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Coisas de Portugueses
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Coisas de Portugueses
E-book490 páginas5 horas

Coisas de Portugueses

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Sobre este e-book

Coisas de Portugueses é o primeiro romance redigido em português por Armando Santiago, autor de, nomeadamente, TrajetsLe Centre Du Monde (este, publicado pela editora canadiana L’instant même, Québec, 2010), Le DouteLe Chanoine, romances escritos para o mercado francófono. 
Coisas de Portugueses não é um “romance histórico”, no entanto, aborda um aglomerado de situações inventadas, postas em cena no palco da realidade histórica. Por outras palavras, encontra-se aí um certo número de episódios onde se vivem vicissitudes de personagens fictícias, lado a lado com figuras relevantes da História, de modo a amalgamar a ficção de umas com a autenticidade de outras. A acção desenrola-se desde meados do século XIX até aos nossos dias. 
Após ter terminado a leitura do livro, Leonor Castro Nunes comenta: “Romance da diáspora e de diásporas, Coisas de Portugueses relata a história de uma família e das pessoas que gravitam em seu torno ao longo de várias gerações. São várias as vozes que nos contam a História e as histórias, e esta polifonia tem o efeito de elevar aquilo que poderia ser um mero relato familiar a um exercício literário que nos faz ponderar quais os limites da identidade e da memória, da personagem e da ficção. George, Leopoldo, Telmo e Davide juntam as peças deste puzzle, que recorre a cartas, memórias, árvores genealógicas e manuscritos perdidos para enredar uma narrativa que os acompanha na viagem duma vida inteira. Se tudo começa em Portugal, logo estas pessoas, ideias, mágoas e críticas começam a galgar fronteiras numa tentativa de encontrar espaços à sua medida. É, por isso e acima de tudo, um romance sobre crescer: crescer em conjunto e crescer em direcções diferentes. É, também, um romance sobre um país que permanece igual.”
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de fev. de 2024
ISBN9789895790395
Coisas de Portugueses

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    Coisas de Portugueses - Armando Santiago

    Personagens

    De uma família banal:

    Francisco Monteiro/Chico do Monte (1841-1904), camponês, natural de Serpins, comerciante em Coimbra.

      x Adélia Alves/A Manquinha (1844-1927), camponesa, natural de Serpins, comerciante em Coimbra.

    −−−  Vitorino Monteiro (1867-1940), epíteto Maximus Natus, primogénito de Francisco Monteiro e de Adélia                                                                    Alves. Natural da Lousã.

    −−−  José Monteiro (1869-1945), epíteto Zecarius Secundus, segundo filho de Francisco Monteiro e de Adélia

    Alves. Natural da Lousã.

    −−−  Guilherme Alves Monteiro (1877-1958), epíteto Puer Tertium, terceiro filho de Francisco Monteiro

    e de Adélia Alves. Natural de Coimbra. Advogado em Lisboa.

    x Justina Valadas (1874-1961), segunda filha do Doutor Juiz Valadas, irmã de Justino Valadas, ambos naturais de Coimbra.

    −−−  Emília Alves Monteiro (1902-1999), filha única de Guilherme Alves Monteiro e de Justina Valadas. Natural de Lisboa.

    Alberto Figueiredo (1900-…), natural de Lisboa, médico em Lisboa.

    −−−  Leopoldo Figueiredo (1925-1973), primogénito de Emília Alves Monteiro e do Dr. Alberto Figueiredo. Natural de Lisboa, Professor de Liceu.

    x Ana de Oliveira (1944-1973), natural de Lisboa, Professora de Liceu.

    −−− : Jorge de Oliveira Figueiredo/George Oliver (1972-…),

    filho único de Leopoldo Figueiredo e de Ana de Oliveira, natural de Queluz, Filólogo, Professor na Universidade de Edimburgo.

    −−−  Telmo Figueiredo (1932-1998), segundo filho de Emília Alves Monteiro e do Dr. Alberto Figueiredo. Natural de Lisboa, pianista,

    Professor de composição em Melbourne, Austrália.

    Helen Powell (1940-2015), natural de Adelaide, Austrália. Cenarista.

    −−− Andrew Philkyred Powell (1971-…), filho único de Telmo

    Figueiredo e de Helen Powell. Natural de Melbourne. Sociólogo, Professor na Universidade

    de Perth, Austrália.

    −−− Joseph Philkyred Powell (2000-…), filho de Andrew      Philkyred Powell. Natural de Melbourne.

    Estudante em Literatura.

    De uma outra família banal:

    Arnaldo Magalhães (1902-1985), natural do Cacém, engenheiro ao serviço do Ministério da Indústria, em Lisboa.

      x Alzira Mendes (1910-2003), natural de Queluz de Baixo. (Fez pelo menos a instrução primária…)

            −−−   Davide Magalhães (1932-1996), filho único do Eng.º Magalhães e de Alzira Mendes. Natural de

    Queluz, pintor ao serviço do Departamento de Restauração do Museu do Louvre, Paris.

    De uma família de camponeses de Pisões, Serpins:

    Arlindo Jaime (1878-1948), caseiro de Guilherme Alves Monteiro, na casa de Pisões.

      x Conceição Rita (1880-1950), padeira de Pisões.

    −−−   Eduardo Jaime (1900-1972), primogénito de Arlindo e de Conceição, caseiro de Pisões.

    x Laura da Assunção (1906-1980), lavadeira de Pisões.

                              −−−  Aníbal Jaime (1933-1998), primogénito de Eduardo e de Laura, um ano mais novo do que Telmo Figueiredo e seu companheiro de caminhadas

    pelas serranias da Lousã. Alma livre e aventureira.

    Da Embaixada de França:

    Jules Salis (1878-1934), Adido Cultural.

      x Christiane Salis (1902-1977), pianista. Casou muito nova com Jules Salis.

    Guilherme Alves Monteiro

    −−−  Michel Salis (1943-…), filho natural de Guilherme Alves Monteiro e de Christiane Salis. Inscrito na Embaixada de França em Lisboa, como Cidadão Francês.

                                                                      Com sete anos de idade, parte para a França em companhia de sua mãe. Nunca mais voltaram a Portugal.

    Da referência à corte de Avis (Século XV):

    (Dom Pedro, duque de Coimbra, Infante regente durante a menoridade de Dom Afonso V)

    Pedro Meemdez da Ueyga (1424-1495), afilhado e cavaleiro do Infante Dom Pedro. Cónego.

    Simam Reymondo (1448-…), sobrinho de Pedro Meemdez da Ueyga, médico e astrónomo de Dom João II.

    Rodrigo de Arouce (1425-…), escudeiro de Pedro Meemdez da Ueyga.

    1.º Acto

    Olha, guarda-se na garagem...

    O meu nome é George Oliver. Uso este na Escócia, onde vivo desde quase sempre. A questão é que tive de andar às voltas com um outro, quando há uns anos tive de me deslocar a Portugal, onde nasci. Esse, é Jorge de Oliveira Figueiredo. 

    Está bem longe de ser um desdobramento de personalidades. Gosto imenso do Fernando Pessoa, mas nada tenho a ver com os seus problemas...

    Vou para trinta e cinco anos, sou filho único de Leopoldo Figueiredo e de Ana de Oliveira, mas fui criado pela minha tia Joana, pois perdi os meus pais quando tinha um ano de idade.

    A minha tia, Joana de Oliveira, que passou a ser a minha verdadeira mãe e a quem tudo devo, é titular de um curso de Literatura na prestigiosa Universidade de Edimburgo, onde é conhecida pelo nome de Jane Oliver.

    Nutro por ela uma grande admiração e tenho muito boas razões para isso. Tem uma maneira de ser fora do comum. Desde sempre mostrou ser uma espécie de maria-rapaz.

    Muito independente e desempoeirada de espírito, após ter completado uma licenciatura em Lisboa, veio imediatamente para Edimburgo, onde se diplomou na Universidade, em Literatura comparada das línguas neolatinas. Depressa se fez notar como uma das mais brilhantes alunas. De tal modo, que cinco anos depois de aqui ter chegado foi nomeada assistente de curso.

    Ao termo de mais dez anos, veio a suceder ao titular do curso, desfrutando do lugar que presentemente ocupa. A tia Joana usufrui de uma situação invejável. É muito apreciada no seu meio profissional. Tem horror ao casamento e assegura exemplarmente a sua independência.

    Ao fim destes quinze anos de vida em Edimburgo, a tia Joana é mais escocesa do que Portuguesa e está fora de questão a ideia de voltar a Portugal. «Nem de visita!», diz ela com o seu olhar fulminante e peremptório.

    É fácil de compreender até que ponto tenho eu sido por ela influenciado. Ter sido educado por uma pessoa como a tia Joana pode considerar-se um caso raro.

    Seguindo o seu exemplo, formei-me em Literatura na mesma Universidade, onde há anos fui nomeado assistente de curso na minha especialidade.

    Além disso, tenho uma paixão pela sua História e pelas buscas que lhe dizem respeito. Sob esse aspecto, sou uma variante bastante activa de rato de biblioteca.

    Contrariamente à maioria dos meus colegas, não consigo interessar-me pelo que encontro nas obras do meu tempo. Falta-lhes humanidade. Eles dizem que sou retrógrado e intolerante, mas não lhes ligo nenhuma. Em contrapartida, gosto particularmente da Literatura Portuguesa. A dos romancistas até meados do século XX.

    No entanto, não me sinto com grande talento para escrever. Se o tivesse, o mais provável é que viesse a fazê-lo com umas características próximas das dos tempos passados. Nostálgico de um certo lirismo, embora serôdio. Transbordante de um sentimentalismo, igualmente ferrugento. Não teria de dar contas a ninguém…

    Em matéria de criação artística, nada há como uma completa liberdade. Até mesmo porque haverá sempre alguém (quanto mais não seja, uma só pessoa...) que poderá compreender o resultado.

              

    Apesar da minha natural curiosidade, sobretudo durante a infância e a adolescência, em obter informações sobre as minhas origens, nunca consegui saber nada sobre a vida do meu pai e ainda menos sobre a dos seus. Pela tia Joana, a qual ignora praticamente tudo sobre a minha família paterna, vim a deduzir que provavelmente a minha avó paterna ainda ia vivendo, sem ter a mínima ideia onde exactamente, daí a dificuldade em comunicar com ela.

    Quanto aos meus pais, veio mais tarde a saber-se que se tinham casado um ano antes de eu ter nascido e que eram colegas num Liceu em Lisboa, onde ensinavam. Tinham vindo à Escócia por uma semana em visita à tia Joana, dez anos mais velha do que a minha mãe e sua única irmã. Puseram-se a visitar as Pentland Hills e o seu Regional Park. Tudo correu bem até ao momento em que numa curva da estrada, o pavimento escorregadio, pouca visibilidade, mau controlo da condução à esquerda, distracção — vá lá saber-se ao certo —, pode concluir-se o que aconteceu. Tudo espatifado contra uma árvore. Nada escapou. Nem o carro, nem as vidas...

    Eu tinha ficado em casa com a tia Joana, por ser ainda muito pequeno. Foi a minha sorte.

    Até aos vinte e sete anos de idade, nada mais tinha conseguido saber sobre... quem eu sou exactamente, além da minha anódina realidade escocesa.

    De facto, recebera nessa altura uma comunicação do Consulado Português em Edimburgo (eles lá conseguiram a maneira de me encontrar...), informando-me de que a minha avó paterna tinha falecido e declarando-me seu único herdeiro. Tratava-se de uma casa em Portugal, situada na região de Lisboa, de todo o seu recheio e de uma quantia em Euros à minha ordem numa sucursal bancária. Dizia ainda que, até uma data precisa, deveria dar sinal de vida, provando que sou Jorge de Oliveira Figueiredo (parecia que estavam a falar de uma outra pessoa...), a partir da qual perderia o direito a essa herança.

    — Que hei de fazer disto, minha tia? Não estava nada à espera! Tenho o tempo tão ocupado...

    — Ora, ora! Despacha-te! Vai a Portugal tratar do assunto. Envia para aqui o que te interessar e vende o resto. Vá, compra o bilhete para Lisboa e volta depressa. Tens aqui muito que fazer. E, já agora, vai também visitar a tua avó Oliveira, da Ameixoeira. Se ainda for viva... Chegando lá, logo te informas. Dizes que vais da minha parte...

    Como já disse, a tia Joana teve sempre um considerável ascendente sobre mim... Mais uma vez tinha razão. Era preciso resolver a questão o mais rapidamente possível, pois em Edimburgo já estava a decorrer a minha candidatura como assistente na Universidade.

              

    Cheguei a Portugal nos primeiros dias das férias do Natal.

    Antes de partir da Escócia, graças a relações entre serviços consulares, ficara estipulado que, uma vez em Lisboa, encontraria alguém enviado oficialmente pelo consulado, assim como um agente por ele devidamente recomendado — «muito competente, fique o senhor Jorge Figueiredo descansado» —, apto a apresentar soluções e a dar seguimento a todas transacções que viessem a ser necessárias.

    Com efeito, à hora prevista, no hotel mesmo em frente do aeroporto, onde eu iria ficar naquela noite, os dois cavalheiros, pontuais e gentilíssimos, estavam no hall à minha espera.

    Após umas assinaturas de documentos oficiais ligados à herança, o senhor Abel Maurício, o anunciado agente, propôs-me «se o Senhor Figueiredo nada vê em contrário», que nos deslocássemos sem mais tardar até à vivenda "que a partir deste momento lhe pertence. Temos ali o meu carro, desde já ao seu dispor, caro Senhor Figueiredo.»

    Por minha parte, depois de uma noite inteira passada em branco, embora sentisse um premente desejo de me deitar, consegui balbuciar um:

    Ora essa, por favor, Senhor Maurício, estou inteiramente à sua disposição.

    Estava espantado com a maneira como o meu Português me saía tão facilmente. Se a tia Joana me visse, deitar-me-ia do canto do olho um dos seus característicos e apreciadíssimos trejeitozinhos de aprovação.

    Abel Maurício justificava-se:

    Como o Senhor Jorge Figueiredo muito bem sabe, será in loco que melhor poderemos tomar as medidas adequados às suas decisões. Quanto a pormenores, que eu não me inquietasse. Estou cá para me ocupar de tudo, Senhor Figueiredo.

    Às voltas com a diferença horária, ouvia-o meio atordoado. Estava mergulhado numa espécie de pesadelo.

    Sem passar pelo centro da cidade, com a «cumplicidade» de uma auto-estrada barulhenta, a viagem até à vivenda da minha avó não durou mais do que uns vinte minutos. Dava-me a impressão que tudo se passava em Lisboa, em torno de largas avenidas.

    Em dado momento, entrámos num aglomerado anódino, com aspecto de bairro tranquilo. Abel Maurício imobilizou o carro.

    —  Meu caro Senhor Jorge Figueiredo, é aqui mesmo. Aqui tem a sua vivenda e exibiu umas chaves a anunciar ferrugem.

    Estávamos a meio de uma rua ladeada de plátanos, raros transeuntes, num sítio do qual logo a seguir esqueci o nome. O centro de Lisboa não devia encontrar-se muito longe...

    Fiquei apavorado. Diante de mim vi um casarão imenso, abandonado, a ameaçar ruína. Ervas daninhas invadiam a escada e o terreno de entrada, onde parecia ter havido outrora um pequeno jardim.

    Era a casa da minha avó, mãe do meu pai...

    A custo reprimi o impulso de tomar o caminho para o aeroporto imediatamente, de volta a Edimburgo.

    Salvou-me a amabilidade de Abel Maurício.

    Entrámos. Chegara a altura das decisões.

    O meu ar juvenil, a minha pressa em tratar das coisas e o que me tinham dito sobre o que se passa com os negócios em Portugal, fariam certamente com que o homem me ludibriasse descaradamente. Não tinha ilusões. Pouco me importava.

    Depois de uma visita sumária, depressa se viu o que havia de se fazer. A casa seria vendida num instante. Compradores não faltariam para em seguida a demolir. O que ali tinha interesse era o terreno. O recheio móveis e roupas, coisas velhíssimas, sem valor que fosse vendido ao desbarato… Estava a ver que ainda tinha de pagar para me ver livre de tudo isso. Apenas me interessei pela biblioteca. Era de prever. Havia livros de todas as espécies em todos os andares. Uns tantos milhares. Dei a entender que ficaria com todos eles, mesmo sem ter uma ideia clara do seu valor bibliográfico ou comercial.

    Não se preocupe, Senhor Figueiredo, vou encarregar-me pessoalmente das embalagens. A livraria será enviada em bloco para Edimburgo. Rigorosamente, meu caro Senhor Jorge Figueiredo!

    Tudo estava a concordar com o que a tia Joana me tinha recomendado. Nada mais havia a fazer.

    Sempre muito solícito, Abel Maurício concluiu que era implícito o meu regresso ao hotel. O carro voltou a voar, não consegui perceber se pelo mesmo caminho.

    —  Muito lhe agradeço a sua disponibilidade, meu caro Senhor Maurício.

    Ora essa, foi com muito gosto, Senhor Figueiredo. Em breve lhe enviarei as contas directamente para o seu endereço na Escócia.

    O meu único interesse naquele momento estava em subir para o quarto e dormir durante um tempo indeterminado...

    Quanto a uma visita à avó Oliveira (da Ameixoeira... Um apelido ou um lugar?)… Outra pessoa que eu nunca tinha visto... Que ideia! Nada feito. Fiquei desejando que a tia Joana não viesse a lembrar-se de me falar no assunto.

    No dia seguinte, regressei a Edimburgo. Se me perguntassem o que eu pensava de Portugal, diria que me tinha parecido como um sopro agitado, mergulhado numa sonolência pegajosa de mistura com a imagem difusa de um casarão escalavrado, forrado com uns tantos milhares de livros...

    Com toda esta aventura, paguei a minha viagem, as despesas com o agente, o envio dos livros e, uma vez de regresso à Escócia, com uns tantos Euros no bolso (o terreno «era o mais importante»...), entre outras liberalidades, regalei-me com uma grande jantarada no mais luxuoso restaurante de Edimburgo, em companhia da tia Joana e dos meus amigos mais chegados. Aperitivos e pratos à escolha, vinhos, caviar, champagne, doces, digestivos. Um violinista passava pelas mesas, dá-se-lhe uma gorjeta choruda. Uma gigantesca loucura.

    Viva George, o ilustre herdeiro!

    Até houve discursos. Fazia pensar no exibicionismo de um banqueiro endinheirado. O único fogo de vista da minha vida. Porque não?

              

    A minha admissão ao ensino na Universidade foi um sucesso. Passei a ter uma posição assegurada. Feliz como um pequeno príncipe.

    A história da minha herança era já como um assunto do passado.

    Todavia, meses depois, chegava a casa a livraria enviada de Portugal.

    — Ó minha tia! Onde é que vou pôr toda esta coisa?

    — Olha, guarda-se lá em baixo na garagem.

    — Mesmo assim, um destes dias tenho de ver bem de que se trata...

    — Se tiveres tempo para isso...

    — Logo se verá...

    Deixei passar uns largos meses até que tomei uma decisão. Contratei um estudante que lesse um pouco de Português para proceder ao inventário de toda aquela livralhada. O rapaz fez um bom trabalho, mas foi de tal maneira lento que levou quase um ano a terminá-lo.

    A maioria dos livros ficou na garagem. Os que tratavam de História e os de Literatura de ficção vieram invadir as paredes do meu quarto.

    Quando nos sobravam uns minutos, quer eu, quer a tia Joana, íamos farejando este ou aquele livro, de raspão. Em prioridade, os que tratavam de assuntos históricos.

              

    Estava já eu nos meus trinta e dois anos e a tia Joana com setenta e um, chegaram umas férias do Verão em que o tempo livre foi um pouco mais abundante.

    A sondagem aos livros de Portugal passou a ser mais assídua. Comecei a ver o que é por ali havia de romances. Um pouco de tudo... Os clássicos... Os românticos... Nada que me fizesse alvoroçar...

    Um dia, porém, corro a procurar a tia Joana, quase embevecido.

    — Minha tia, veja o que encontrei. Nos livros vindos de Portugal, uma verdadeira surpresa. Uns apontamentos redigidos pelo meu pai e encadernados como se fossem arremedos de um livro. Imagine! Gostava de conhecer a sua opinião, para ver se coincide com a minha. Os assuntos, à primeira vista, parecem-me ter que ver com a história de uma família portuguesa dos arredores de Lisboa. Gente um tanto banal. O que atraiu a minha atenção foi o sabor da sua escrita. Muito cuidada. Já não é declaradamente romântica, mas tem uma cor que se lhe aproxima. Ao que me parece, nunca devem ter passado de anotações... Que projectos chegaram a ter sido imaginados a seu respeito? Não se pode saber...

    — Assim que tiver um momento, vou dar-lhes uma vista de olhos. Têm um título?

    Movimento Perpétuo.

    — Ah! É sugestivo...

    Passou bastante tempo antes que voltássemos a falar sobre o caso. Até que um dia a tia Joana atacou a questão, bruscamente.

    — Vi as anotações do teu pai. Fiquei com uma impressão que se aproxima bastante da tua. Estão, de facto, escritas numa linguagem que está hoje fora de moda, mas têm uma certa coerência e qualidades. Penso mesmo que, se eu estivesse no teu lugar, investiria qualquer energia sobre esses escritos. Creio que valem a pena. Seria uma espécie de reabilitação desse esforço do teu pai. Não vejo ainda como... Mas...

    — Vou pensar no que me diz.

              

    Todos os momentos livres passaram a ser poucos. Lia os apontamentos do meu pai com uma certa sofreguidão. Não deixei de apreciar-lhe a maneira como formulava as frases. Dava-me a impressão de ser alguém que não podia separar-se de sabores, do ritmo e de sonoridades ainda em uso na sua juventude. Além disso, apreciava a sua imaginação quanto à forma como abordava as personagens. A sua implicação nos momentos históricos das suas épocas, as situações felizes ou dolorosas, onde a virtualidade da alma portuguesa não consegue esconder-se. As suas crenças, as suas fraquezas, as manhas, o amor e o afecto. A imanência da sua proverbial empatia.

    De tal forma que, ao cabo de intermináveis interrogações, de desistências e de estímulos, me veio a ideia de lhes dar uma outra aparência. Passei todas aquelas férias enternecido com essa ideia.

    Nunca tinha pensado que Movimento Perpétuo viesse a ocupar o meu espírito com tanta insistência.

    George Oliver

    Edimburgo, 2020

    2.º Acto

    Movimento perpétuo

    Entrevisto por Leopoldo Figueiredo.

    Revelado por George Oliver.

    Lembro-me ou não? Ou sonhei?

    ¹

    Montes, e a paz que há neles, pois são longe…

    ²

    Ali não havia electricidade

    ³

    Quando de longe contemplo uma floresta, tudo parece igual. De uma cor conciliante e vaga.

    Matiz de montanha silenciosa. Imensa…

    Se vagueio no seu interior, ó assombro!, surge aqui e acolá um ou outro gigante de um verde diferente. Único.

    Talvez um castanheiro…

    Não uma árvore agreste como as demais.

    Detenho-me a admirá-la na sua singularidade. Contra o seu tronco amplo, reclino-me em infindável devaneio.

    Começo a cismar nas gentes de um qualquer ponto do mundo. Todas reguladas por igual medida. Conformando-se com a trivialidade que uma só regra traça.

    Passivas e felizes de o ser...

    Deparo então com outros entes, raros, que, trilhando as mesmas sendas, o fazem diferentemente.

    Ultrapassam os restantes, longe da cor frívola da normalidade.

    Quando se expressam — deixando adivinhar-se-lhes amarguras e júbilos encobertos — explicam a forma do universo.

    Dão uma outra razão à vida.

    Os seus regozijos e os seus prantos, sentem-nos como desde o Génesis assim foram sempre sentidos. Em ciclos de infinda inquietação. De total efeito. Imponderável.

    Perplexos. Vergados ao movimento perpétuo da existência. 

    É deleitável atinar com prodigiosos castanheiros no meio de rudes arvoredos, desmedidos e banais.

    Porque existem, tais admiráveis peregrinos redimem a humanidade inteira.

    Então, quedo-me a contar os seus feitos… Mesmo se ao narrá-los lhes aderem impurezas lançadas pela poeira que em torno deles se levanta…

    Natural encanto

    O avô Guilherme, pai da minha mãe, tinha sido no seu tempo um dos mais famosos advogados de Lisboa. Incessantemente procurado para se ocupar dos casos mais intrincados, tinha a fama de nunca ter perdido uma causa. De tal maneira, que podia dar-se ao luxo de escolher os clientes que melhor podiam pagar os seus honorários, dos quais podia dizer-se que se ajustavam em harmonia à sua reputação.

    Ao longo da sua brilhante carreira de trabalhador infatigável conseguira, portanto, amealhar uma fortuna considerável. Levava uma existência invejável.

    Vivendo abastadamente, já o Telmo, o meu irmão, ia nos seus dez anos, o avô Guilherme resolveu mudar de ares e, por esta e por outras judiciosas razões de subtil estratégia, levou a família para viver em Queluz. Aqui, a meio da pitoresca avenida António Eanes, então ornada de frondosos plátanos, tinha comprado uma das mais graciosas vivendas sobrelevadas, cercada por um jardim que um alto muro vedava. Em baixo, ao nível do passeio calcetado diante de uma escadaria, um portão de ferro defendia a propriedade do abeiramento de transeuntes curiosos. Era uma moradia ostentosa. Comparada com o precedente apartamento de Lisboa, era um palacete. 

    A abalada do centro de Lisboa dava à escolha de Queluz, para aí ir comprar casa, um aspecto de uma fina subtileza. A do gesto afidalgado de um grande senhor que goza o refinamento do seu palácio dos arrabaldes. Como alguém que está sempre em tempo de vilegiatura...

    A vivenda era suficientemente vasta para que a filha e os dois netos continuassem a viver em sua companhia, agora muito mais confortavelmente. E que em mais tempo algum viessem a sofrer mau passadio. A minha mãe, filha única, era uma pessoa de vida recatada, que pouco saía do seu quarto. Aceitava passivamente a humilhação de ser sustentada pelo pai ela e os seus filhos.

    Não era tudo. Havia o vestir, os imprevistos, os estudos… Tanta despesa. Tudo tão caro. Eu, já crescidote, que em breve iria para a universidade e o Telmo que já estava no princípio do liceu...

    No entanto, o avô não era só um homem de leis. Era igualmente, e do fundo da alma, um homem de bons sentimentos, apesar de certas exuberantes e secretas liberalidades… De maneira nenhuma mostrava soberba ou superioridade junto de nós três, que em tudo dele dependíamos. Espaço, havia-o para toda a família, e os bens não escasseavam. Além de que era um contentamento de todos os dias, o privilégio de nos ter sempre junto de si.

    Tal um pequeno satélite, o Telmo gravitava em torno de mim, até mais do que da nossa mãe. Regressado do colégio depois de um proverbial e fraternal palavreado eu era para ele a pessoa que lhe era mais acessível e a quem nunca negava afecto e atenção —, passava uma boa parte da tarde numa excepcional concentração, aferrado ao seu piano, um belo Bechestein quarto de cauda. Já se sabe, prenda do avô Guilherme por ocasião dos seus dez anos.

    A esse respeito e a muitos outros, o avô, pragmático como o são todos os homens de leis, tinha as ideias muito claras. Categóricas, não negociáveis.

    Bom, se ao que parece o rapaz tem talento para a música, então que se lhe compre um piano. Que ele não ande por aí a estudar as suas músicas em casa de outras pessoas como se não pudesse ter um bastante bom que lhe pertencesse. Não é para o pespegar na sala a fingir um bibelô. Será um instrumento de trabalho: vai para o seu quarto ao lado da secretária onde faz os deveres da escola. Há lá muito espaço. O meu neto não é nenhum palhaço de circo que se vá pôr à vista de todo um público para que o olhem como um divertimento. Se algum dia o miúdo tocar alguma coisa que valha, a gente lá irá ouvi-lo. É só subir as escadas. Não é muito longe.

    Tinha sido o maior acontecimento do século. Um verdadeiro espectáculo nunca imaginado. Aquele malfadado piano a ser içado até ao último andar, nas escadas estreitas, pelas artes mágicas de uns quatro mocetões desfazendo-se em suores, em ordens e contra-ordens, acordos e desacordos, quase desistências.

    — Faz-se um buracão na parede aí desse lado! Mas que ideia! Não pode ser! Vamos lá! Eh! Olha o corrimão, pá! Vai, anda, empurra! Devagar! Ó patrão, não, não, o melhor é tirar-lhe os pés! Ei! Olha que me esmurras esse estuque! Descansa um pouco... Agora vira à esquerda! Não é tanto, homem! Cuidado com essa pintura que é nova! Tira mas é a porta, caramba! Mais um pouco e talvez entre! Oh, minha senhora, aquilo foi um martírio dos diabos! Que lembrança, pôr um móvel daqueles mesmo lá em cima. Dali já não pode sair, pode ter-se a certeza.

    A avó Justina e a minha mãe punham as mãos na cabeça… Fora pela manhã. Nós estávamos no colégio e o avô Guilherme no escritório, em Lisboa. Ainda bem, senão a confusão teria sido maior.

    O nosso avô tinha a intuição de quanto aquele valiosíssimo presente de aniversário poderia vir a ser um importante antídoto para o evidente e meândrico isolamento a que se dava o meu irmão. Porém, nunca tinha ele imaginado o quanto a sua generosa e luminosa resolução iria totalmente e para sempre revolucionar a existência desse seu neto. 

    A professora de música, a Senhora Dona Deolinda de Paiva, muito considerada e premiada pelo Conservatório Nacional em tempos da sua juventude, que morava mesmo do outro lado da avenida era só atravessá-la para ir às lições , não pensava senão no «seu Telmo». Era «o aluno da sua vida».

    — Ah, o petiz tem muito jeito. Mesmo muito! Ai, as colcheias, sempre tão bem metidas! As tercinas, que perfeitas! Que sentido tem ele, do fraseado! Os pianíssimos, que delicados! E, depois, muito assisado. Não! O Telmo é um talento!

    A preciosíssima senhora adorava-o.

    Ao lado de tudo isso havia ainda aquela extraordinária camaradagem que o Telmo alimentava com o Davide.

    Eram da mesma idade, nascidos no mesmo mês, só bastava ter sido no mesmo dia, andavam na mesma classe e eram colegas de carteira desde o primeiro dia em que tinham começado os estudos do liceu. Os dois gaiatos estavam ambos bem um para o outro. Completavam-se. Tinham ambos os mesmos gostos, agradavam-se dos mesmos jogos e dos mesmos passatempos. Nos fins-de-semana só se achavam ou em casa de um ou em casa do outro. Eram momentos singulares, em que o Davide se sentava no chão, as costas contra a parede, e se deleitava a fixar o infinito muito sério como só uma criança o pode ser. «Mas que música tão bonita!», ou então punha-se o meu irmão a contemplar concentradíssimo as folhas de papel almaço do Davide, cheias de cor e de movimento, com o queixo apoiado sobre a mão. «Como tu sabes tão bem fazer lindos desenhos!» Aqueles dois entes eram os únicos que espontaneamente davam apreço ao que cada um tinha como potencial profundo e promissor. O deslumbramento vinha-lhes do fundo da alma, como a água da fonte que jorra das entranhas da terra. Nisso eram perfeitamente iguais. Mereciam bem o sobrenome de «Penémorfos», que eu lhes tinha dado, cientificamente.

    — Explica lá! O que é isso?

    Eu olhava o Telmo, pacientemente.

    — É um neologismo que eu inventei!

    O rapaz não abandonava.

    — O que é tudo isso? Penémorfo? E neologismo? Olha que o Davide e eu só somos bons amigos, mais nada!

    Rapidamente eu tinha de deixar tudo em pratos limpos.

    — Penémorfo, palavra novinha em folha, quer dizer etimologicamente «de forma quase igual», como se pouco faltasse para que vocês fossem gémeos, sempre juntos. Por minha parte, gosto muito de vocês dois. Pronto! Vá, mas agora ponham-se a andar, seus pegamassos!

    Ainda restava o «etimologicamente» para explicar. Ficaria para outro dia…

    O meio familiar de Davide era o que podia encontrar-se de mais vulgar. O pai, o Engenheiro Magalhães, sem carreira especial evidente, trabalhava no Ministério da Indústria, um funcionário banal. Homem pouco comunicativo, de infância triste e sem grande história. A mãe, ainda mais obscura, era uma dona de casa clássica. Pacífica. Submissa. Sem ambições.

    O Davide Magalhães, filho único, criança introvertida, mas inteligente — nem parecia ter tido uns pais como aqueles... —, quando não estava no colégio ou em companhia do meu irmão isolava-se pelos cantos da casa a criar desenhos tão subtis como complexos e a pintá-los com aguarelas. Demorava pouco

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