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A Porteira, a madame e outras histórias de portugueses em França
A Porteira, a madame e outras histórias de portugueses em França
A Porteira, a madame e outras histórias de portugueses em França
E-book131 páginas1 hora

A Porteira, a madame e outras histórias de portugueses em França

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Sobre este e-book

França é o país estrangeiro onde vivem mais portugueses. São quase 600 mil. Se contarmos com os descendentes, são mais de um milhão. Este livro dá rostos a esses números: conta histórias dos que partiram para combater na Primeira Guerra e decidiram ficar, dos que fugiram da ditadura, da miséria e da Guerra Colonial e não voltaram, e dos que deixaram o Portugal da Troika. Em 50 anos, os portugueses em França tornaram-se dirigentes associativos, culturais e desportivos, autarcas e empresários (alguns milionários). Os seus descendentes foram ainda mais longe: são deputados, embaixadores e até conselheiros de Presidentes da República.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de mar. de 2016
ISBN9789898838100
A Porteira, a madame e outras histórias de portugueses em França
Autor

Joana Carvalho Fernandes

Joana Carvalho Fernandes é jornalista. Nasceu em 1987, estudou Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social e História Contemporânea na Universidade Nova de Lisboa. Foi correspondente da agência Lusa em Almada e no Seixal. Viveu em Paris entre 2011 e 2013. Colaborou com a Lusa, RTP e a Rádio Renascença. Trabalha na revista Sábado desde fevereiro de 2014.

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    A Porteira, a madame e outras histórias de portugueses em França - Joana Carvalho Fernandes

    Lá em cima:

    histórias da emigração portuguesa para França

    A primeira pessoa que tocou à campainha do meu apartamento em Paris foi a Hermínia. Eu acabada de chegar, em sobressalto com a visita inesperada, e aquela estranha, vista do óculo da porta, a sorrir, balde e esfregona na mão. Vinha descompor-me. Percebi que era portuguesa mesmo antes de abrir a porta. Perguntei, em francês:

    – Quem é?

    – Sou eu.

    – Eu quem?

    – Eu.

    Abri, ela apresentou-se como Madame Moreira – Môrreirrá, na verdade – e falou muito devagar e alto, para a estrangeira perceber. Sou a porteira. O administrador ligou porque acha impróprio que o seu nome na caixa do correio esteja escrito num papel cor-de-rosa. Antes de me justificar pela excentricidade, perguntei-lhe se era portuguesa. Respondeu-me em português. Sou, chamo-me Hermínia. Desculpe-me estar vestida como uma cigana. Nos dias em que faço escadas tem de ser assim. Estrago tudo com a lixívia.

    Enquanto supervisionou a troca do post-it fluorescente por um pedaço de papel branco, contou-me que chegara a Paris há 35 anos e tinha quatro prédios a seu cargo. A loge¹ onde vivia ficava a uns passos dali, também no 1.º Bairro, o centro do centro. Éramos vizinhas. O português com quem emigrara tinha morrido cedo. Muito, muito depois, e só porque a família achou bem, casara-se com um francês. Os filhos viviam là-bas, em Portugal. O neto havia de vir para a casa de Lille, para onde ela e o marido planeavam mudar-se dentro de pouco tempo. Despediu-se num tom trágico, depois de me dizer que me ajudaria no que fosse preciso: "Só espero que não me aconteça como a um primo, que 15 dias depois de ter a retraite² morreu".

    A Hermínia foi o primeiro retrato da minha estadia de ano e meio em França, o país estrangeiro onde vivem mais portugueses. A sua história é uma entre quinhentas e noventa e duas mil, duzentas e oitenta e uma³. Se contarmos com os descendentes, o número duplica: são 1.243.419⁴. Quase metade vivem na região parisiense. Só duas cidades têm mais portugueses do que Paris: Lisboa e Porto. É fácil encontrar um pastel de nata; é difícil dizer um palavrão em português e passar despercebido.

    Não tenho emigrantes na família. No fim de 2011, aterrei nesta realidade agarrada a livros de história e com listas de pessoas que teria de conhecer para cumprir a tarefa que a agência Lusa me dera: reportar a vida dos portugueses que vivem em França. Fi-lo num ano de eleições presidenciais e legislativas, e de crise, em que a emigração disparava. Sozinha e de mochila às costas.

    Pelo país inteiro, ouvi, escrevi e filmei uma centena de histórias, a maioria sobre os últimos 50 anos. Aprendi que os portugueses em França se tornaram dirigentes associativos, militantes (incluindo da extrema-direita), empresários (alguns milionários)⁵, autarcas⁶, cantores, atletas e dirigentes desportivos. E que o salto foi ainda maior para os seus descendentes. Entre eles há jornalistas, atores, realizadores, humoristas, dirigentes culturais⁷, deputados, cônsules, embaixadores e até conselheiros de Presidentes da República⁸.

    Paris foi muitas vezes uma cidade difícil, mesmo para a privilegiada que corria à hora de almoço no Jardim das Tulherias e entrava sem pagar em todos os museus com a carteira profissional. No inverno anoitece às cinco da tarde e faz demasiado frio. Durante todo o ano, as pessoas caminham na rua sem se desviarem das outras, empurram-se no metro, que fede, e tendem a estranhar uma portuguesa jornalista e sem demasiado sotaque. Para um salário português, é tudo caro. Vivia há três meses em França quando fiz as primeiras amizades: a Raquel e o Abraham, ambos espanhóis. Faltavam-me os meus, apesar das visitas, e o João não queria mudar-se.

    Estes caprichos são, bem sei, ainda mais ridículos quando comparados com as histórias dos que saíram de Portugal sem nada – nos anos 60 e ao mesmo tempo que eu, que regressei a Lisboa, porque quis, em fevereiro de 2013. O que teriam sentido os que viveram nos bairros de lata e depois nos megacomplexos de habitação social, nos subúrbios? E os que foram a salto e não puderam regressar para ver os pais? Como namoraram à distância os que só escreviam cartas porque era caro telefonar? O que é viver num país sem compreender uma palavra do que é dito?

    Aterrei aliviada, embora tenha deixado em Paris mais de uma dezena de amigos, muitos franceses. Demorei mais de um ano a sentir saudades. No verão de 2014, reli as histórias que tinha escrito. Pareceram-me incompletas e dispersas. Senti que devia dar-lhes outra forma. Queria reencontrar-me com aquelas pessoas, fazer-lhes mais perguntas.

    Voltámos em outubro, eu e o João, agora juntos, na ida e no regresso. Fizemos as pazes com Paris e trouxemos este livro.

    Os históricos: a Primeira Guerra, o salto, a reforma

    A batalha que resiste: o combate pela memória do cabo Assunção

    O combatente número 13.044 do Corpo Expedicionário Português (CEP) parou diante do porto de Cherburgo para refletir. Tinha de tomar uma decisão: regressar a Coimbra e ao emprego como serralheiro, ou ficar em França para viver uma história de amor.

    João Manuel da Costa Assunção, 1.º cabo, desembarcara a 17 de fevereiro de 1917 – havia mais de dois anos – no porto de Brest, no extremo oeste do país, a centenas de quilómetros daquele onde agora se encontrava. Aos 22 anos já sobrevivera 400 dias nas trincheiras geladas e lamacentas da Primeira Guerra Mundial, debaixo de estrondosos bombardeamentos, e saíra ileso da sangrenta batalha de La Lys, onde o contingente português sofreu duras perdas⁹. Só precisava de entrar no navio ancorado em Cherburgo para voltar a casa. Não entrou. Rumou ao Norte-Passo de Calais, a uma pequena quinta na comuna de Ecquedecques. Tinha um pedido de casamento para fazer.

    Mélanie Beugny esperava-o. Ela era jovem e bonita, de lábios grossos. Conheceram-se – e apaixonaram-se – porque João costumava ajudar a família francesa nos trabalhos da terra durante os dias de repouso da frente de batalha. Ela tinha 16 anos quando se viram pela primeira vez. Ele era um homem com uma bela figura, media mais de um metro e oitenta, recorda Felícia Glória da Costa Assunção Pailleux, de 89 anos, a terceira dos 15 filhos que o casal teria – cinco rapazes e dez

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