio de Janeiro, distando cerca de 16 km entre si, nas duas equipes em que atuei nos últimos dois anos. Segundo relatos de outros Médicos de Família e Comunidade, são posturas comuns também entre seus pacientes de classes médias e altas, em outros bairros. Afinal, com a expansão da ESF no Rio de Janeiro, territórios de diferentes particularidades passaram a ser de responsabilidade da Atenção Primária à Saúde (APS), e novos problemas foram sendo notados para viabilização do acesso à população. Tal resistência em aceitar o cuidado público de saúde foi também percebida por equipes de outros estados brasileiros (PASSAMANI et al., 2008; ROSA; CAMPOS, 2013). Percebi que essa circunstância merecia ser objeto de estudo, pela repetição do fenômeno e por seu impacto no cotidiano e processo de trabalho.

    Para cumprir a universalidade, precisamos garantir o acesso de toda a população brasileira ao SUS. Por isso, optei por estudar os motivos de recusa ao cadastro a uma equipe de saúde da família em uma CF em Vila Isabel, Rio de Janeiro. Para tanto, com o objetivo de buscar compreender com maior profundidade as barreiras e facilitações ao acesso e ao cuidado pela equipe de saúde da família, realizei entrevistas semiestruturadas com essas famílias e, com apoio de material de revisão da literatura, espero poder apontar, ao longo da dissertação, caminhos que facilitem o encontro com esses cidadãos, até agora afastados da vertente assistencial do SUS.

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    Abep Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa

    ACS Agente Comunitário de Saúde

    Aids Acquired Immunodeficiency Syndrome

    APS Atenção Primária à Saúde

    Caps Centro de Atenção Psicossocial

    CEP Comitê de Ética em Pesquisa

    CF Clínica da Família

    CNS Conferência Nacional de Saúde

    Datasus Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde

    ESF Estratégia Saúde da Família

    EUA Estados Unidos da América

    eSF Equipe de Saúde da Família

    FioCruz Fundação Oswaldo Cruz

    IDH Índice de Desenvolvimento Humano

    Ipea Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

    Isco International Standard Classification of Occupations

    MFC Medicina de Família e Comunidade

    NMDP National Marrow Donor Program

    OMS Organização Mundial de Saúde

    PEA População Economicamente Ativa

    Pnab Política Nacional de Atenção Básica

    Pnad Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílios

    PSF Programa Saúde da Família

    Redome Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea

    SAE Secretaria de Assuntos Estratégicos

    Sisreg Sistema de Regulação

    SUS Sistema Único de Saúde

    TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

    Uerj Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

    UPA Unidade de Pronto Atendimento

    Sumário

    1

    INTRODUÇÃO

    1.1 JUSTIFICATIVA

    1.2 SAÚDE TAMBÉM É QUESTÃO DE CLASSE

    1.3 CLASSE SOCIAL PELO CRITÉRIO ECONÔMICO NO BRASIL

    1.4 A CLASSE SOCIAL ALÉM DA RENDA

    1.5 CLASSES SOCIAIS SEGUNDO O PÓS-MODERNISMO

    1.6 O LUGAR DA CLASSE MÉDIA

    1.7 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

    1.8 UNIVERSALIDADE E ACESSO: OBJETIVOS ALÉM DO OBJETIVO

    1.9 A ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA COMO ESTRATÉGIA DE ACESSO

    1.10 AS DIMENSÕES CONCEITUAIS DO ACESSO

    1.11 DESAFIOS AO ACESSO NA PRÁTICA DA ESF

    1.12 A INSERÇÃO DA CLASSE MÉDIA NO SUS

    1.13 CAMINHOS DA PESQUISA

    1.13.1 O CENÁRIO DE PESQUISA

    1.13.2 CONHECENDO AS PESSOAS ENTREVISTADAS

    2

    DESENVOLVIMENTO

    2.1 APRESENTAÇÃO DAS ENTREVISTADAS

    2.2 CONTEÚDO 1-SUS E ENTREVISTADAS: ENTRE TAPASE BEIJOS, UMA RELAÇÃO IMPESSOALMENTE PESSOAL

    2.2.1 SUS: desconhecimento e contradição entre vivência e representações

    2.2.2 Os aspectos negativos: o medo do hospital e a impotência

    2.2.3 A resistência ao SUS: um estigma reforçado pela mídia

    2.2.4 O estigma transborda para os profissionais do SUS

    2.3 CONTEÚDO 2 – PLANOS DE SAÚDE: DE SONHO DE CONSUMO À DECEPÇÃO, UMA MARCA DA CLASSE MÉDIA

    2.3.1 A busca pelo privado: mais qualidade ou um lugar social?

    2.3.2 O medo do SUS e o plano de saúde como necessidade básica

    2.3.3 As insatisfações com os planos de saúde: a cobrança dos direitos

    2.3.4 Nos preços, a cisão social; nos exames, a qualidade do cuidado

    2.3.5 A DESCONFIANÇA DO ENSINO MÉDICO

    2.3.6 SUS e planos de saúde: uma escolha ou uma interdependência?

    2.4 CONTEÚDO 3 – UMA CIDADANIA INCONFESSA E ENVERGONHADA: CIDADÃOS PRIVADOSE CONSUMIDORES PÚBLICOS

    2.4.1 Na falta de interesse pelo SUS, uma falta de cidadania?

    2.4.2 Na falta de cidadania, o individualismo?

    2.4.3 O direito: é universal ou do consumidor?

    2.4.4 Sem direitos, sem deveres: a imobilidade política

    2.4.5 O SUS: prestígio internacional, derrota brasileira

    2.4.6 Quem constrói o SUS? Quem se responsabiliza por ele?

    2.5 CONTEÚDO 4 – COMO REPENSAR A ESF NA TENTATIVADE ATRAIR A CLASSE MÉDIA: AS OPORTUNIDADES QUE SURGEM NAS CRISES

    2.5.1 Como aproveitar a crise: melhorando o acesso dos usuários ao diversificar as formas de comunicação

    2.5.2 Repensar a ambiência da clínica: buscar formas de acolher a todos

    2.5.3 Pensando em propaganda: com quem queremos falar?

    2.5.4 A necessidade de melhorar a rede com outros níveis de atenção em saúde

    3

    CONCLUSÃO

    REFERÊNCIAS

    1

    INTRODUÇÃO

    A Estratégia Saúde da Família (ESF), em sua concepção atual, foi moldada com o objetivo de reorganizar e fortalecer a Atenção Primária à Saúde (APS), efetivando a implantação das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) no território brasileiro, enfrentando as dificuldades referentes ao acesso e à universalidade da atenção à saúde, os quais são pontos nevrálgicos da política de saúde pública brasileira (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2012).

    Inicialmente, a APS brasileira estava vinculada à expansão de cobertura e oferta de serviços à população de baixa renda. Uma nova APS foi fruto de movimentos sociais das décadas de 1970 e 1980, que culminaram com a criação do SUS, cuja legislação pressupõe uma APS complexa, organizada em rede, com ações individuais e coletivas, integrais, com práticas de saúde e sociais (PASSAMANI et al., 2008).

    Infelizmente, a existência de uma legislação não é suficiente para motivar e efetivar ações. Apesar do pressuposto na Lei, no cotidiano dos serviços de saúde ainda podemos encontrar diversas barreiras ao acesso que, ao invés de universal, torna-se seletivo a alguns grupos sociais, excludente ou focalizado em algumas doenças ou programas de saúde (ASSIS et al., 2003).

    Gérvas e Fernández, em 2011, visitaram e conheceram às entranhas a ESF brasileira. Sua conclusão foi que a iniciativa é um sucesso, entretanto, assim como tem fortalezas, os autores apontam como um erro orientar o desenvolvimento tecnológico, gerencial e científico da ESF como um modelo para país pobre. Como consequência, testemunharam uma dissociação entre teoria e prática. Em teoria, a ESF é universal e não só para algumas camadas econômicas da população. Na prática, observaram que, consistentemente, os próprios profissionais que lá trabalham evitam o sistema público e, sempre que podem, contratam planos privados de saúde. Para os autores, é expressão da descrença na APS o fato dos profissionais que nela trabalham não procurarem médicos de família para seu tratamento, e se consultarem diretamente com especialistas. Também perceberam que raramente as unidades de saúde da família estão em zonas geográficas da classe média e, quando estão, o uso é feito principalmente por trabalhadores do local, como secretárias do lar. Quando ocorre o uso por moradores, é pontual, como para vacinas e medicações gratuitas.

    Os autores, dentre outras conclusões, apontam que um sistema de saúde feito para pobres será, inevitavelmente, um sistema de saúde pobre: carente de recursos, de prestígio, de qualificação técnica, de investimentos. Em geral, carente de interesse.

    1.1 JUSTIFICATIVA

    O interesse por uma APS forte e de qualidade, deve-se esclarecer, não deveria ser apenas da população pobre. Como vemos por meio da experiência de outros países com sistemas universais de saúde, a opção pela APS afeta positivamente o cuidado em saúde de toda a população. Sem uma APS bem estruturada, a universalidade torna-se improvável.

    Porém, atualmente, o que vemos no Brasil, e, mais especificamente, no Rio de Janeiro, é uma divisão social. A população com maior renda mensal opta pela cobertura duplicada por meio da compra de seguros privados de saúde e o SUS, universal, é relegado à parcela da população que não pode pagar por outros meios para ter acesso à saúde. Essa realidade tem relação com a histórica imagem negativa do SUS, que traz à maioria da população imagens que são associadas a precariedade, abandono e até medo de utilizar o SUS.

    A expansão da cobertura pela ESF no Rio de Janeiro trouxe à tona questões que antes não eram explícitas, já que inicialmente eram as áreas com famílias de renda mensal muito baixa que eram cobertas pela ESF: e essas famílias não tinham opção além do serviço público de saúde. Agora, cada vez mais áreas de classes socioeconômicas médias e altas estão sendo incorporadas aos territórios das equipes de Saúde da Família (eSF). Essas equipes, apesar de presentes geograficamente no território, não são acessadas por essas famílias, no que parece ser uma dificuldade de aceitação do serviço pela população, causando uma barreira importante ao acesso.

    Pela importância estratégica e política da classe média, é crucial que essa barreira seja compreendida. O que mantém essa parcela da população afastada de um serviço que está perto de sua casa, oferecendo cuidado gratuito em saúde, e como diminuir essa barreira? Trata-se de questão complexa, que passa inclusive pelo questionamento se o Brasil continuará construindo um sistema público universal de saúde junto e para a sua população. Com este livro, esperamos ajudar a abrir caminhos para essas reflexões, tão difíceis, mas necessárias.

    1.2 SAÚDE TAMBÉM É QUESTÃO DE CLASSE

    Há extensa literatura estabelecendo e reconhecendo a relação complexa e multifatorial entre classe socioeconômica e distribuição de agravos em saúde e mortalidade (SANTOS, 2011), incluindo questões econômicas, educacionais, sociais, culturais, raciais, psicológicas e comportamentais que influenciam a ocorrência de doenças na população e sua exposição a fatores de risco (RODRIGUES; MAIA, 2010; FLOR et al., 2013; BARROS, 1986). A distribuição desigual de poderes e direitos sobre recursos produtivos e capital faz com que os grupos desiguais tenham oportunidades diferentes, inclusive no tratamento em saúde. Assim, grupos sociais em desvantagem sistematicamente experimentam pior saúde ou maior risco de adoecimento que grupos em vantagem social e econômica (SANTOS, 2011). Essa desigualdade social faz com que, mesmo em face de progressos nos níveis gerais de saúde da população e melhorias na qualidade e disponibilidade de profissionais e serviços em saúde, as desigualdades em saúde persistam. Na verdade, a própria expansão social, se ocorre de forma a alimentar desigualdades sociais e econômicas, leva ao aumento das disparidades em saúde, já que os avanços no cuidado são apropriados mais intensamente e facilmente pelos segmentos da população

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